sábado, 29 de maio de 2010

A engenhosa Letícia do Pontal – Carlos Nejar

Editora: Objetiva
ISBN: 978-85-7302-504-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 308
Sinopse: Uma quixote de saias em busca do seu moinho. Que mistérios rondam Letícia do Pontal? É uma bela mulher? Ou é a imagem do feminino que se projeta no céu? Aquele céu que nos protege e nos condena a vagar atrás dos nossos desejos. A engenhosa Letícia do Pontal, do grande poeta e acadêmico Carlos Nejar é uma alegoria sobre o homem e o tempo, sobre a poesia do mundo que jorra suas sábias palavras através de Letícia – uma nuvem que nos espreita.
Considerado pelo autor como sua obra máxima, o livro é fruto de um trabalho de 16 anos, que reúne e justifica sua criação. Através de uma linguagem muito própria – onde poesia e prosa se misturam o tempo todo – Nejar revela a nossa alma quixotesca. Os ideais que se desenham no horizonte, nesta tênue linha que nos separa da ilusão.
Uma alegoria sobre o homem e o tempo, seu texto impõe-se como fábula de amor e guerra, das grandezas e fraquezas do coração. O reino do maravilhoso encontra seu fiel intérprete, onde o humor se mescla à sátira e à paródia, o lirismo à sabedoria das mais estranhas experiências.


“Não há reservas para o sonho humano.”


“Filosofa apenas o que está cativo: para libertar-se.”


“A dor não tem semente, só frutos.”


“– Tudo está acontecendo, mesmo quando não acontece – falou-me Letícia, após a audiência. E pega sentido. É na paragem que se criam as calamidades. E fui acompanhando o raciocínio. Assim, o que vai acontecer está no acontecido. E medra devagar, desde o miolo. O grito já vem vindo antes da dor. E o vento vem vindo antes do vento. Com um rumor que a noite sequer percebe. Porque apenas um sonho escapou de seu pesadelo e veio à luz. Tudo está acontecendo, mesmo quando nada, nem um til ou pedra, ou casca de árvore, parece estar caindo. A imobilidade é quando se plasma o germe de todo o movimento futuro.”


“Fechamos a janela para o ar, fechamos a porta. Fechamos os quartos, a sala, a casa. E depois nos queixamos que a falta de ar nos sufoca!”


“– O amor é uma casa – disse Letícia, distraída entre as folhas. – Precisa ser morada para durar.”


“Quem poupa os maus acaba punindo os bons.”


“Só quem ama, discerne. E só quem discerne, esquece.”


“Foi quando minha mente foi se associando, em ondas, ao que li, do filósofo espanhol Miguel de Unamuno: “Cada um tem seu método, como cada um tem sua loucura. Apenas, estimamos, cordato, aquele cuja loucura coincide com a da maioria.”


“O vizinho Edilberto veio falar com Letícia. Queria emprestado o nosso cavalo para ir à feira. E ela disse que não, sentia muito. Nem livro nem cavalo se empresta! Edilberto insistiu. Então a Nuvem deu a desculpa de ter ele saído comigo. E Alecrim, o cavalo, relinchou, lá da porteira, onde estávamos. O vizinho se empertigou:
– Posso escutá-lo! – disse.
E Letícia, com delicada altivez, falou:
– Se preferes acreditar na palavra do cavalo a acreditar na minha, não mereces que lhe seja emprestada coisa alguma!”


“O definhar do ser é a instância para a metamorfose. A morte não é expiação, é descoberta.”


“Porque o que tem de ser, insiste.”


“A imaginação é a memória do porvir.”


“A espécie humana é mais digna de riso do que de piedade.”


“Tirante isso, que não nos aturdiu, saímos inocentes, egressos do primeiro dia da criação. Talvez porque o primeiro dia da criação estava em todos os dias.”


“– Quem crê demais em si mesmo não pode ser verdadeiro.”


“O tempo na fome é de uma intensidade intolerável.”


“– Porque as palavras são coisas vivas que advêm de coisas mais vivas ainda.”


“– Viver é estar chegando.”


“Os críticos não picam por mal, mas porque querem dizer que existem.”


“Tende mais receio da abundância que da escassez.”


“(...) pois tudo o que é humano tem declínio.”

Um comentário:

Doney disse...

Se fosse para descrever esta obra em uma palavra, não pensaria duas vezes: lírica. Também é pesada, entretanto. A bela orelha assinada por Luis Fernando Verissimo ajuda bastante a descrever o que vem: “Não são só os poetas que tem o sortilégio da palavra. Também o têm os romancistas, e os ensaístas, e os polemistas, e os oradores, e os camelôs, e, pensando bem, os vigaristas. Mas os poetas são como feiticeiros, que trazem para qualquer atividade que exerçam – da medicina à corretagem na Bolsa – a vantagem do seu dom especial. Neles o sortilégio não é um aprendizado ou um mero talento, mas uma predestinação, que nem eles sempre entendem, e afeta tudo o que tocam. Assim um poeta fazendo um romance é um pouco como um feiticeiro na cozinha, que usa os mesmos ingredientes e temperos e técnica de um chef comum mas não pode evitar que o seu ensopado seja mais do que um ensopado, que tenha mais significados e serventias, que seja um caldeirão de poções e encantações mágicas. Ou seja, que se impregne do feitiço. Este romance – se é que é um romance – do Nejar é isto, uma boa e substanciosa refeição literária feita por um mágico, portanto muito mais do que isto. Um romance construído com poesia em que a poesia é maior do que as suas partes. E poesia marca Nejar, epigramática e arrebatada ao mesmo tempo, meticulosa e sensual e, neste caso, também cheia de humor. Prepare-se, leitor, para enfrentar as pás do tempo como aquele Cavaleiro Iluminado. Está chegando a Nuvem.”