quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Descoberta da América pelos Turcos – Jorge Amado

Editora: Record
ISBN: 8501041610
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 172
Sinopse: Raduan Murad e Jamil Bichara descobriram a América juntos: vieram no mesmo barco de imigrantes e desembarcaram na Bahia em 1903. No litoral sul do Estado, eram chamados de “turcos”, forma brasileira de designar todos os árabes, fossem eles da Síria, do Líbano ou de fato da Turquia. Definido pelo autor como um “romancinho”, A descoberta da América pelos turcos é uma narrativa breve sobre a contribuição dos descendentes de árabes na civilização do cacau, durante a época em que coronéis e jagunços disputavam as terras virgens da região de Ilhéus.
O libanês Raduan e o sírio Jamil decidiram então tentar a sorte no eldorado do cacau. Jamil se estabeleceu no povoado de Itaguassu, onde abriu um pequeno comércio. Raduan preferiu permanecer em Itabuna, onde frequentava as mesas de pôquer, os botequins, os cabarés e as pensões de mulheres.
O enredo, curto e hilariante, apresenta a história de um casamento arranjado, mas de difícil realização. Ibrahim Jafet, viúvo e pai de três beldades (Samira, Jamile e Fárida), quer casar sua última filha solteira, a severa e mal-ajambrada Adma. Ao pretendente, oferece sociedade no armarinho O Barateiro, estabelecimento de tradição e administração familiar.
Tentado por Shitan, o tinhoso dos muçulmanos, e pelo amigo Raduan, o sírio Jamil vai pensar seriamente no negócio: para herdar O Barateiro, faria o sacrifício de se casar com Adma?
Escrito com humor desbocado e o enlevo narrativo próprio do autor, A descoberta da América pelos turcos faz um elogio da mestiçagem dos sangues árabe e baiano, em seus elementos de fraternidade, alegria e erotismo.



“Raduan Murad, fugitivo da justiça que o perseguia por vadiagem e jogatina, letrado de prosa aliciante, revelara ao sírio Jamil Bichara, companheiro de porão, que, tendo se debruçado noites insones sobre alfarrábios relativos à primeira viagem de Colombo, descobrira, na relação de marujos que compunham a equipagem de uma das três caravelas da festiva excursão, o nome de um certo Alonso Bichara. O mouro Bichara, engajado quem sabe a pulso, um dos tantos heróis esquecidos na hora das celebrações e das recompensas: o almirante cobre-se de glória, os marinheiros cobrem-se de merda – apesar de erudito, Raduan Murad tinha a boca suja.
Verdade ou intrujice? Raduan Murad era imaginoso, inventivo, e, quanto a escrúpulos, não os cultivava.”


“A referência à descoberta da América vai por conta das comemorações atuais, onipresentes: hoje em dia não pode o pacato cidadão dar o menor passo, soltar o menor peido sem que lhe tombe sobre a cabeça o Quinto Centenário. Da Descoberta, dizem os descendentes dos impávidos que descobriram o outro lado do mar, da Conquista, exclamam os descendentes dos índios massacrados, dos negros escravizados, das culturas arrasadas à passagem de mercenários e missionários conduzindo a Cruz de Cristo e a pia batismal.”


“Quanto a dizer, como alguns diziam, despeitados, ser Raduan Murad ferrenho adversário do trabalho, ter-lhe santo horror, o que sucede com frequência aos letrados, trata-se de injustiça e má vontade, evidentes. Se de fato durante a primeira juventude o Professor – assim muitos o tratavam com deferência – recusara-se com obstinação a misteres pouco condizentes com sua capacidade intelectual, não havia trabalhador mais assíduo e pontual em mesa de pôquer ou der qualquer outro jogo de azar.”


“Norberto de Faria, sergipano amulatado, homem de honra e de visão, colocou a quantia necessária à disposição de Jamil por nele confiar e dispensou os juros por lhe ter estima. Dizia-o sócio de mesa e cama, pois haviam traçado as mesmas raparigas, comido no mesmo prato, possuíam gostos semelhantes: mamas pequenas, bundas grandes, xoxotas apertadas – concordâncias gratas reforçam os laços de amizade.”


“Quanto à caçula, Fárida, diziam-na a mais formosa entre as turcas do armarinho. Um pitéu, na cúpida designação de Alfeu Bandeira, aprendiz de alfaiate sob as vistas de mestre Ataliba Reis, dono da Alfaiataria Inglesa, cujas portas se abriram em frente às do sobrado dos Jafet. Alfeu degustou o pitéu, que diga-se a verdade, se oferecia num descaro condenado com vigor pelas famílias da vizinhança: tamanho agarramento, tanta esfregação, tinha de acabar mal. Acabou bem, em casamento às pressas. Véu de tule esvoaçando sobre a intrépida barriguinha de Fárida, prenha de quatro meses, flores de laranjeira na grinalda, símbolo de pureza e virgindade. Virgem, só se for no sovaco, comentou mestre Ataliba, escolhido padrinho pelo noivo. No sovaco, será?, duvidou Raduan Murad, padrinho da noiva, cético como convém a um erudito.”


“Raduan porém descarou a objeção: diferença de idade pouco ou nada significa para o êxito do matrimônio. Rapaz moço, começando a vida, necessita ter a seu lado esposa ajuizada para orientá-lo. Em casamento de velho com menina, o marido corre perigo de corno, mas no vice-versa não há o que temer, mulher não pega chifre, não é mesmo? Argumentação irrespondível.”


“Aprendiam boa educação no aconchego do lar e ao léu das ruas. Ainda adolescentes, adotavam e praticavam os artigos dos códigos dominantes na região, leis não-escritas mas incontestes. Chegada a ocasião de tomar esposa, deve-se escolher mulher virgem e virtuosa, trabalhadora e honesta, pois a ela caberá parir e criar os filhos, cuidar da casa, viver no recato e na modéstia, submissa. Beleza e juventude são dotes secundários, sobretudo se o dote principal da noiva se medir em léguas de terra ou em portas de casa de comércio – O Barateiro abria três portas para a rua. Formosura, graça e mocidade são preferências quando se busca amásia, xodó ou companhia para uma noite na cama, para uma cacetada. Nesses casos sim, prescreve-se rapariga linda, moderninha, xoxota nova e aconchegante. Sadios princípios, alicerces da família e da sociedade.
– Mas se a dita cuja for um par de anos mais velha do que tu? – prosseguiu Raduan em seu inquérito.
– E que tem isso, professor? Nunca ouvi dizer que idade seja defeito. Só não serve se for furada. Tapar buraco aberto por outro, isso eu não faço. Tem que ser donzela.”


“E por que não? Adma era parada dura, indigesta. Enfrentá-la exigia decisão, coragem e estômago de camelo. Alto, seco de corpo, musculoso, lanzudo, Adib assemelhava-se a um dromedário. A juventude e a cobiça faziam-no capaz de mastigar palha e achar gostoso, de enfrentar solteirona velhusca e avinagrada, arrombar-lhe os tampos com deleite, levá-la ao desvario, à beatitude, à paz com a vida. Bem fodida, Adma deixaria de aporrinhar a humanidade.”


“– Deixe comigo, professor. Mulher a gente amansa no mimo ou na porrada. Ou bem variando as duas coisas.”

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