sábado, 25 de dezembro de 2010

A era dos direitos (Parte I), de Norberto Bobbio

Editora: Campus-Elsevier

ISBN: 978-85-352-1561-8

Tradução: Celso Márcio Teixeira

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 238

Sinopse: Neste livro encontram-se os artigos considerados principais pelo autor, escritos ao longo de muitos anos sobre o tema dos direitos do homem. O problema é estreitamente ligado aos da democracia e da paz, aos quais o autor dedicou a maior parte de seus escritos políticos.

São onze ensaios, nascidos em ocasiões diversas (comunicações em simpósios, conferências em universidades italianas e estrangeiras) mas que têm em comum a emergência, constante e orgânica, de algumas teses: os direitos naturais são direitos históricos; nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade; tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico.




“Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo.”

 

 

“Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. O problema – sobre o qual, ao que parece, os filósofos são convocados a dar seu parecer – do fundamento, até mesmo do fundamento absoluto, irresistível, inquestionável, dos direitos do homem é um problema mal formulado: a liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos.

Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. Quais são os limites dessa possível (e cada vez mais certa no futuro) manipulação? Mais uma prova, se isso ainda fosse necessário, de que os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. Às primeiras, correspondem os direitos de liberdade, ou um não-agir do Estado; aos segundos, os direitos sociais, ou uma ação positiva do Estado. Embora as exigências de direitos possam estar dispostas cronologicamente em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre – com relação aos poderes constituídos, apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios. Nos direitos de terceira e de quarta geração, podem existir direitos tanto de uma quanto de outra espécie.

Em um dos ensaios, “Direitos do homem e sociedade”, destaco particularmente a proliferação, obstaculizada por alguns, das exigências de novos conhecimentos e de novas proteções na passagem da consideração do homem abstrato para aquela do homem em suas diversas fases de vida e em seus diversos estágios. Os direitos de terceira geração, como o de viver num ambiente não poluído, não poderiam ter sido sequer imaginados quando foram propostos os de segunda geração, do mesmo modo como estes últimos (por exemplo, o direito à instrução ou à assistência) não eram sequer concebíveis quando foram promulgadas as primeiras Declarações setecentistas. Essas exigências nascem somente quando nascem determinados carecimentos. Novos carecimentos nascem em função da mudança das condições sociais e quando o desenvolvimento técnico permite satisfazê-los.”

 

 

“Bastará recordar que muitos direitos, até mesmo os mais diversos entre si, até mesmo os menos fundamentais – fundamentais somente na opinião de quem os defendia –, foram subordinados à generosa e complacente natureza do homem. Para dar um exemplo: ardeu por muito tempo entre os jusnaturalistas a disputa acerca de qual das três soluções possíveis quanto à sucessão dos bens (o retorno à comunidade, a transmissão familiar de pai para filho ou a livre disposição pelo proprietário) era a mais natural e, portanto, devia ser preferida num sistema que aceitava como justo tudo o que se fundava na natureza. Podiam disputar por muito tempo: com efeito, todas as três soluções são perfeitamente compatíveis com a natureza do homem, conforme se considere este último como membro de uma comunidade (da qual, em última instância, sua vida depende), como pai de família (voltado por instinto natural para a continuação da espécie) ou como pessoa livre e autônoma (única responsável pelas próprias ações e pelos próprios bens).

Kant havia racionalmente reduzido os direitos irresistíveis (que ele chamava de “inatos”) a apenas um: a liberdade. Mas o que é a liberdade?”

 

 

“Pois bem: dois direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um fundamento absoluto, ou seja, um fundamento que torne um direito e o seu oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. Aliás, vale a pena recordar que, historicamente, a ilusão do fundamento absoluto de alguns direitos estabelecidos foi um obstáculo à introdução de novos direitos, total ou parcialmente incompatíveis com aqueles. Basta pensar nos empecilhos colocados ao progresso da legislação social pela teoria jusnaturalista do fundamento absoluto da propriedade: a oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais foi feita em nome do fundamento absoluto dos direitos de liberdade. O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras.”

 

 

“Deve-se recordar que o mais forte argumento adotado pelos reacionários de todos os países contra os direitos do homem, particularmente contra os direitos sociais, não é a sua falta de fundamento, mas a sua inexequibilidade. Quando se trata de enunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu fundamento absoluto; quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as reservas e as oposições.

O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.”

 

 

“Na história da formação das declarações de direitos podem-se distinguir, pelo menos, três fases. As declarações nascem como teorias filosóficas. Sua primeira fase deve ser buscada na obra dos filósofos. Se não quisermos remontar até a ideia estoica da sociedade universal dos homens racionais – o sábio é cidadão não desta ou daquela pátria, mas do mundo, a ideia de que o homem enquanto tal tem direitos, por natureza, que ninguém (nem mesmo o Estado) lhe pode subtrair, e que ele mesmo não pode alienar (mesmo que, em caso de necessidade, ele os aliene, a transferência não é válida), essa ideia foi elaborada pelo jusnaturalismo moderno. Seu pai é John Locke. Segundo Locke, o verdadeiro estado do homem não é o estado civil, mas o natural, ou seja, o estado de natureza no qual os homens são livres e iguais, sendo o estado civil uma criação artificial, que não tem outra meta além da de permitir a mais ampla explicitação da liberdade e da igualdade naturais. Ainda que a hipótese do estado de natureza tenha sido abandonada, as primeiras palavras com as quais se abre a Declaração Universal dos Direitos do Homem conservam um claro eco de tal hipótese: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” O que é uma maneira diferente de dizer que os homens são livres e iguais por natureza. E como não recordar as primeiras célebres palavras com que se inicia o Contrato social de Rousseau, ou seja: “O homem nasceu livre e por toda a parte encontra-se a ferros”? A Declaração conserva apenas um eco porque os homens, de fato, não nascem nem livres nem iguais. São livres e iguais com relação a um nascimento ou natureza ideais, que era precisamente a que tinham em mente os jusnaturalistas quando falavam em estado de natureza. A liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser. Enquanto teorias filosóficas, as primeiras afirmações dos direitos do homem são pura e simplesmente a expressão de um pensamento individual: são universais em relação ao conteúdo, na medida em que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo, mas são extremamente limitadas em relação à sua eficácia, na medida em que são (na melhor das hipóteses) propostas para um futuro legislador.

No momento em que essas teorias são acolhidas pela primeira vez por um legislador, o que ocorre com as Declarações de Direitos dos Estados Norte-americanos e da Revolução Francesa (um pouco depois), e postas na base de uma nova concepção do Estado – que não é mais absoluto e sim limitado, que não é mais fim em si mesmo e sim meio para alcançar fins que são postos antes e fora de sua própria existência –, a afirmação dos direitos do homem não é mais expressão de uma nobre exigência, mas o ponto de partida para a instituição de um autêntico sistema de direitos no sentido estrito da palavra, isto é, enquanto direitos positivos ou efetivos. O segundo momento da história da Declaração dos Direitos do Homem consiste, portanto, na passagem da teoria à prática, do direito somente pensado para o direito realizado. Nessa passagem, a afirmação dos direitos do homem ganha em concreticidade, mas perde em universalidade. Os direitos são doravante protegidos (ou seja, são autênticos direitos positivos), mas valem somente no âmbito do Estado que os reconhece. Embora se mantenha, nas fórmulas solenes, a distinção entre direitos do homem e direitos do cidadão, não são mais direitos do homem e sim apenas do cidadão, ou, pelo menos, são direitos do homem somente enquanto são direitos do cidadão deste ou daquele Estado particular.

Com a Declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do cidadão terão se transformado, realmente, positivamente, em direitos do homem. Ou, pelo menos, serão os direitos do cidadão daquela cidade que não tem fronteiras, porque compreende toda a humanidade; ou, em outras palavras, serão os direitos do homem enquanto direitos do cidadão do mundo.”

 

 

“A Declaração Universal (dos Direitos do Homem) é apenas o início de um longo processo, cuja realização final ainda não somos capazes de ver. A Declaração é algo mais do que um sistema doutrinário, porém algo menos do que um sistema de normas jurídicas. De resto, como já várias vezes foi observado, a própria Declaração proclama os princípios de que se faz pregoeira não como normas jurídicas, mas como “ideal comum a ser alcançado por todos os povos e por todas as nações”. Uma remissão às normas jurídicas existe, mas está contida num juízo hipotético. Com efeito, lê-se no preâmbulo que “é indispensável que os direitos do homem sejam protegidos por normas jurídicas, se se quer evitar que o homem seja obrigado a recorrer, como última instância, à rebelião contra a tirania e a opressão”. Essa proposição se limita a estabelecer uma conexão necessária entre determinado meio e determinado fim, ou, se quisermos, apresenta uma opção entre duas alternativas: ou a proteção jurídica ou a rebelião. Mas não põe em ação o meio. Indica qual das duas alternativas foi escolhida, mas ainda não é capaz de realizá-la. São coisas diversas mostrar o caminho e percorrê-lo até o fim.”

 

 

“Como todos sabem, o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não-impedimento, mas positivamente como autonomia – tiveram como consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado.”

 

 

“Afirmei, no início, que o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui que, para protegê-los, não basta proclamá-los. Falei até agora somente das várias enunciações, mais ou menos articuladas. O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos. E inútil dizer que nos encontramos aqui numa estrada desconhecida; e, além do mais, numa estrada pela qual trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com clareza mas têm os pés presos, e os que poderiam ter os pés livres mas têm os olhos vendados.”

 

 

“Chamamos de “Estados de direito” os Estados onde funciona regularmente um sistema de garantias dos direitos do homem: no mundo, existem Estados de direito e Estados não de direito. Não há dúvida de que os cidadãos que têm mais necessidade da proteção internacional são os cidadãos dos Estados não de direito. Mas tais Estados são, precisamente, os menos inclinados a aceitar as transformações da comunidade internacional que deveriam abrir caminho para a instituição e o bom funcionamento de uma plena proteção jurídica dos direitos do homem. Dito de modo drástico: encontramo-nos hoje numa fase em que, com relação à tutela internacional dos direitos do homem, onde essa é possível talvez não seja necessária, e onde é necessária é bem menos possível.”

 

 

“É preciso partir da afirmação óbvia de que não se pode instituir um direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir um direito de outras categorias de pessoas. O direito a não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos, assim como o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos, já que a ação que é considerada ilícita em consequência de sua instituição e proteção e universalmente condenada. Prova disso é que, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ambos esses direitos são explicitamente excluídos da suspensão da tutela que atinge todos os demais direitos em caso de guerra ou de outro perigo público (cf. art. 15 § 2). Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas.”

 

 

“Quando digo que os direitos do homem constituem uma categoria heterogênea, refiro-me ao fato de que – desde quando passaram a ser considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade, também os direitos sociais – a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros. Pode-se fantasiar sobre uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa, na qual são global e simultaneamente realizados os direitos de liberdade e os direitos sociais; as sociedades reais, que temos diante de nós, são mais livres na medida em que menos justas e mais justas na medida em que menos livres. Esclareço dizendo que chamo de “liberdades” os direitos que são garantidos quando o Estado não intervém; e de “poderes” os direitos que exigem uma intervenção do Estado para sua efetivação. Pois bem: liberdades e poderes, com frequência, não são – como se crê – complementares, mas incompatíveis. Para dar um exemplo banal, o aumento do poder de comprar automóveis diminuiu, até quase paralisar, a liberdade de circulação. Outro exemplo, um pouco menos banal: a extensão do direito social de ir à escola até os catorze anos suprimiu, na Itália, a liberdade de escolher um tipo de escola e não outro. Mas talvez não haja necessidade de dar exemplos: a sociedade histórica em que vivemos, caracterizada por uma organização cada vez maior em vista da eficiência, é uma sociedade em que a cada dia adquirimos uma fatia de poder em troca de uma falta de liberdade. Essa distinção entre dois tipos de direitos humanos, cuja realização total e simultânea é impossível, é consagrada, de resto, pelo fato de que também no plano teórico se encontram frente a frente e se opõem duas concepções diversas dos direitos do homem, a liberal e a socialista.”

 

 

“Não se pode pôr o problema dos direitos do homem abstraindo dos dois grandes problemas de nosso tempo, que são os problemas da guerra e da miséria, do absurdo contraste entre o excesso de potência que criou as condições para uma guerra exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes massas humanas à fome. Só nesse contexto é que podemos nos aproximar do problema dos direitos com senso de realismo. Não devemos ser pessimistas a ponto de nos abandonarmos ao desespero, mas também não devemos ser tão otimistas que nos tornemos presunçosos.

A quem pretenda fazer um exame despreconceituoso do desenvolvimento dos direitos humanos depois da Segunda Guerra Mundial, aconselharia este salutar exercício: ler a Declaração Universal e depois olhar em torno de si. Será obrigado a reconhecer que, apesar das antecipações iluminadas dos filósofos, das corajosas formulações dos juristas, dos esforços dos políticos de boa vontade, o caminho a percorrer é ainda longo. E ele terá a impressão de que a história humana, embora velha de milênios, quando comparada às enormes tarefas que estão diante de nós, talvez tenha apenas começado.”

 

 

“Definindo o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer apenas à lei de que ele mesmo é legislador, Kant dava uma definição da liberdade como autonomia, como poder de legislar para si mesmo. De resto, no início da Metafisica dos costumes, escrita na mesma época, afirmara solenemente, de modo apolítico – como se a afirmação não pudesse ser submetida a discussão –, que, uma vez entendido o direito como a faculdade moral de obrigar outros, o homem tem direitos inatos e adquiridos; e o único direito inato, ou seja, transmitido ao homem pela natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade, isto é, a independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro, ou, mais uma vez, a liberdade como autonomia.”

 

 

“Na verdade, Kant dizia que, juntamente com o céu estrelado, a consciência moral era uma das duas coisas que o deixavam maravilhado; mas a maravilha não só não é uma explicação, mas pode até derivar de uma ilusão e gerar, por sua vez, outras ilusões. O que nós chamamos de “consciência moral”, sobretudo em função da grande (para não dizer exclusiva) influência que teve a educação cristã na formação do homem europeu, é algo relacionado com a formação e o crescimento da consciência do estado de sofrimento, de indigência, de penúria, de miséria, ou, mais geralmente, de infelicidade, em que se encontra o homem no mundo, bem como ao sentimento da insuportabilidade de tal estado.”

 

 

“Como disse antes, a história humana é ambígua para quem se põe o problema de atribuir-lhe um “sentido”. Nela, o bem e o mal se misturam, se contrapõem, se confundem. Mas quem ousaria negar que o mal sempre prevaleceu sobre o bem, a dor sobre a alegria, a infelicidade sobre a felicidade, a morte sobre a vida? Sei muito bem que uma coisa é constatar, outra é explicar e justificar. De minha parte, não hesito em afirmar que as explicações ou justificações teológicas não me convencem, que as racionais são parciais, e que elas estão frequentemente em tal contradição recíproca que não se pode acolher uma sem excluir a outra (mas os critérios de escolha são frágeis e cada um deles suporta bons argumentos). Apesar de minha incapacidade de oferecer uma explicação ou justificação convincente, sinto-me bastante tranquilo em afirmar que a parte obscura da história do homem (e, com maior razão, da natureza) é bem mais ampla do que a parte clara.

Mas não posso negar que uma face clara apareceu de tempos em tempos, ainda que com breve duração. Mesmo hoje, quando o inteiro decurso histórico da humanidade parece ameaçado de morte, há zonas de luz que até o mais convicto dos pessimistas não pode ignorar: a abolição da escravidão, a supressão em muitos países dos suplícios que outrora acompanhavam a pena de morte e da própria pena de morte. É nessa zona de luz que coloco, em primeiro lugar, juntamente com os movimentos ecológicos e pacifistas, o interesse crescente de movimentos, partidos e governos pela afirmação, reconhecimento e proteção dos direitos do homem.

Todos esses esforços para o bem (ou, pelo menos, para a correção, limitação e superação do mal), que são uma característica essencial do mundo humano, em contraste com o mundo animal, nascem da consciência, da qual há pouco falei, do estado de sofrimento e de infelicidade em que o homem vive, do que resulta a exigência de sair de tal estado. O homem sempre buscou superar a consciência da morte, que gera angústia, seja através da integração do indivíduo, do ser que morre, no grupo a que pertence e que é considerado imortal, seja através da crença religiosa na imortalidade ou na reencarnação. A esse conjunto de esforços que o homem faz para transformar o mundo que o circunda e torná-lo menos hostil, pertencem tanto as técnicas produtoras de instrumentos, que se voltam para a transformação do mundo material, quanto as regras de conduta, que se voltam para a modificação das relações interindividuais, no sentido de tornar possível uma convivência pacífica e a própria sobrevivência do grupo. Instrumentos e regras de conduta formam o mundo da “cultura”, contraposto ao da “natureza”.

Encontrando-se num mundo hostil, tanto em face da natureza quanto em relação a seus semelhantes, segundo a hipótese hobbesiana do homo homini lupus, o homem buscou reagir a essa dupla hostilidade inventando técnicas de sobrevivência com relação à primeira, e de defesa com relação à segunda. Estas últimas são representadas pelos sistemas de regras que reduzem os impulsos agressivos mediante penas, ou estimulam os impulsos de colaboração e de solidariedade através de prêmios.

No início, as regras são essencialmente imperativas, negativas ou positivas, e visam a obter comportamentos desejados ou a evitar os não desejados, recorrendo a sanções celestes ou terrenas. Logo nos vêm à mente os Dez mandamentos, para darmos o exemplo que nos é mais familiar: eles foram durante séculos, e ainda o são, o código moral por excelência do mundo cristão, a ponto de serem identificados com a lei inscrita no coração dos homens ou com a lei conforme à natureza. Mas podem-se aduzir outros inúmeros exemplos, desde o Código de Hamurabi até a Lei das doze tábuas. O mundo moral, tal como aqui o entendemos – como o remédio ao mal que o homem pode causar ao outro, nasce com a formulação, a imposição e a aplicação de mandamentos ou de proibições, e, portanto, do ponto de vista daqueles a quem são dirigidos os mandamentos e as proibições, de obrigações. Isso quer dizer que a figura deôntica originária é o dever, não o direito.”

 

 

“O problema da moral foi originariamente considerado mais do ângulo da sociedade do que daquele do indivíduo. E não podia ser de outro modo: aos códigos de regras de conduta foi atribuída a função de proteger mais o grupo em seu conjunto do que o indivíduo singular. Originariamente, a função do preceito “não matar” não era tanto a de proteger o membro individual do grupo, mas a de impedir uma das razões fundamentais da desagregação do próprio grupo. A melhor prova disso é o fato de que esse preceito, considerado justamente como um dos fundamentos da moral, só vale no interior do grupo: não vale em relação aos membros dos outros grupos.”

 

 

“Concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado; ou melhor, para citar o famoso artigo 2º da Declaração de 1789, a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem “é o objetivo de toda associação política”. Nessa inversão da relação entre indivíduo e Estado, é invertida também a relação tradicional entre direito e dever. Em relação aos indivíduos, doravante, primeiro vêm os direitos, depois os deveres; em relação ao Estado, primeiro os deveres, depois os direitos. A mesma inversão ocorre com relação à finalidade do Estado, a qual, para o organicismo, é a concórdia ciceroniana (a omónoia dos gregos), ou seja, a luta contra as facções que, dilacerando o corpo político, o matam; e, para o individualismo, é o crescimento do indivíduo, tanto quanto possível livre de condicionamentos externos. O mesmo ocorre com relação ao tema da justiça: numa concepção orgânica, a definição mais apropriada do justo é a platônica, para a qual cada uma das partes de que é composto o corpo social deve desempenhar a função que lhe é própria; na concepção individualista, ao contrário, justo é que cada um seja tratado de modo que possa satisfazer as próprias necessidades e atingir os próprios fins, antes de mais nada a felicidade, que é um fim individual por excelência.”

 

 

“A inflexão a que me referi, e que serve como fundamento para o reconhecimento dos direitos do homem, ocorre quando esse reconhecimento se amplia da esfera das relações econômicas interpessoais para as relações de poder entre príncipe e súditos, quando nascem os chamados direitos públicos subjetivos, que caracterizam o Estado de direito. É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.”

 

 

“O progresso, para Kant, não era necessário. Era apenas possível. Ele criticava os “políticos” por não terem confiança na virtude e na força da motivação moral, bem como por viverem repetindo que “o mundo foi sempre assim como o vemos hoje”. Kant comentava que, com essa atitude, tais “políticos” faziam com que o objeto de sua previsão – ou seja, a imobilidade e a monótona repetitividade da história – se realizasse efetivamente. Desse modo, retardavam propositalmente os meios que poderiam assegurar o progresso para o melhor.

Com relação às grandes aspirações dos homens de boa vontade, já estamos demasiadamente atrasados. Busquemos não aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo. Não temos muito tempo a perder.”

 

 

“No estado de natureza de Locke, que foi o grande inspirador das Declarações de Direitos do Homem, os homens são todos iguais, onde por “igualdade” se entende que são iguais no gozo da liberdade, no sentido de que nenhum indivíduo pode ter mais liberdade do que outro.”

 

 

“[Thomas Paine afirma que] A história nada prova salvo os nossos erros, dos quais devemos nos libertar. O único ponto de partida para escapar dela é reafirmar a unidade do gênero humano, que a história dividiu. Só assim se descobre que o homem, antes de ter direitos civis que são o produto da história, tem direitos naturais que os precedem; e esses direitos naturais são o fundamento de todos os direitos civis. Mais precisamente: “São direitos naturais os que cabem ao homem em virtude de sua existência. A esse gênero pertencem todos os direitos intelectuais, ou direitos da mente, e também todos os direitos de agir como indivíduo para o próprio bem-estar e para a própria felicidade que não sejam lesivos aos direitos naturais dos outros”.”

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Esquerdismo, doença infantil do comunismo – Vladimir Ilitch Lênin

Editora: livro distribuído

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 66

Sinopse: Esquerdismo: doença infantil do comunismo, escrito e publicado em 1920, foi o último livro de V. I. Lenin. A Rússia soviética passava por uma dura guerra civil (1918-1920) levada a cabo pelas forças burguesas e reacionárias – internas e estrangeiras – derrotadas em 1917. No movimento revolucionário internacional, estavam consolidados a falência da Segunda Internacional e o triunfo da estratégia e tática bolchevique na Rússia. E também se viviam as consequências imediatas do fim da Primeira Guerra Mundial, num clima de destruição e reconstrução.

Em 1919, Lenin propõe como tática para se fortalecer o movimento revolucionário – e a própria Revolução Russa – a criação da Terceira Internacional, que ficaria conhecida como a Internacional Comunista. O experimentado dirigente via a necessidade de um movimento revolucionário internacional para levar adiante a construção do socialismo, pois sabia que ele apenas se consolidaria e avançaria em direção a uma sociedade sem classes se os países do capitalismo desenvolvido também fizessem a sua revolução. Daí a sua preocupação com o movimento revolucionário na Alemanha, na Inglaterra e outros países.

O Esquerdismo (...) empreende uma crítica às correntes de esquerda na Europa com vista a consolidar uma força revolucionária que fizesse frente ao poder burguês e levasse ao triunfo a revolução em cada país. Empenhado em construir a Terceira Internacional, traça um breve histórico de construção do partido bolchevique na Rússia – tendo em conta as particularidades desta formação social – principalmente no que toca às táticas para tomar o poder de Estado. Com isso, também pretende demonstrar que a política está intimamente relacionada ao movimento das forças em luta na realidade. A luta de classes é a sua medida; e todas as táticas de luta são válidas se travadas de maneira revolucionária, isto é, se utilizadas como instrumento de divulgação das propostas e da consolidação das forças revolucionárias nos diversos setores da sociedade.

Neste sentido, a política não é feita somente a partir de princípios filosóficos, mas deve ser fruto de uma profunda análise da estrutura e da dinâmica das classes que a compõem; e deve estar vinculada a um único objetivo: tomar o Estado para começar a destruí-lo e forjar uma sociedade “em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.



“A ditadura do proletariado é a guerra mais severa e implacável da nova classe contra um inimigo mais poderoso, a burguesia, cuja resistência está decuplicada, em virtude de sua derrota (mesmo que em apenas um país), e cuja potência consiste não só na força do capital internacional, na força e na solidez das relações internacionais da burguesia, como também na força do costume, na força da pequena produção. Porque, infelizmente, continua a haver no mundo a pequena produção em grande escala, e ela cria capitalismo e burguesia constantemente, todo dia, a toda hora, através de um processo espontâneo e em massa. Por tudo isso, a ditadura do proletariado é necessária, e a vitória sobre a burguesia torna-se impossível sem uma guerra prolongada, tenaz, desesperada, mortal; uma guerra que exige serenidade, disciplina, firmeza, inflexibilidade e uma vontade única.”

 

 

“Quanto a outro inimigo do bolchevismo no movimento operário, a coisa já é bem diferente. Pouco se sabe, no estrangeiro, que o bolchevismo cresceu, formou-se e temperou-se, durante muitos anos, na luta contra o revolucionarismo pequeno-burguês, parecido com o anarquismo, ou que adquiriu dele alguma coisa, afastando-se, em tudo que é essencial, das condições e exigências de uma consequente luta de classes do proletariado. Para os marxistas está plenamente provado do ponto de vista teórico – e a experiência de todas as revoluções e movimentos revolucionários da Europa confirmam-no totalmente – que o pequeno proprietário, o pequeno patrão (tipo social muito difundido em vários países europeus e que tem caráter de massas), que, muitas vezes sofre sob o capitalismo uma pressão contínua e, amiúde, uma agravação terrivelmente brusca e rápida de suas precárias condições de vida, não sendo difícil arruinar-se, passa-se facilmente para uma posição ultra-revolucionária, mas é incapaz de manifestar serenidade, espírito de organização, disciplina e firmeza. O pequeno-burguês “enfurecido” pelos horrores do capitalismo é, como o anarquismo, um fenômeno social comum a todos os países capitalistas. São por demais conhecidas a inconstância e a esterilidade dessas veleidades revolucionárias, assim como a facilidade com que se transformam rapidamente em submissão, apatia, fantasias, e mesmo num entusiasmo “furioso” por essa ou aquela tendência burguesa “em moda”.”

 

 

“Todo proletário conhece greves, conhece “compromissos” com os odiados opressores e exploradores, depois dos quais os operários tiveram de voltar ao trabalho sem haver conseguido nada ou contentando-se com a satisfação parcial de suas reivindicações. Todo proletário, graças ao ambiente de luta de massas e do acentuado agravamento dos antagonismos de classe em que vive, percebe a diferença existente entre um compromisso imposto por condições objetivas (pobreza de fundos financeiros dos grevistas, que não contam com apoio algum, passam fome e estão extenuados ao máximo) – compromisso que em nada diminui a abnegação revolucionária nem a disposição de continuar. A luta dos operários que o assumiram – e um compromisso de traidores que atribuem a causas objetivas seu vil egoísmo (os fura-greves também assumem “compromissos”!), sua covardia, seu desejo de atrair a simpatia dos capitalistas, sua falta de firmeza ante as ameaças e, às vezes, ante as exortações, as esmolas ou as adulações dos capitalistas.”

 

 

“A lei fundamental da revolução, confirmada por todas as revoluções, e em particular pelas três revoluções russas do século XX, consiste no seguinte: para a revolução não basta que as massas exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de continuar vivendo como vivem e exijam transformações; para a revolução é necessário que os exploradores não possam continuar vivendo e governando como vivem e governam. Só quando os “de baixo” não querem e os “de cima” não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar. Em outras palavras, esta verdade exprime-se do seguinte modo: a revolução é impossível sem uma crise nacional geral (que afete explorados e exploradores). Por conseguinte, para fazer a revolução é preciso conseguir, em primeiro lugar, que a maioria dos operários (ou, em todo caso, a maioria dos operários conscientes, pensantes, politicamente ativos) compreenda a fundo a necessidade da revolução e esteja disposta a sacrificar a vida por ela; em segundo lugar, é preciso que as classes dirigentes atravessem uma crise governamental que atraia à política inclusive as massas mais atrasadas (o sintoma de toda revolução verdadeira é a decuplicação ou centuplicação do número de homens aptos para a luta política, homens pertencentes à massa trabalhadora e oprimida, antes apática), que reduza o governo à impotência e torne possível sua rápida derrubada pelos revolucionários.”

 

 

“A vanguarda proletária está ideologicamente conquistada. Isto é o principal. Sem isto não é possível dar sequer o primeiro passo para a vitória. Mas daí para o triunfo ainda falta uma grande distância a percorrer. Apenas com a vanguarda é impossível triunfar. Lançar a vanguarda sozinha à batalha decisiva, quando toda a classe, quando as grandes massas ainda não adotaram uma posição de apoio direto a essa vanguarda ou, pelo menos, de neutralidade simpática, e não são totalmente incapazes de apoiar o adversário, seria não só uma estupidez, como um crime. E para que realmente toda a classe, para que realmente as grandes massas dos trabalhadores e dos oprimidos pelo capital cheguem a ocupar essa posição, a propaganda e a agitação, por si, são insuficientes. Para isso necessita-se da própria experiência política das massas. Tal é a lei fundamental de todas as grandes revoluções, confirmada hoje com força e realce surpreendentes tanto pela, Rússia como pela Alemanha. Não só as massas incultas, em muitos casos analfabetas, da Rússia, como também as massas da Alemanha, muito cultas, sem nenhum analfabeto, precisaram experimentar em sua própria carne toda a impotência, toda a veleidade, toda a fraqueza, todo o servilismo ante a burguesia, toda a infâmia do governo dos cavalheiros da II Internacional, toda a inelutabilidade da ditadura dos ultrarreacionários (Kornilov na Rússia, Kapp & Cia. na Alemanha), única alternativa diante da ditadura do proletariado, para orientar-se decididamente rumo ao comunismo.

A tarefa imediata da vanguarda consciente do movimento operário internacional, isto é, dos partidos, grupos e tendências comunistas, consiste em saber atrair as amplas massas (hoje, em sua maior parte, ainda adormecidas, apáticas, rotineiras, inertes) para essa sua nova posição, ou, mais bem dizendo, em saber dirigir não só seu próprio partido, como também essas massas no período de sua aproximação, de seu deslocamento para essa nova posição. Se a primeira tarefa histórica (ganhar para o Poder Soviético e para a ditadura da classe operária a vanguarda consciente do proletariado) não podia ser cumprida sem uma vitória ideológica e política completa sobre o oportunismo e o social-chovinismo, a segunda tarefa, que é agora imediata e que consiste em saber atrair as massas para essa nova posição capaz de assegurar o triunfo da vanguarda na revolução, não pode ser cumprida sem liquidar o doutrinarismo de esquerda, sem corrigir completamente seus erros, sem desembaraçar-se deles.”

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Retrato macabro – Heather Graham

Editora: Harlequin Books
ISBN: 978-85-7687-074-6
Tradução: Cristina Vaz de Carvalho
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 402
Sinopse: Quando o corpo mutilado de uma mulher é encontrado na estrada, a retratista e oficial em treinamento Ashey Montague é escalada para trabalhar ao lado do detetive Jake Dilessio em uma investigação que os leva diretamente para o submundo da cobiça, de policiais corruptos e assassinatos.



“– Por isso que Ashley é magra – reparou Jan. – Ela decorou a frase ‘é só dizer que não’.”


“– Não é tão tarde assim. E você não tem que arranjar compromisso com ninguém. Só se divertir, Ashley. Sou professora. Passo minha vida cercada de criancinhas. Ensino o ABC, e dois mais dois, e lavem as mãozinhas e assoem o nariz o dia inteiro. Já faz quase um ano que não tenho o que você chamaria de um namorado de verdade – e aquele arrepio não me faz falta! Mas sinto falta... de companhia. Está bem, e de sexo. Nunca tem vontade de fazer apenas sexo?
– Karen, sexo é bom demais. Mas você pode preferir conhecer o sujeito um pouco melhor.
– Não sei – provocou Jan, retocando o batom. – Às vezes o sujeito é muito melhor antes de você conhecer.”


“Andou na direção dela. Não havia nada de ameaçador no comportamento dele; continuou sorrindo. Ela reparou em uma cesta com tomates de um vermelho vivo, no lugar onde ele estivera. Também uma protuberância logo abaixo dos quadris. Teve vontade de dizer, como Mae West no filme: – Isso é uma pistola, ou você só está feliz de me ver?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A elegância do ouriço, de Muriel Barbery

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1177-0

Tradução: Rosa Freire Aguiar

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 352

Sinopse: À primeira vista, não se nota grande movimento no número 7 da Rue de Grenelle: o endereço é chique, e os moradores são gente rica e tradicional. Para ingressar no prédio e poder conhecer seus personagens, com suas manias e segredos, será preciso infiltrar um agente ou uma agente ou - por que não? - duas agentes. É justamente o que faz Muriel Barbery em A elegância do ouriço, seu segundo romance.

Para começar, dando voz a Renée, que parece ser a zeladora por excelência: baixota, ranzinza e sempre pronta a bater a porta na cara de alguém. Na verdade, uma observadora refinada, ora terna, ora ácida, e um personagem complexo, que apaga as pegadas para que ninguém adivinhe o que guarda na toca: um amor extremado às letras e às artes, sem as nódoas de classe e de esnobismo que mancham o perfil dos seus muitos patrões.

E ainda há Paloma, a caçula da família Josse. O pai é um figurão da política, a mãe dondoca tem doutorado em letras, a irmã mais velha jura que é filósofa, mas Paloma conhece bem demais o verso e o reverso da vida familiar para engolir a história oficial. Tanto que se impõe um desafio terrível: ou descobre algum sentido para a vida, ou comete suicídio (seguido de incêndio) no seu aniversário de treze anos. Enquanto a data não chega, mantém duas séries de anotações pessoais e filosóficas: os Pensamentos Profundos e o Diário do Movimento do Mundo, crônicas de suas experiências íntimas e também da vida no prédio.

As vozes da garota e da zeladora, primeiro paralelas, depois entrelaçadas, vão desenhando uma espiral em que se misturam argumentos filosóficos, instantes de revelação estética, birras de classe e maldades adolescentes, poemas orientais e filmes blockbuster. As duas filósofas, Renée e Paloma, estão inteiramente entregues a esse ímpeto satírico e devastador, quando chega de mudança o bem-humorado Kakuro Ozu, senhor japonês com nome de cineasta que, sem alarde, saberá salvá-las tanto da mediocridade geral como dos próprios espinhos.



“Que podem entender as massas trabalhadoras sobre a obra de Marx? A leitura é árdua, a língua, apurada, a prosa, sutil, e a tese, complexa.

Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler Ideologia Alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual está aparafusada uma certeza fundamental: os homens, que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem às suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.

‘Quem semeia desejo colhe opressão’, estou prestes a murmurar como se só meu gato me escutasse.”

 

 

“Por mais que se diga, por mais que se façam grandes discursos sobre a evolução, a civilização e um monte de palavras em “ção”, o homem não progrediu muito desde seus primórdios: continua a crer que não está aqui por acaso e que deuses em sua maioria benevolentes zelam por seu destino.”

 

 

“De agora em diante, a filosofia se autoriza a só se satisfazer no estupro do puro espírito. O mundo é uma realidade inacessível que seria inútil tentar conhecer. Que conhecemos do mundo? Nada. Como todo conhecimento é apenas a auto-exploração da consciência reflexiva por si mesma, pode-se, portanto, mandar o mundo para o quinto dos infernos.”

 

 

Pensamento profundo nº 5

A vida

De todos

Esse serviço militar

 

 

“Qual é o problema de minha irmã Colombe? Isso, eu não sei. Talvez, de tanto querer esmagar todo mundo, ela tenha se transformado em soldado, no sentido literal do termo. Então, faz tudo certinho, esfrega, limpa, igual no exército. É sabido que o soldado é obcecado pela ordem e pela limpeza. Precisa disso para lutar contra a desordem da batalha, a sujeira da guerra e todos esses pedacinhos de homens que ela deixa atrás de si.”

 

 

“Assim, como se passa a vida? Nós nos esforçamos bravamente, dia após dia, para assumir nosso papel nessa comédia fantasma. Como primatas que somos, o essencial de nossa atividade consiste em manter e entreter nosso território de tal modo que nos proteja e nos envaideça, em escalar, ou pelo menos em não descer, a escada hierárquica da tribo, e em fornicar de todas as maneiras possíveis – ainda que como um fantasma – tanto para o prazer como para a descendência prometida. Assim, gastamos parte não desprezível de nossa energia a intimidar ou seduzir, já que essas duas estratégias garantem, sozinhas, a busca territorial, hierárquica e sexual que anima nosso contato. Mas nada disso chega à nossa consciência. Falamos de amor, de bem e de mal, de filosofia e de civilização, e nos agarramos a esses ícones respeitáveis como o carrapato sedento a seu cão bem quentinho.

Às vezes, porém, a vida nos parece uma comédia fantasma. Como tirados de um sonho, olhamos os outros agir e, gelados ao verificarmos o dispêndio vital requerido pela manutenção de nossos requisitos primitivos, perguntamos com espanto o que restou da Arte. Nosso frenesi de caretas e olhadelas nos parece de repente o cúmulo da insignificância, nosso pequeno ninho tão macio, fruto de um endividamento de vinte anos, parece um inútil costume bárbaro, e nossa posição na escala social, tão duramente conquistada e tão eternamente precária, parece de uma grosseira inutilidade. Quanto à nossa descendência, nós a contemplamos com um olhar novo e horrorizado porque, sem as vestes do altruísmo, o ato de se reproduzir parece profundamente deslocado. Restam apenas os prazeres sexuais; mas, arrastados no rio da miséria primal, eles vacilam da mesma forma, pois a ginástica sem o amor não entra no quadro de nossas lições bem aprendidas.

A eternidade nos escapa.

Nestes dias em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. Acabam-se os ricos e os pobres, os pensadores, os pesquisadores, os gestores, os escravos, os gentis e os malvados, os criativos e os conscienciosos, os sindicalistas e os individualistas, os progressistas e os conservadores; não são mais que hominídeos primitivos, e suas caretas e risos, seus comportamentos e enfeites, sua linguagem e seus códigos, inscritos na carta genética do primata médio, significam apenas isto: manter o próprio nível ou morrer.

Nesses dias, precisamos desesperadamente da Arte. Aspiramos ardentemente a retomar nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.”

 

 

“No universo tudo é compensação. Quem vai mais devagar empurra com mais força.”

 

 

“A Civilização é a violência dominada, a vitória sempre inacabada contra a agressividade do primata.”

 

 

“Pois a Arte é a vida, mas num outro ritmo”.

 

 

“Mamãe anunciou ontem à noite, no jantar, como se fosse um motivo para o champanhe correr à rodo, que fazia dez anos exatos que ela avia começado sua “aanáálise”. Todos concordarão em dizer que é ma-ra-vi-lho-so! Acho que só mesmo a psicanálise para concorrer com o cristianismo em matéria de amor aos sofrimentos que duram. O que mamãe não diz é que também faz dez anos que toma antidepressivos. Mas, visivelmente, não liga uma coisa à outra. Acho que não é para aliviar suas angústias que toma antidepressivos, mas para suportar a análise. Quando conta suas sessões, é de bater a cabeça na parede. O cara faz “hum” a intervalos regulares, repetindo seus fins de frase (“E fui ao Lenôtre com minha mãe”: “Hum, sua mãe?”, “Adoro chocolate”: “Hum, chocolate”). Se é assim, posso virar psicanalista amanhã.”

 

 

“Prosseguimos com a definição da inteligência, e ele me perguntou se podia anotar no seu caderninho a minha fórmula: ‘Não é um dom sagrado, é a única arma dos primatas’.”

 

 

“Há sempre a via da felicidade, embora eu repugne tomá-la. Não tenho filhos, não assisto televisão e não acredito em Deus, e são esses todos os sendeiros que os homens pegam para que a vida lhes seja mais fácil. Os filhos ajudam a diferir a dolorosa tarefa de enfrentar a si mesmo, e depois os netos que se virem. A televisão distrai da extenuante necessidade de construir projetos com base no nada de nossas existências frívolas; embaindo os olhos, ela livra o espírito da grande obra do sentido. Deus, enfim, acalma nossos temores de mamíferos e a insuportável perspectiva de que nossos prazeres um dia chegam ao fim. Assim, sem futuro nem descendência, sem pixels para embrutecer a cósmica consciência do absurdo, creio poder dizer que não escolhi a via da felicidade.”

 

 

“Pois a arte é a emoção sem o desejo.”

 

 

“Mas quem caça a eternidade recolhe a solidão.”