sábado, 9 de outubro de 2010

Saramago – Biografia – João Marques Lopes

Editora: Leya
ISBN: 978-85-62936-29-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 248
Sinopse: A biografia de um dos escritores mais importantes do século XX! Esta é a primeira biografia de um dos escritores mais importantes da história da literatura. Nela podemos acompanhar a vida de José Saramago, desde o seu nascimento na aldeia portuguesa da Azinhaga, Golegã, até a sua mudança para a ilha de Lanzarote, Espanha. E descobrimos toda a sua obra, desde as crônicas de “A Capital” e do “Jornal do Fundão”, até seu livro “Caim”.
Saramago passou a se dedicar definitivamente à escrita ficcional aos 53 anos e, em 1980, lança “Levantado do Chão”. Com esse romance, surge o que viria a ser conhecido como o “estilo saramaguiano”: o narrador “oraliza” a escrita como se estivesse de viva voz, como numa roda de amigos, e desrespeita ostensivamente as regras sintáticas e a pontuação.
Mas é o romance “Memorial do Convento”, de 1982, que o consagra definitivamente. Em outubro de 1998, Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro e único escritor de língua portuguesa a obter tal distinção. Mais de uma década depois, Saramago continuou a escrever e a gerar polêmica até sua morte, em 2010.

“Contudo [a mudança para Lisboa] seria rapidamente manchada por uma tragédia irremediável. No quarto volume dos Cadernos de Lanzarote, de 1996, José Saramago se referiria várias vezes ao infausto evento: no fim do ano, mais especificamente em 22 de dezembro de 1924, seu irmão e primogênito da família morreria de broncopneumonia. Contava apenas quatro anos. O escritor veria nessa tragédia a causa de certa secura que a mãe lhe dispensaria durante a infância, chegando mesmo a ponto de renegar os beijos que lhe pedia e de compará-lo desfavoravelmente com o irmão falecido em tenra idade.”


“‘Levantado do chão fala de trabalhadores. Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação’.”


“No plano das ideias, a nova situação foi traduzida por um obscuro funcionário da administração Bush (pai) como “fim da história”, e da mídia estadunidense transitaria para o globo como a perpetuação conjunta da democracia burguesa e da economia liberal ante o enterro definitivo da alternativa comunista. Na verdade, e de maneira sofisticada, alguma filosofia já vinha cunhando desde o fim dos anos 1970 a inviabilidade de uma contracivilização oposta ao capitalismo sob a forma da teoria da “pós-modernidade”. Jean-François Lyotard e outros argumentavam: a dinâmica racionalista globalizante e emancipadora das Luzes e da Revolução Francesa de 1789 estava morta; as narrativas universais da educação em Humboldt, do espírito absoluto em Hegel ou do proletariado em Marx rumo a uma racionalização paradigmática e progressista não tinham mais sentido; a razão global especializara-se e perdera de vista o todo em uma sociedade de consumo, legítima e democrática, razão por que vivia agora de fragmentos, de multiplicidades e instabilidades bem distantes da verdade global, única e emancipadora, provinda em essência das Luzes setecentistas. Como conjunto, a ciência, a ética e a estética já não eram governadas necessariamente por essa Razão que a própria burguesia invocara para cavar a cova do feudalismo e que os marxistas subverteram a serviço do proletariado como único sujeito histórico que levava a sério a necessidade de difundir os valores formais da Igualdade, da Justiça e da Fraternidade para a realidade concreta das relações sociais.
Para centenas de milhões de homens e mulheres de várias gerações, esse entendimento da Razão, fosse na versão setecentista das Luzes, fosse nas versões idealistas do século XIX ou na marxista, fora válido. Mesmo no liberalismo havia quem o reclamasse. O keynesianismo dera-lhe um mínimo de cobertura. O “socialismo” havia sido o nome da utopia em atualização. Saramago e as gerações portuguesas atuantes até a primeira metade dos anos 1980 acreditam diversificadamente em tal racionalidade. Agora era dada como falida, indefinida, partida em cacos e incapaz de se afinar com a própria realidade, até mesmo nas ciências exatas. Parecia mais um contrassenso do que qualquer outra coisa.
Ora, será provavelmente na conjunção de todos esses fatores que se encontram as causas determinantes das alegorias distópicas saramaguianas que vão de Ensaio sobre a cegueira a Ensaio sobre a lucidez.”


“A ideia de Ensaio sobre a cegueira ocorrera subitamente a Saramago quando almoçava no restaurante lisboeta Varina de Madragoa e não teria sido nenhum efeito direto do problema com o deslocamento da retina, mas sim uma das iluminações que lhe aparecem sob a forma de título e vão amadurecendo pouco a pouco em resultado da sua maneira de entender o mundo, em algum lugar entre o racionalismo crítico das Luzes e o materialismo histórico. Estava-se então em setembro de 1991 e seria necessário esperar por agosto de 1995 para que o livro fosse dado como terminado. Os quatro anos de espera parecem ter decorrido não tanto de alguns outros trabalhos em que esteve envolvido (In Nomine Dei e vários dos volumes dos Cadernos de Lanzarote), da mudança de casa para as Ilhas Canárias, das andanças pelo exterior ou de uma nova cirurgia nos olhos, mas mais da própria dureza da matéria ficcional. Ao Expresso, por exemplo, referiria que: ‘O tempo da escrita, sobretudo nos últimos tempos, foi de sofrimento, de momentos em que me sentia incapaz de aguentar aquilo que estava a escrever. [...] A certa altura, cheguei a dizer: não sei se consigo sobreviver a este livro. Foi como se tivesse dentro de mim uma coisa feia, horrível, e tivesse que sacá-la. Mas não saiu, está no livro e está dentro de mim’.”


“Por que este fim de ciclo e esta abertura para a esperança (em seus livros)? A bem da verdade, não haverá respostas definitivas. Pelas entrevistas e artigos de José Saramago, e por especulação própria, talvez se possa afirmar o seguinte: o materialismo dialético e histórico é uma grelha de interpretação e intervenção na realidade que transporta consigo a negação da estabilidade, a transformação do mesmo no outro e a sedimentação de pequenas quantidades erosivas em agregados aparentemente sólidos rumo a uma mudança qualitativa; o triunfo planetário do neoliberalismo à custa da falência do “socialismo real” e do keynesianismo pode assim ser lido como movimento transitório e contraditório aberto a uma outra ordem – não é nenhum “fim da história”; em 2004, a ofensiva neoliberal já tinha perdido muito do seu fulgor do início da década de 1990, pois o movimento antiglobalização havia ganho parte significativa da opinião pública internacional nos próprios centros imperialistas, e o neoliberalismo tinha devastado de tal modo países latino-americano como a Argentina, a Bolívia ou a Venezuela que acabou por ficar desacreditado por completo em meio a revoltas populares conducentes à derrocada de governos democraticamente eleitos ou de mudanças eleitorais rumo à centro-esquerda ou a populismos esquerdistas; na sua voracidade beligerante, a administração Bush (filho) enfrentou pela primeira vez uma campanha pacifista que ganhou a cidadania mundial contra a sua retórica belicista, e na Espanha o escritor foi parte ativa desse movimento que congraçou por duas vezes vários milhões de pessoas nas ruas e chegou a alcançar uma porcentagem de mais de 80% das pessoas em oposição ao apoio de Aznar à segunda guerra no Iraque. Enfim, a geopolítica internacional não estava mudada, mas a nuvem cinzenta asfixiante dos anos 1990 comportava agora pequenas luzes de esperança. Provavelmente, elas estariam mais ou menos (in)conscientemente relacionadas ao uivo coletivo de Ensaio sobre a lucidez.”


“A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana.”


“De um artigo de Eduardo Galeano: ‘Nunca foi menos democrática a economia mundial, nunca o mundo foi mais escandalosamente injusto. Em 1960, 20% da humanidade, a parte que mais bens possuía, era trinta vezes mais rica que os 20% mais necessitados. Em 1990, a diferença entre a prosperidade e o desamparo tinha subido para o dobro, e era de sessenta vezes. [...] E nos extremos dos extremos [...] 100 multimilionários dispõem atualmente da mesma riqueza que 1.500 milhões de pessoas’. [Cadernos de Lanzarote, 11 de julho de 1996]
Alguns números para a história do nosso maravilhoso século XX: 1.300 milhões de pessoas vivem abaixo do nível de pobreza absoluta; um terço delas subsiste com menos de 150 escudos diários; 750 milhões de pessoas estão desnutridas; mais de metade da população da Ásia vive na miséria; uma de cada duas pessoas ao sul do Saara está condenada à penúria; 15 milhões de crianças com menos de cinco anos morrem anualmente por doenças que poderiam evitar-se; dos 2.800 milhões de pessoas que constituem a mão-de-obra no mundo, 700 milhões estão subempregados e 120 milhões procuram trabalho em vão; há 1.000 milhões de analfabetos, dois terços dos quais são mulheres adultas; nas zonas rurais há 550 milhões de mulheres pobres, o que significa mais de 50% da população camponesa mundial... Hoje é o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Que a todos faça bom proveito. [Cadernos de Lanzarote, 23 de outubro de 1996].”

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