quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O totem do lobo – Jiang Rong

Editora: Sextante
ISBN: 978-85-99296-32-5
Tradução: Vera Ribeiro
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 506
Sinopse: Na década de 1960, em plena Revolução Cultural da China, o jovem estudante Chen Zhen parte para as estepes do Olonbulag, na Mongólia Interior. Sob a tutela do sábio Bilgee, Chen aprende muito mais do que pastorear ovelhas: ele descobre como superar as dificuldades da vida nômade e a sinergia milenar que une o povo aos lobos selvagens das planícies.
Fascinado pela relação entre os homens e esses animais temidos e idolatrados, Chen compreende a rica relação espiritual que existe entre esses adversários e o que cada um pode aprender com o outro.
No entanto, a paz da existência solitária de Chen é destruída quando membros da República Popular formam multidões nas cidades para levar modernização e produtividade aos campos, interrompendo o delicado equilíbrio entre os habitantes das estepes.
Usando o lobo como metáfora, Jiang Rong constrói uma linda história, que é também uma dura crítica aos ideais da revolução, expondo a grave ferida aberta na cultura milenar que o estudante Chen aprendeu a amar e defender.
O totem do lobo é um belo e comovente retrato de uma terra e uma cultura que não existem mais e, ao mesmo tempo, uma revelação fascinante da visão do país sobre si mesmo, sua história e seu povo.


“Quando o pelo dos lobos brilha, eles estão com fome.”


“A paciência é a chave de uma boa caçada.”


“– Todos dizem que as peles de lobo são a forração mais quente que existe. As pessoas daqui, caçadores e pastores, matam muitos lobos, mas nunca vi uma pele na casa de um pastor. Por quê? As únicas que vi foram um capacho na casa do Dorji e um par de culotes que o pai dele usa em cima das calças de pele de ovelha, com o pelo virado para fora.
– Dorji é um mongol do noroeste – disse o velho. – Eles são lavradores que possuem algumas cabeças de gado e ovelhas, mas convivem com os chineses há tanto tempo que começaram a adotar os costumes dos han. As pessoas que vêm de fora se esqueceram dos mongóis e de sua própria origem. Quando morre alguém em sua família, elas o colocam num caixão e o enterram, em vez de dá-los aos lobos como alimento. Então é claro que não veem nada de errado em usar peles de lobo como culotes. Aqui nas estepes as peles de lobo são mais grossas e mais densas, de modo que não há nada melhor para acabar com o frio. Duas peles de ovelha juntas não o manterão tão aquecido quanto uma única pele de lobo. Mas nós não as usamos como roupa de cama. Temos muito respeito por esses animais. Um mongol que não os respeita não é um mongol de verdade. Preferimos morrer congelados a dormir sobre uma pele de lobo, porque isso insulta os deuses mongóis e faz com que nossas almas não sigam para o Tengri. Por que você acha que o Tengri concede suas graças aos lobos?
– O senhor não disse que os lobos são os espíritos protetores das estepes? – Chen Zen perguntou.
– Certo – concordou o velho, com os olhos espremidos pelo sorriso largo. – É exatamente isso. Tengri é o pai, estepe é a mãe, e os lobos só matam os animais que a prejudicam. Como o Tengri poderia não favorecê-los?”


“– Quando você vive como nômade nas estepes por um período prolongado, não faz diferença a que grupo étnico pertença, já que, mais cedo ou mais tarde, começa a adorar os lobos e a tratá-los como mentores. Foi o que aconteceu com os hunos, os wusuns, os turcos, os mongóis e outros povos. Pelo menos é o que dizem os livros. Mas os chineses são uma exceção. Eu garanto que eles poderiam viver aqui por gerações sem adorar o totem do lobo.
– Talvez sim, talvez não – disse Chen, puxando as rédeas do cavalo. – Veja eu, por exemplo. Os lobos me conquistaram em pouco mais de dois anos.
– Mas a grande maioria dos chineses é composta por lavradores – objetou Yang. Os han têm uma mentalidade camponesa impossível de modificar, e, se mudassem para cá, eu ficaria surpreso se não tirassem a pele de todos os lobos das estepes. Somos uma raça de agricultores, o medo e o ódio pelos lobos está no nosso sangue. Como poderíamos venerar um lobo como totem? Nós cultuamos o Rei Dragão, o único que olha por nossa linhagem agrária, nosso totem do dragão, aquele a que rendemos homenagens, aquele a que nos submetemos humildemente. Como se poderia esperar que essas pessoas aprendessem com os lobos, os protegessem, adorassem e, ainda assim, os matassem, como fazem os mongóis? Só o totem de um povo é realmente capaz de despertar seu espírito e seu caráter étnicos, seja ele um dragão ou um lobo. As diferenças entre o povo agrário e os nômades são simplesmente grandes demais. Antigamente, quando estávamos imersos no vasto oceano chinês dos han, não tínhamos ideias dessas diferenças, mas, vindo para cá, as fraquezas inerentes a nossos antecedentes se tornaram óbvias. Sim, meu pai é um professor de renome, mas o avô dele e a avó da minha mãe eram camponeses.”


“De acordo com a prática secular do Olonbulag, quando morre um pastor as pessoas o despem e enrolam seu corpo num feltro, embora, às vezes, deixem o cadáver vestido e abram mão do feltro. Depois colocam o corpo numa carroça, em cima de uma tábua comprida, atravessada e firmada sobre os eixos. Nas horas que antecedem o amanhecer, os dois homens mais velhos da família conduzem a carroça até o local do funeral celeste, onde chicoteiam os cavalos para que eles partam a galope. Inevitavelmente, o corpo cai da carroça, e esse é o ponto de partida para o retorno de sua alma ao Tengri. Os dois parentes desmontam e, quando o corpo está despido, desenrolam o feltro e estendem o morto no chão, de costas, virado para o céu, exatamente como veio ao mundo, nu e inocente. Nesse momento, o morto pertence aos lobos e aos deuses. Se sua alma entrará ou não no Tengri vai depender das virtudes que ele teve em vida ou da falta delas. Em geral toma-se conhecimento disso em três dias. Se, depois desse prazo, não resta nada além dos ossos do cadáver, é porque sua alma entrou no Tengri. Mas se o morto permanecer mais ou menos intacto a família entra em pânico. Entretanto, há muitos lobos no Olonbulag e Chen nunca ouviu falar de uma única pessoa cuja alma não houvesse entrado no Tengri.
Ele já conhecia os funerais celestes tibetanos, mas só ao chegar às estepes descobrira que essa também era uma prática mongol, com os lobos substituindo as águias como agentes fúnebres.”


“– Quando falta a um homem ou a uma raça o espírito de preferir a morte à rendição, a disposição de morrer junto com o inimigo, o resultado inevitável é a escravidão. Qualquer um que tome como modelo o espírito suicida dos lobos se tornará um herói e será enaltecido com canções e lágrimas. Aprender a lição errada leva ao fascismo dos samurais, e quem não prefere a morte à rendição sempre sucumbirá a eles – disse Bilgee.”


“(...) – No fim não é exagero dizer que os lobos estão por trás da natureza selvagem e feroz dos garanhões mongóis. (...) Esses animais são os déspotas das estepes. Temem que uma alcatéia ataque suas fêmeas e suas crias, mas, fora isso, não têm medo de mais nada, nem de lobos nem de seres humanos, com certeza. É comum falarmos sobre trabalhar como um boi ou um cavalo, mas isso não tem nada a ver com os garanhões. Não há muita diferença entre uma tropa de cavalos mongóis e uma tropa selvagem, a não ser, é claro, pelos capões. Passei muito tempo com os cavalos, mas ainda não consigo imaginar o que a população primitiva fez para domesticá-los. Como essa gente descobriu que poderia montar um cavalo se o castrasse?
Chen e Yang se entreolharam e apenas balançaram a cabeça. Satisfeito com essa reação, Zhang continuou:
– Passei muito tempo pensando nisso e acho que os primeiros habitantes das estepes encontraram meios de capturar garanhões selvagens feridos por lobos. Depois de tratá-los até que se recuperassem, não conseguiram montá-los, mesmo quando tinham um sucesso modesto com cavalos ainda pequenos. Assim, continuaram tentando, com diversos cavalos feridos, geração após geração, até que um dia pegaram um cavalo cujos testículos tinham sido arrancados a dentadas, talvez um potro de dois anos, e conseguiram montá-lo quando ele atingiu a maturidade... e isso os levou à conclusão óbvia. Seja como for que tenha acontecido, foi algo complexo e deve ter levado muito tempo. E muitos habitantes primitivos das estepes devem ter morrido tentando. Esse é um dos maiores avanços da história humana, muito mais significativo que o papel, a impressão, a bússola e a pólvora, as quatro grandes invenções da China. Sem os cavalos, a vida na antiguidade seria inimaginável, muito pior do que vivermos sem automóveis, trens e tanques na sociedade moderna. E é por isso que as contribuições dos antigos nômades para a humanidade são incalculáveis.”


“– O espírito de luta é mais importante que o espírito pacífico de trabalho. A maior obra de engenharia do mundo, em termos de produção da mão-de-obra, a nossa Grande Muralha, não resistiu aos guerreiros montados de uma das menores raças do mundo. Se você sabe trabalhar mas não é capaz de lutar, quem é você? É como um capão: trabalha para as pessoas, ouve desaforos delas e lhes serve de transporte. E, ao se deparar com um lobo, enfia o rabo entre as pernas e foge. Agora, compare isso com um daqueles garanhões que usam os dentes e os cascos como armas.”


“Nas lutas entre cães e lobos, o ventre dos adversários é um alvo muito importante. Quando um consegue atingir a barriga do outro, aquele que foi ferido está condenado. É por isso que nem os cães nem os lobos expõem a barriga a ninguém, animal ou humano, em quem não tenham absoluta confiança.”


“– Agora entendo como a cavalaria de Gêngis Khan conseguia se deslocar tão depressa. Os lobos obrigavam os cavalos a correr noite após noite, e eles ganhavam velocidade e energia para percorrer longas distâncias. É comum eu assistir à sua luta incessante e trágica pela sobrevivência contra esses predadores. Os lobos atacam à noite, de forma implacável, e nunca desistem, não dando aos cavalos a chance de descansar. Quando ficam para trás, os cavalos velhos, doentes, lentos e pequenos, assim como os potros e as éguas prenhes, são cercados e devorados vivos. Você nunca viu a triste cena de cavalos correndo para salvar a vida. Eles não param, soltando espuma pela boca e banhados de suor. Alguns usam toda sua força para escapar e morrem assim que param e se deitam. Literalmente morrem de cansaço. Os mais velozes às vezes conseguem algum intervalo para devorar um pouco de capim. Ficam tão famintos que são capazes de comer qualquer coisa, até juncos secos, e têm tanta sede que bebem de tudo, inclusive água salobra, mesmo misturada com urina de bois e ovelhas. Os cavalos mongóis vêm em primeiro lugar em matéria de força, energia, digestão, sistema imunológico e capacidade de resistir ao calor e ao frio. Mas só os tropeiros sabem que todas essas qualidades foram desenvolvidas à força, pela velocidade e pelas presas dos lobos. (...)
– Lembro-me de você ter dito que todas as tribos das estepes que travaram batalhas aqui, desde os quanrongs, os hunos, os tungus e os turcos até os mongóis de hoje, compreendiam os segredos e o valor dos lobos. Isso faz cada vez mais sentido para mim. Os lobos deram aos mongóis a natureza feroz dos combatentes, a sabedoria da guerra sofisticada e os melhores cavalos de batalha. Essas três vantagens militares tornaram possíveis suas impressionantes conquistas.”


“Segundo Bilgee, em tempos antigos os cães-da-pradaria eram usados como alvos vivos para crianças mongóis treinarem arco-e-flecha. Escolhidos por sua velocidade e pela visão aguçada, eram bons alvos para as crianças da Mongólia, que eram instruídas a não voltar para casa enquanto não acertassem o número de animais que seus pais determinavam. O parque de diversões dessas crianças eram as estepes, e essa era sua brincadeira favorita. Era comum elas ficarem tão entretidas que se esqueciam de ir para casa comer. Já mais velhas, trocavam seus pequenos arcos por outros maiores e exercitavam o tiro a cavalo. Jebe, o general de Gêngis Khan que conquistou a Rússia, era um arqueiro famoso e tinha aprendido a disparar assim. Era capaz de acertar um cão-da-pradaria na cabeça, montado num cavalo a galope, a uma distância de 100 metros. Bilgee dizia que a habilidade dos mongóis como cavaleiros e arqueiros havia protegido as estepes e contribuído para que eles dominassem o mundo. Acertar o alvo menor, mais esperto e mais difícil, era sua maneira de se aperfeiçoar no arco-e-flecha.”

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Mapas do Acaso: 45 variações sobre um mesmo tema – Humberto Gessinger

Editora: Belas Letras
ISBN: 978-85-60174-78-2
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
Sinopse: Neste livro, Humberto Gessinger passa o passado a limpo, resgata momentos especiais da sua intimidade desde menino e conta novas velhas histórias dos Engenheiros do Hawaii, nunca antes publicadas. De Passo Fundo a Moscou, passando por “Esparta Alegre”, lembranças de um futuro que ele imaginava dão forma a essas linhas conduzidas pelos mapas do acaso. Para saber qualé a dele e da sua poesia, que é pura grandeza a partir de coisas simples, é só embarcar... e seguir viagem...



“Na ilusão de que seria um eterno provisório, comprei a armação de óculos que me pareceu mais bacana, sem pensar em como ficaria no meu rosto. Não me dei conta de que, daquele momento em diante, aquilo também seria meu rosto. Só depois, descobri que rola uma ciência aí, se não me engano, aconselham armações com formato contrário ao do rosto. Rosto comprido, óculos estreitos. Algo assim... nem sempre o modelo que se quer é o modelo que se deve.
Essa é uma briga para a vida inteira: querer o que se pode, poder o que se quer. O único esporte para o qual eu levava algum jeito, quando criança, era o vôlei. Mas eu não gostava. Fui mais feliz sendo um goleiro mediano e um tenista sofrível do que sendo um bom jogador de vôlei.
Frequentemente, aplico esse raciocínio aos instrumentos que toco. Quais quero e quais eu devo? Me tranquilizo lembrando que a arte não tem objetivos lineares como o esporte. Não se trata de ganhar ou perder, ser mais rápido ou mais forte.
A utilização de óculos desde cedo pode ser sublimada em uma canção, como muito bem fizeram os Paralamas do Sucesso. Mais difícil é glamourizar os óculos que chegam, e chegam para todos, aos quarenta anos. Resta o consolo de Martin Fierro: “O diabo sabe mais por ser velho do que por ser diabo”. Essa citação do poema de José Hernandez também deve valer mais por velha e surrada do que por sábia.”


“Em dezembro de 1985, ainda mais estudantes de arquitetura do que músicos, os Engenheiros do Hawaii tocaram em Passo Fundo. Cidade distante uns 300 quilômetros de Porto Alegre, nunca tínhamos ido tão longe. Tempos anteriores à internet. Longe era longe. (...)
Meu equipamento era uma guitarra Gianini e um pedal de efeito. Amplificador, eu dava um jeito de arranjar. Não tínhamos disco, ainda. Viajávamos com uma fita da música Segurança para a eventualidade de alguma rádio local se aventurar a tocar. Não tocávamos covers, éramos autorais até os ossos. Um pouco por virtude e um pouco por defeito. Quando tentava tocar alguma música de outro cara, eu acabava compondo uma nova antes de aprender.”


“Depois do show, enquanto batíamos papo na rua (bons tempos em que dava pra fazer isso) vi chegar um Fiat 147, carro que parecia incrivelmente pequeno na época. Havia uma vaga do tamanho exato para estacionar. Ao contrário do que se costuma fazer, o motorista entrou com a parte dianteira do carro na vaga. Desligou o motor, saiu, agarrou o pára-choque traseiro, de costas, ergueu e acabou de estacionar o carro no braço! Esfregou as mãos, e, com o canto do olho, conferiu se todos tinham visto a façanha. Desde então, para mim, estacionar o carro do jeito normal passou a ser tão enfadonho!”


“Não cheguei a conhecer meus avós paternos, Rodolfo e Rosália. Morreram antes do meu nascimento. Nos feriados de finados, sempre visitávamos o pequeno cemitério onde eles estão enterrados, numa cidade do interior gaúcho. Lembro do portãozinho, coisa de meio metro, que rangia muito e excitava minha imaginação de criança. Para que serviria um portão de cemitério? Para evitar que alguém entrasse ou que algo saísse?”


“Quando eu tinha uns 10 anos, um caso esquisito dominava as manchetes: o sequestro da herdeira de um milionário império jornalístico americano. Se chamava Patrícia Hearst. Foi sequestrada pelo Exército Simbionês de Libertação, um grupo terrorista de orientação marxista. Estranho, né? Ela acabou se juntando ao grupo e participando de um assalto a banco. Diziam que havia sofrido lavagem cerebral.
Talvez viesse daí o fascínio que o caso exercia: “lavagem cerebral”. Duas palavras que ficaram estranhas uma ao lado da outra. Depois começaram a falar em “Síndrome de Estocolmo”, um estado psicológico no qual a vítima se identifica emocionalmente com o agressor.
Acho que desenvolvi uma síndrome dessas ao contrário. Um estado psicológico em que o vencedor se identifica emocionalmente com o derrotado. Costumo virar simpatizante dos times que perdem para o Grêmio em jogos emblemáticos. Até coleciono suas camisas. Estão na lista Hamburgo, Peñarol e Náutico. Chamo essas camisas de “escalpos”. Carinhosamente.”


“Nessa época, eu aproveitava as viagens para aumentar minha coleção de camisetas de clubes. As “oficiais”, em muitos lugares, eram quase impossíveis de conseguir. Em Recife, ganhei camisas do Náutico, Sport e Santa Cruz. Agradeci ao cara que me deu de presente, e ele disse: “Não me custa, sou dirigente.” “De qual time?”, perguntei. “Dos três!”.”


“Um relógio parado acerta a hora pelo menos duas vezes ao dia. Assim como a roupa no fundo do armário voltará à moda, num mundo sem passado, onde, passados quinze minutos, tudo é vintage. Assim como a gente pode parecer inteligente, esperto e bem informado ficando calado.”


“Amadurecer é um pouco isso, deixar de ser esperto.”


“Quem fala, e só fala, de música gostar de pensar Lady Gaga com as mesmas ferramentas que serviam para pensar Janis Joplin. Como se LP e download fossem, apenas, formas diferentes de fazer a mesma coisa. Como se fosse possível separar forma e conteúdo.
Para falar dos novos tempos, sempre ressuscitam a “aldeia global”, de Marshall McLuhan ou a “relatividade” de Albert Einstein. Será que eles sabiam mais sobre nosso tempo do que meu sobrinho que joga videogame?
Os tempos são outros
Os erros, os mesmos


“Esses livros da minha infância eram, fisicamente, feios. Apesar de uma ou outra capa com desenho legal (Mês de Cães Danados, do Moacyr Scliar, por exemplo, era até tatuável). Lembro de ter comprado uma coleção em que, irritantemente, não havia dois livros do mesmo tamanho. Muitas folhas eu tive de separar com uma faca. Bordas ásperas, cola e costuras que se desfaziam na primeira leitura.
Esses livros da minha infância são, fisicamente, lindos. Meu Lobo da Estepe se mantém uno por uma sucessão de camadas de fita durex. Só o passar dos anos ensina que até o durex é transitório. Quando a gente aplica a fita, ela parece segura e permanente. Nada disso. Com o tempo, ela também dança. Meu Lobo da Estepe pode ser visto como se vê um tronco de árvore cortado, cada anel significando um ano. Uma fatia da Terra onde se conta o tempo geológico.
Minha assinatura nos livros também testemunha passagem de tempo e busca de identidade. Começa como imitação da assinatura do meu pai, passa a ser imitação de letra de arquiteto e chega ao que é agora, que não sei bem o que é, que deve ser o que sou. Isso falta aos livros de biblioteca: na primeira folha, assinatura de quem os leu.
Hoje, livrarias e livros estão tão bonitos! Parecem viver um momento especial, ocupando um pouco do espaço dos discos, que Deus os tenha. Talvez os livros sejam os próximos a fazer a travessia. E talvez o mundo virtual seja ecologicamente correto. Para mim e para minha geração, discos e livros eram testemunhas físicas de nosso crescimento. Cada palmo conquistado nas prateleiras da casa correspondia a um mundo interior mais rico. Difícil de medir em bytes.”


“Livros comprados, livros de biblioteca e livros emprestados são coisas completamente diferentes. Cada uma com seus atrativos. Os emprestados são mais estranhos. Sempre trazem um pouco de catequese. Os olhos de quem emprestou vêm junto. A leitura carrega a perspectiva de um futuro diálogo: “E aí, o que achou?”. Sem falar no pecado mortal que seria não devolvê-los. Tirando todo esse peso, há sempre o bom astral da atitude generosa.”


Nota mental para uma próxima vida:
Falar mais devagar, digitar com mais atenção,
reler antes de postar,
escrever de forma legível, pensar antes de falar,
falar mais devagar...


“Tudo bem se a digitação transformar Pra Ser Sincero em Prazer Sincero. Só não pode transformar Simples de Coração em Simples Decoração. É bom ficar ligado para que lesma lerda não vire mesma merda. Uma digitação afoita pode transformar uma coisa fofa numa coisa foda. (...)
Quanto à minha letra, não tenho esperança de torná-la legível nem em uma próxima vida. Quando comecei a gravar recados para mim mesmo, senti que estava cometendo eutanásia, dando a extrema-unção à minha caligrafia. Ah, como eu queria de volta as horas que perdi tentando ler o que havia escrito em pedaços de papel mal rasgados na noite anterior...”


Nota mental para uma próxima vida:
Cineminha, ao menos uma vez por semana.
Chocolate, só uma vez por semana.


“Sem uma equipe na qual diluir a natural decadência, todo atleta individual, se for honesto, acaba sua carreira por baixo. Com olho roxo, se for boxeador. Se for tenista, perdendo para alguém pior, mas com pernas mais jovens. Na sinuca, mastigando um cigarro que mãos trêmulas levaram à boca. No xadrez, sofrendo uma estafa que o fará ver as peças se moverem sozinhas. Se não vivêssemos numa sociedade infantilmente escrava da vitória, apreciaríamos essas derrotas como representações do ciclo natural da vida.”


“Num estúdio, em Los Angeles, li uma placa que poderia ser traduzida assim: “Relaxe, senão, conseguiremos alguém para relaxar no seu lugar”. Quer deixar alguém tenso? Diga para ele relaxar (Quer contar uma piada para Deus: Faça um plano). É a sina de quem depende do sutil equilíbrio entre inspiração e transpiração. Grace under pressure. A sina de quem ouve vozes. Vozes que nem sempre soam quando são esperadas. Uma interessante família espiritual vive disso. Ainda que a arte não tenha objetivos lineares como o esporte, em inglês, com a mesma palavra (play), se joga tênis e se toca guitarra.”


“Não chegam a me perguntar, mas acho que algumas pessoas, de tanto ficar olhando a capa de algum disco antigo, gostariam de saber se sou meu pai. Com sorte e com o passar do tempo, chegará o dia em que teremos, todos, a cara dos nossos avós.
A não ser que façamos como os políticos estão fazendo. Chegam ao fim da campanha mais jovens do que começaram. Todos com os mesmos dentes brancos e os mesmos sorrisos e ideias botoxados.
Uma pena. As definições de esquerda e direita que parecem não valer mais na economia e na política, poderiam encontrar refúgio em questões éticas e estéticas. Contra a extinção do cabelo grisalho! Contra o medo das rugas, que nada mais é do que medo da vida! Contra o medo. Não era assim? Pela generosidade, esquerdas...”


Nota mental para uma próxima vida:
Aprender com a natureza.
Meus cães, por exemplo: eles só comem e dormem.
(e não têm animais de estimação)


“Mudança, como se tudo coubesse num caminhão. (...) Ali, logo ali, depois da curva, meu time, o Grêmio, vai trocar de estádio. (...)
Do estádio que conheci com meu pai, estou me despedindo, aos poucos, com minha filha. Esse espaço mágico e único vai se transformar em mais um pedaço da cidade, igual a outros. Certamente, teremos um estádio bacana, a Arena. Talvez tenhamos que carregar algum nome de patrocinador, Arena Alguma Coisa. São os tempos, vamos que vamos. Mas é estranho. Certas coisas deveriam durar, senão para sempre, pelo menos mais do que a gente.”


Nota mental para uma próxima vida:
Tenha talento, trabalhe como um condenado, sue sangue, e você conseguirá tudo sem esforço.


“A aposta que faço é no talento, no trabalho, no senso de missão e na possibilidade de fracasso. Talvez, até, na necessidade do fracasso. Nestes tempos tão casuais, ninguém quer se comprometer com uma missão. Muito menos inventar, construir sua própria missão. Fica um acordo tácito no ar, de que nada vale muito à pena. Falta de ambição virou um salvo conduto. É filminho pra lá, musiquinha pra cá, livrinho pra lá, piadinha pra todo lado. Acorrentados ao que temos para o momento, transcendência virou palavrão. Já que a vida é uma só, que seja só uma bobagem. Já que a queda é inevitável, que seja da menor altura possível. Uma boa desculpa para rastejar.”


Sweet Tulipa
ele queria todas as noites a mesma estrela
ela queria todas as estrelas a mesma noite
ela tinha o andar apressado de quem não pode parar
ele tinha o olhar parado de quem não pode acreditar
ele olhava a porta que se abria
ela abria os olhos mas não (ha)via nada
ninguém quis dançar conforme a música do ballet do rancor

ele sem sair de casa, sem sair do quarto, sem sair da cama
ela mudando de roupa, mudando o canal, em outro planeta
ela, que não acreditava em Deus, disse: Deus te proteja
ele, que nunca teve medo, pensou duas vezes
e o rio segue seu curso…
sem ouvir o que se diz, o que se discursa
e se renova, sem revolta, sem recusa, é o seu único recurso.


“Viola caipira é o instrumento que a gente passa metade do tempo afinando e metade do tempo tocando desafinada.
A vida é um pouco assim, a gente pode passar metade do tempo fazendo planos e a outra metade tendo que improvisar.”

Derrotista* – Joe Sacco

Editora: Conrad
ISBN: 978-85-7616-428-9
Tradução: Janaína Silvia Félix
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 224
Sinopse: Com apresentações e comentários do próprio autor, Derrotista reúne também os primeiros trabalhos de Joe Sacco no estilo que o consagrou – trabalhos sobre a guerra e seu efeito sobre as pessoas.
Além da impressionante história sobre os bombardeios durante a Segunda Guerra em Malta, baseada nos relatos de sua mãe, destacam-se uma crônica da vida da população civil sob ataque aéreo, e uma sarcástica história sobre o circo da mídia durante a cobertura da Guerra do Golfo.

“Maria, mãe de Deus, o que está acontecendo? O quê? Eu não consigo me mexer desde novembro, setembro foi horrível também, eu me mexi naquele mês?, sim, uma cagada fenomenal, uma das grandes, massa eu acho, tá tudo voltando, água, um bule, água fervendo pro chá, claro, tudo isso me levou até a cozinha, onde fica o fogão, e o banheiro, quando ainda me masturbava, esquece a cagada, tá, a cagada foi em outubro, não o fogão, quero dizer, onde eu estava em setembro, no banheiro tocando uma na pia, outra na cozinha, também não vai ficar pensando merda, enxaguando copos de chá, tudo a mesma coisa, eu tava fingindo orgasmos, esse tipo de coisa, enganando a si mesmo, é vergonhoso, eu sabia que devia parar, isso foi em setembro ou agosto você sabe que o mês de agosto foi quente, em celsius, suor pingando em poças, ainda pinga, deve ser agosto de novo, ou nunca foi. Apesar de qualquer coisa sou um bebedor de chá, a qualquer hora, embora às sete seja um pouco duvidoso, cair no sono como eu caio, tão cedo no sofá, de onde não saio, só mesmo pelo chá, a menos que eu esteja dormindo, nesse caso posso mijar na cama bonito, eu não sou disso, tenho sono leve, qualquer bombinha e já é bom dia, não um Luftwaffe*, isso foi em 1942, chutando, agora, lá fora, blem!, ouviu? Tem uma igreja fazendo blem-blem-blem! Fogos de artifício! Cores! Um inferno no céu! Um grupo de ingleses em excursão vibrando, batendo palmas, em pé, nas pontas dos dedos, eles nunca viram nada assim! Turistas seguem a fumaça, eu levo pro lado pessoal, estamos falando sobre o meu sono, blem-blem-blem! Cultura, eu suponho, padres fazendo o sinal da cruz, tocando o sino, transubstanciação, estátuas levantadas dentro e fora das igrejas, duas ou três bandas marchando por todo o trajeto, blem-blem-blem! Dois milênios de fuligem caindo, deixa o devoto sujo, todo mundo usa segunda-pele, eu não sou ligado em moda, tô muito feliz no meu sofá, obrigado, blem-blem-blem! Ok, uma confissão, estou caçoando de quem?, isso é desenho puro, então, anos atrás, eu vibrava, meu primo e eu, nós seguíamos a fumaça com o nariz, ficávamos bêbados, perseguíamos as meninas, muitas noites suando uísque, “Calma aí! Você vai nos matar! Haha”, eu tenho histórias. Agora ele me faria cair no choro, vamos pular essa parte, é simples, eu mudei, todo mundo muda, a primeira coisa que se percebe é o meu cabelo, mas vamos pular essa parte, eu ainda não mudei nada, “você ainda anda por aí, se divertindo, a vida é assim”. Eles cheiram a rato, algo estranho, meu cabelo, eu não tô brincando, meu antebraço, também, o antebraço de uma garota, se eles pudessem ver meu pau, minhas mãos, você entende?, o checklist todo, sou eu, eu não tô deixando uma rodela de sujeira em volta da banheira, eu sem nenhum par honesto de sapatos fedidos, eu que nunca trabalhei numa fábrica, e meu tio diz que, na opinião dele, se eu nunca trabalhei numa fábrica, eu nunca trabalhei. Ele começou nas Forças Armadas da Inglaterra matando ratos a pauladas, terminou cozinhando para os estadunidenses, não ratos, ele pode me arrumar um trampo de pintor de carros, e eu quero esse trampo?, sim ou não?, vamos pular essa parte, eu calo minha boca, fico de boca calada, boca fechada não entra mosquito, eles tentam, me manipulam com chá, me colocam num campo minado verbal – “O que você vai cozinhar pra hoje à noite?” – difícil atracar! – Tô indo em ziguezague – “Sério mesmo, e o seu cabelo?” – Arrepios! Esticado nas barreiras! – “Já encontrou uma garota?” – Um flash de seus olhos azuis e o mar jorrando água! Da sala de controle pra sala de máquinas: as bombas trabalham rápido! Quase! A chaleira apita, outra xícara, vapor, calmaria, eu tomo um gole, suspiro, estou praticamente ao lado do cais, e aí bam! Eu escorrego! Uma palavra ou duas! Sobre o tempo talvez! Eles dão o bote! O que eu fiz de errado! Os erros no meu caminho! Toda a minha educação me pegou! Um martelo bate, meu navio se desfaz, eu pulo de qualquer jeito, nado cachorrinho, eles me jogam uma corda, me pescam, dão tapinhas na minha cabeça, “não foi culpa dele, tadinho... tão novinho... nunca teve uma chance”, logo mais, estávamos chorando, tô perdoado, a chaleira apita, outra xícara, eles são muito gentis, me abençoam, eu balanço a cabeça, todo mundo ainda chora, vão dar um jeito em mim, trabalho difícil e sacrificado, todo santo dia, uma pequena folga uma vez por mês, um passeio aos domingos, sorteio da loteria às quartas-feiras, e, se deus quiser, nenéns também, isto é amor, contrai, empurra, neném! Contrai, empurra, neném! Junte-se a nós! Junte-se a nós! Me chamam feito sirenes do calvário, minha cabeça tá rodando, balançando cada vez mais rápido, eu deixei minha cera na cozinha, tô pedindo uma caneta, tô procurando pela linha pontilhada, e então! Um grito! A chaleira! Como a fada da morte! Outra xícara, tem gosto de placenta, minha boca enche, eu vomito no avental, eles querem me trocar, me limpar, me dar o peito, eu rastejo, tô fora de lá, de volta ao meu sofá, junto meus caquinhos, tem um pedaço faltando – provavelmente caiu no ônibus. Estas coisas não têm suspensão, uma desgraça nacional, mas de volta ao meu sofá, custei a relaxar, coberto por uma manta de lã, cheira mal quando você transpira nela, eu durmo com as luzes acesas, é mais fácil ler assim, eu fecho as venezianas cedo, é simbólico, eles sabem que estou em casa, eu também sei, então tá legal, juvenal, ha ha ha, caralho, estarei melhor quando ela me amar, mas não vou começar a falar nela, seus olhos azuis, cala a boca! Quando foi a última vez que eu bati punheta? Onde fica? Aqui está! Só isto? Bom, esquece tudo isso de novo, pula, ao menos que Sérgio, não, ele não aparece por aqui desde – ao menos que Sérgio venha com a moto roncando, os curiosos vão grudar nas venezianas, eles gostam de saber o que tá pegando, pegar a estrada, haja o que houver, se ele emprestar o capacete reserva, aquele bar de roqueiros, aquelas garotas roqueiras, uau! Vamos ficar fedendo a uísque, eu pago. Bon Jovi? Claro! Eu e Bon Jovi somos assim, ó, se é que você me entende, eu te mando um vídeo, ha ha, mas que vadia, aquelas garotas roqueiras me adoram, embora o Sérgio não tenha aparecido por aqui desde sei lá quando, eu vou deitar no meu sofá, vou ler até ele não chegar, espero que com o capacete reserva – eu acordo! Um grito! Pesadelo? Sim, não, merda, o peixeiro gritando feito louco, “vivos!, os peixes ainda estão vivos!” Estão é, seu viado? Vá parar o seu carrinho de peixe na lua, “vivos!” Cubro a cabeça, cadê meus carneirinhos? 63, 64, 65, mas eu que me fodo, porta de garagem enferrujada raspando, motores engasgados, 64, 63, 62, cachorros acorrentados latindo e uivando, mulher no andar de cima estapeando o filho, espingardas exterminam toda esperança, muito em breve as crianças estarão aqui, elas enfiam o dedo na minha campainha, correndo pela rua, pra cima e pra baixo, as mães correndo atrás deles, “se você cair e se machucar, eu te arrebento”, esquece os carneirinhos, enche a chaleira, ferve, baby, ferve, depois do chá, mais chá, então vou até o telhado, ver as roupas sendo penduradas, tá tudo ali, eles realmente se organizam, das menores pras maiores, das mais claras pras mais escuras, a sociedade vive sob algumas convenções, não penduram uma meia entre duas blusas, não dão sopa pro azar, aqui é um lugar perigoso, bam-bam-bam! Não é uma espingarda 42, penas, um outro pássaro migrante que nunca deveria ter se incomodado, enfiado com os outros no mostruário do meu primo, meu primo me dá uma olhada, fora do barco, pego um táxi, o filho-da-puta me cobra o que custa pra atravessar meia Itália. Bem, eu tenho cabelo comprido, ele me dá uma olhada, tô fora da Sicília, sabe né: “Tem aqueles que vão arrancar a tua cabeça”, é o que ele diz, ele mesmo teria feito isto. Minha mãe e a mãe dele sobreviveram à mesma desgraça, é isto que o faz ir com calma, família é a coisa mais importante, agradeça à virgem Maria por isto. Anos atrás seguimos nossa intuição até a fumaça, e isto queima queima queima, o sol endurece o telhado, e algo acontece no dia, uma hora ou duas ouvindo carteiros parados em frente de casa, chá vem, chá vai, apontando os lápis, sem pensar nos olhos azuis dela, tusso quando a vejo novamente, ela está encharcada, nunca me perdoa pelo tempo, você ficaria surpreso, algo acontece no dia, mais tarde rola um show de striptease, um canal italiano, dá um tempo, talvez eu esteja me superando, mas acho que não, quero dizer, sobre o tempo, talvez fosse eu, mas ela riu das piadas, eu sempre causo uma boa impressão, uma maneira estranha de fechar as venezianas cedo, e é isto o que acontece no dia, preciso de descanso, nos Alpes, uma rede de borboletas, eu sei, eu deveria sair mais, eu saio quando não tem mais chá, o mercadinho, minhas tias, já tentei mudar de rumo, museus, catedrais, eu li os panfletos, circulei os pontos de meu interesse, girei minha cabeça pra um lado, claro-escuro, quase um Caravaggio tosco, não, obrigado, e o guia me dizendo que é vidro tcheco e ganhando mais 50 pilas por isto, pode ficar com tudo, o pacote todo e, diabos, com o Grand Harbor**, também, este lugar sagrado, anos atrás, olha só, onde você me encontraria, onde soldados drogados atacaram, onde os bombardeiros Stuka*** gemiam, olha, até isso, leva, vai, sai da minha frente, e pelo amor de Deus, não pense que tentei, com os olhos apertados, fazendo tanta força que pensei que fosse me borrar emocionalmente, onde uma vez, olha, me transformei em alguma coisa (o quê?), olha aqui, nada, nada, e se houvesse ao menos um turno, e não há turnos, acabado, irrecuperável, quando, não me pressione, velho, rezo por um ex-estivador, um longo caso para me desestruturar como há anos, ele me levanta e me oferece a mão, olha, a mão dele no meu pinto, fui claro, masturbação, e os soldados foram abatidos, os Stuka esmagaram aos montes, e eu rolei de alguma coisa (o quê) que eu tive há anos, pra sempre, para o ônibus, o ônibus que chacoalha, cai nos buracos, perdendo mais um pedaço, eu tropecei, e então, então – ai, meu Cristo, não contei nada ainda, NADA – Lá estão eles, perto de você. você está entre eles, cuidado! eles parecem bonzinhos, caçando mosquito, desfiando o terço, mediterrâneos da cabeça aos pés, o National Geographic inteiro, e quando você passa eles aprovam com a cabeça, cuidado! Não é uma saudação desejando saúde, é uma advertência, é uma advertência, é uma advertência, e eles vão te botar no chão num segundo e chutar o seu saco, se escurecer um pouco mais, fica sob medida se você nasceu aqui, de novo, se seu pai tocava clarinete na banda do clube, eles separaram o joio do trigo, e no meu sofá, alívio! Estou ofegante feito um cachorro, e meus olhos fechados, e os olhos azuis dela abertos, ela ficou encharcada, e eu estou encharcado, eu culpo o tempo. Agosto? Cheira mal quando você transpira nela, eu fecho as venezianas cedo, apago as luzes, também, uma nova tática, ninguém saberá que estou em casa, ninguém além do Sérgio, ele vai saber. Ele deveria usar a campainha, mas pode ser que não pense nisso, eu acendo as luzes de novo, e ele nem vai aparecer, mas ele vai saber que estou em casa, espero que com o capacete reserva.”
*: Força aérea alemã antes e durante a II guerra mundial.
**: Porto estratégico na ilha de Malta.
***: Os junkers Ju-87 ou Stuka eram os famosos aviões bombardeiros alemães na II guerra mundial.


Quando boas bombas acontecem para pessoas más
Bombardeio britânico à Alemanha, 1940-45
“Constatamos os inconvenientes que o ataque à população britânica nos causou e não há motivo para que o inimigo fique livre de todos esses constrangimentos.”
Primeiro-ministro Churchill ao ministério da aeronáutica, novembro de 1940


“Esses bombardeios não são uma retaliação selvagem... é uma política calculada com um objetivo em vista: forçar a rendição do governo alemão no momento mais precoce possível e com o menor número de mortes... guerra total significa isso. Uniformes não diferenciam mais combatentes. Não existem não-combatentes.”
Senior Scholastic, abril de 1944 (uma explanação aos estudantes americanos intitulada “Por que bombardeamos a Alemanha”).


“No comando de bombardeiros sempre trabalhamos com a premissa de que bombardear qualquer coisa na Alemanha é melhor do que não bombardear nada.”
Harris*, outono de 1944. Em março de 1945, Harris declarou “Eu não considero a Alemanha inteira digna dos ossos de um único granadeiro britânico.
*: Marechal-do-ar, comandante-em-chefe de bombardeios.


“Na noite passada não perguntei sobre os planos de tumultuar a retirada alemã de Breslau. Pelo contrário, perguntei se Berlim, e sem dúvida outras grandes cidades da Alemanha Oriental, não deveriam ser consideradas alvos particularmente atrativos. Fico feliz de que isso esteja em estudo. Peço relatarem a mim, amanhã, o que será feito.”
Nota de Churchill ao secretário de estado da aeronáutica, Sir Archibald Sinclair, em janeiro de 1945, ativando o ataque infame a Dresden. Sinclair percebera que a rendição alemã aos soviéticos seria mais bem conduzida por forças táticas soviéticas e não por pesados bombardeios britânicos ou americanos. De acordo com notas do comando de bombardeios, parte da justificativa do ataque a Dresden (“De longe a maior área habitada não-atingida que o inimigo teve”) foi “mostrar de maneira não intencional aos russos, quando eles chegassem, o que um comando de bombardeiro pode fazer”. Quando Dresden se tornou um símbolo de bombardeio injustificado de civis, Churchill tentou dissociar sua imagem dos ataques. Embora ele e alguns outros fossem responsáveis pela crueldade e estratégias britânicas, o transparente Harris carregou a cruz histórica sozinho.
Mortos nos ataques a Dresden: de 25.000 a 135.000.”


“Os comandantes aliados tomaram a tão esperada decisão de adotar bombardeios deliberadamente terroristas aos centros urbanos alemães, como expediente cruel para acelerar a derrocada de Hitler.”
Associated Press, 18 de fevereiro de 1945


Bombardeio dos Estados Unidos ao Japão, 1944-45
“As cidades (do Japão) são construídas com madeira e papel para resistirem à devastação pelos terremotos, e, com isto se tornam o maior alvo aéreo que o mundo já viu... projéteis incendiários queimam as cidades todas muito rapidamente.”
General “Billy” Mitchel, 1931


“O subcomitê considerou um ótimo resultado o caos total em seis cidades (do Japão), que matou 584 mil pessoas.”
Coronel John F. Tuner, subcomitê incendiário, comitê de análise de operações


“Posso dizer, com moderação, que isto parece bom do nosso ponto de vista e horrível do ponto de vista do inimigo. Há um inferno em Tóquio esta noite.”
General Lemay, 10 de março de 1945


“Ao meio-dia, Lemay certificou-se de que tinha o que gostava de chamar de “Filme de terror”.”
Fortune, outubro de 1945


“Na semana passada, os pilotos do exército americano realizaram um sonho: tiveram a chance de largar avalanches de bombas de fogo em Tóquio e Nagóia, e provaram que, devidamente acesas, as cidades japonesas queimarão como folhas de outono.”
Time, março de 1945


“Resultado do ataque de 10 de março de 1945:
de 80.000 a 130.000 mortos
41.000 feridos
1.000.000 desabrigados.”
“Tostadas, fervidas e assadas até a morte” é como o general Lemay descrevia as vítimas.”


“Não ouvimos nenhuma reclamação do povo americano acerca do bombardeio em massa ao Japão; na verdade, acho que eles sentiram que fizemos o melhor.”
General Carl Spaatz


“Não há civis inocentes. É o governo deles e você está lutando contra um povo, não está mais tentando lutar contra uma força armada. Logo, não me aborrece tanto matar espectadores inocentes.”
General Lemay


“A população inteira do Japão é um alvo militar correto... não há civis no Japão.”
5ª revista semanal da inteligência da força aérea


“Civis! Saiam imediatamente!
Esses folhetos são lançados para comunicar que sua cidade foi relacionada para ser destruída por nossa poderosa força aérea. O bombardeio começará em 72 horas. Este aviso prévio dará tempo suficiente para que suas autoridades militares tomem as medidas necessárias para protegê-los dos ataques inevitáveis. Observem o quanto elas são impotentes para protegê-los...”
De um folheto lançado pelos B-29, verão de 1945


“Ok, nós combinamos, sem palestinos neste gibi e aqui estão eles de novo!
Barulhentos e odiosos como sempre!
E desta vez aplaudindo os scuds do Iraque!
Batendo palmas para qualquer dano aos invasores israelenses, mesmo que – blamo! – signifique a própria morte deles!
Porque os Scuds podiam cair na cabeça dos palestinos, também!
Você tá ligado!
Loucura, cara!
E não ajuda muito a causa palestina ficar aplaudindo os Scuds.
Irracionalidade nunca pegou muito bem no Ocidente.
E eles aplaudindo é mais do que irracional...
A palavra certa é odioso.
Porra, alguém tem que perguntar aos palestinos por que eles são tão cheios de ódio.
Digo, mentes inquietas querem saber.
Não querem?
Mas, até que nos preocupemos em saber, ficamos com o ódio deles.
O que nós sabemos sobre esse tipo de ódio?
Vou passar a bola pra alguém mais qualificado para o assunto:
“Devemos odiar a humilhante desgraça de sermos um povo sem-teto.
“Devemos odiar – como qualquer nação digna de um nome deve e sempre odiará – o governo de estrangeiros, injusto e injustificável per se,
“governo estrangeiro na terra de nossos ancestrais,
“em nosso próprio país.
“Devemos odiar o fechamento dos portões de nosso próprio país para nossos irmãos, pisoteados, sangrando e implorando por socorro em um mundo moralmente surdo...
“Quem irá condenar o ódio ao mal que brota do amor pelo que é bom e justo?...
“E, em nosso caso, tal ódio não tem sido nada mais do que uma manifestação do mais elevado sentimento humano:
“Amor.
“Porque, se você ama a liberdade, deve odiar a escravidão.
“Se você ama o seu povo, não tem escolha a não ser odiar os inimigos quer buscam sua destruição.
“Se você ama seu país, não tem escolha a não ser odiar aqueles que buscam anexá-lo”.
Menachem Begim, primeiro-ministro de Israel, sobre o domínio britânico na Palestina antes de 1948, em seu livro The Revolt.”



*: Derrotista é um romance gráfico.