quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A elegância do ouriço, de Muriel Barbery

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1177-0

Tradução: Rosa Freire Aguiar

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 352

Sinopse: À primeira vista, não se nota grande movimento no número 7 da Rue de Grenelle: o endereço é chique, e os moradores são gente rica e tradicional. Para ingressar no prédio e poder conhecer seus personagens, com suas manias e segredos, será preciso infiltrar um agente ou uma agente ou - por que não? - duas agentes. É justamente o que faz Muriel Barbery em A elegância do ouriço, seu segundo romance.

Para começar, dando voz a Renée, que parece ser a zeladora por excelência: baixota, ranzinza e sempre pronta a bater a porta na cara de alguém. Na verdade, uma observadora refinada, ora terna, ora ácida, e um personagem complexo, que apaga as pegadas para que ninguém adivinhe o que guarda na toca: um amor extremado às letras e às artes, sem as nódoas de classe e de esnobismo que mancham o perfil dos seus muitos patrões.

E ainda há Paloma, a caçula da família Josse. O pai é um figurão da política, a mãe dondoca tem doutorado em letras, a irmã mais velha jura que é filósofa, mas Paloma conhece bem demais o verso e o reverso da vida familiar para engolir a história oficial. Tanto que se impõe um desafio terrível: ou descobre algum sentido para a vida, ou comete suicídio (seguido de incêndio) no seu aniversário de treze anos. Enquanto a data não chega, mantém duas séries de anotações pessoais e filosóficas: os Pensamentos Profundos e o Diário do Movimento do Mundo, crônicas de suas experiências íntimas e também da vida no prédio.

As vozes da garota e da zeladora, primeiro paralelas, depois entrelaçadas, vão desenhando uma espiral em que se misturam argumentos filosóficos, instantes de revelação estética, birras de classe e maldades adolescentes, poemas orientais e filmes blockbuster. As duas filósofas, Renée e Paloma, estão inteiramente entregues a esse ímpeto satírico e devastador, quando chega de mudança o bem-humorado Kakuro Ozu, senhor japonês com nome de cineasta que, sem alarde, saberá salvá-las tanto da mediocridade geral como dos próprios espinhos.



“Que podem entender as massas trabalhadoras sobre a obra de Marx? A leitura é árdua, a língua, apurada, a prosa, sutil, e a tese, complexa.

Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler Ideologia Alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual está aparafusada uma certeza fundamental: os homens, que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem às suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.

‘Quem semeia desejo colhe opressão’, estou prestes a murmurar como se só meu gato me escutasse.”

 

 

“Por mais que se diga, por mais que se façam grandes discursos sobre a evolução, a civilização e um monte de palavras em “ção”, o homem não progrediu muito desde seus primórdios: continua a crer que não está aqui por acaso e que deuses em sua maioria benevolentes zelam por seu destino.”

 

 

“De agora em diante, a filosofia se autoriza a só se satisfazer no estupro do puro espírito. O mundo é uma realidade inacessível que seria inútil tentar conhecer. Que conhecemos do mundo? Nada. Como todo conhecimento é apenas a auto-exploração da consciência reflexiva por si mesma, pode-se, portanto, mandar o mundo para o quinto dos infernos.”

 

 

Pensamento profundo nº 5

A vida

De todos

Esse serviço militar

 

 

“Qual é o problema de minha irmã Colombe? Isso, eu não sei. Talvez, de tanto querer esmagar todo mundo, ela tenha se transformado em soldado, no sentido literal do termo. Então, faz tudo certinho, esfrega, limpa, igual no exército. É sabido que o soldado é obcecado pela ordem e pela limpeza. Precisa disso para lutar contra a desordem da batalha, a sujeira da guerra e todos esses pedacinhos de homens que ela deixa atrás de si.”

 

 

“Assim, como se passa a vida? Nós nos esforçamos bravamente, dia após dia, para assumir nosso papel nessa comédia fantasma. Como primatas que somos, o essencial de nossa atividade consiste em manter e entreter nosso território de tal modo que nos proteja e nos envaideça, em escalar, ou pelo menos em não descer, a escada hierárquica da tribo, e em fornicar de todas as maneiras possíveis – ainda que como um fantasma – tanto para o prazer como para a descendência prometida. Assim, gastamos parte não desprezível de nossa energia a intimidar ou seduzir, já que essas duas estratégias garantem, sozinhas, a busca territorial, hierárquica e sexual que anima nosso contato. Mas nada disso chega à nossa consciência. Falamos de amor, de bem e de mal, de filosofia e de civilização, e nos agarramos a esses ícones respeitáveis como o carrapato sedento a seu cão bem quentinho.

Às vezes, porém, a vida nos parece uma comédia fantasma. Como tirados de um sonho, olhamos os outros agir e, gelados ao verificarmos o dispêndio vital requerido pela manutenção de nossos requisitos primitivos, perguntamos com espanto o que restou da Arte. Nosso frenesi de caretas e olhadelas nos parece de repente o cúmulo da insignificância, nosso pequeno ninho tão macio, fruto de um endividamento de vinte anos, parece um inútil costume bárbaro, e nossa posição na escala social, tão duramente conquistada e tão eternamente precária, parece de uma grosseira inutilidade. Quanto à nossa descendência, nós a contemplamos com um olhar novo e horrorizado porque, sem as vestes do altruísmo, o ato de se reproduzir parece profundamente deslocado. Restam apenas os prazeres sexuais; mas, arrastados no rio da miséria primal, eles vacilam da mesma forma, pois a ginástica sem o amor não entra no quadro de nossas lições bem aprendidas.

A eternidade nos escapa.

Nestes dias em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. Acabam-se os ricos e os pobres, os pensadores, os pesquisadores, os gestores, os escravos, os gentis e os malvados, os criativos e os conscienciosos, os sindicalistas e os individualistas, os progressistas e os conservadores; não são mais que hominídeos primitivos, e suas caretas e risos, seus comportamentos e enfeites, sua linguagem e seus códigos, inscritos na carta genética do primata médio, significam apenas isto: manter o próprio nível ou morrer.

Nesses dias, precisamos desesperadamente da Arte. Aspiramos ardentemente a retomar nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.”

 

 

“No universo tudo é compensação. Quem vai mais devagar empurra com mais força.”

 

 

“A Civilização é a violência dominada, a vitória sempre inacabada contra a agressividade do primata.”

 

 

“Pois a Arte é a vida, mas num outro ritmo”.

 

 

“Mamãe anunciou ontem à noite, no jantar, como se fosse um motivo para o champanhe correr à rodo, que fazia dez anos exatos que ela avia começado sua “aanáálise”. Todos concordarão em dizer que é ma-ra-vi-lho-so! Acho que só mesmo a psicanálise para concorrer com o cristianismo em matéria de amor aos sofrimentos que duram. O que mamãe não diz é que também faz dez anos que toma antidepressivos. Mas, visivelmente, não liga uma coisa à outra. Acho que não é para aliviar suas angústias que toma antidepressivos, mas para suportar a análise. Quando conta suas sessões, é de bater a cabeça na parede. O cara faz “hum” a intervalos regulares, repetindo seus fins de frase (“E fui ao Lenôtre com minha mãe”: “Hum, sua mãe?”, “Adoro chocolate”: “Hum, chocolate”). Se é assim, posso virar psicanalista amanhã.”

 

 

“Prosseguimos com a definição da inteligência, e ele me perguntou se podia anotar no seu caderninho a minha fórmula: ‘Não é um dom sagrado, é a única arma dos primatas’.”

 

 

“Há sempre a via da felicidade, embora eu repugne tomá-la. Não tenho filhos, não assisto televisão e não acredito em Deus, e são esses todos os sendeiros que os homens pegam para que a vida lhes seja mais fácil. Os filhos ajudam a diferir a dolorosa tarefa de enfrentar a si mesmo, e depois os netos que se virem. A televisão distrai da extenuante necessidade de construir projetos com base no nada de nossas existências frívolas; embaindo os olhos, ela livra o espírito da grande obra do sentido. Deus, enfim, acalma nossos temores de mamíferos e a insuportável perspectiva de que nossos prazeres um dia chegam ao fim. Assim, sem futuro nem descendência, sem pixels para embrutecer a cósmica consciência do absurdo, creio poder dizer que não escolhi a via da felicidade.”

 

 

“Pois a arte é a emoção sem o desejo.”

 

 

“Mas quem caça a eternidade recolhe a solidão.”

Um comentário:

Doney disse...

No primeiro trecho aqui extratado a autora refere-se a um livro de Marx e Engels, “A Ideologia Alemã”, dizendo que Marx está errado por acreditar que os homens “se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem às suas necessidades”.
Provavelmente ela retirou tal compreensão deste trecho:
“A organização comunista atua de maneira dupla sobre os anseios que produzem as condições atuais no indivíduo: uma parte desses anseios, a saber, aquela que existe sob todas as condições e que é transformada apenas em sua forma e tendência pelas distintas condições sociais, também só é transformada sob essa nova forma social quando lhe são dados os meios para o seu desenvolvimento normal; uma outra parte, em contrapartida, a saber, aqueles anseios que devem sua origem tão somente a uma determinada forma social, a determinadas condições de produção e intercâmbio, é totalmente privada de suas condições vitais. Ora, quais são os anseios que, sob a organização comunista, serão transformados e quais os que serão desfeitos é algo que só se pode decidir de forma prática, pela transformação dos “anseios” reais, práticos, e não mediante comparações com condições históricas. (...)
OS COMUNISTAS NEM COGITAM EM ABOLIR ESSA FIXIDEZ DE SEUS ANSEIOS E NECESSIDADES, como Stirner, no seu mundo fantasioso, imputa a eles e a todos os demais seres humanos; eles apenas almejam uma organização da produção e do intercâmbio que lhes possibilite a satisfação normal de todas as suas necessidades, isto é, limitada apenas pelas próprias necessidades.” (Destaque meu)

Quando se avalia toda a obra, Marx não afirma o que Barbery relata, muito ao contrário, ao longo tanto deste livro citado quanto de várias outras obras (Manuscritos econômico-filosóficos, o Manifesto Comunista, Crítica do Programa de Gotha etc.), ele diverge asperamente daqueles que desejam limitar o atendimento de desejos e necessidades humanos – notoriamente os românticos, e partidários do feudalismo.
Ver um autor ser criticado por defender uma ideia quando ele na verdade defende o oposto dela é particularmente impressionante.
Não entrarei no mérito se o relato de Barbery foi fruto de uma má leitura da obra marxiana ou apenas desonestidade intelectual.

Abaixo, cito apenas um trecho de “A Ideologia Alemã” que desmente peremptoriamente o que ela afirmou:

“Devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.
O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido CONDUZEM A NOVAS NECESSIDADES – e essa produção de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico.”