terça-feira, 17 de julho de 2012

Tocaia Grande: A face obscura – Jorge Amado

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1184-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 472
Sinopse: Publicado em 1984, Tocaia Grande descreve o processo de formação de uma cidade nordestina, nascida sob o signo da violência e da disputa de terras, em inícios do século XX.
Depois de liderar uma tocaia contra o oponente de seu patrão, o jagunço Natário da Fonseca recebe alguns alqueires próximos ao palco da matança, onde passa a cultivar cacau. A chegada de comerciantes, prostitutas, tropeiros e ex-escravos ao local dá vida e contornos ao arraial.
Personagens fortes, independentes e solitários – como a cafetina Jacinta Coroca; o negro Castor Abduim, conhecido como Tição Aceso, e o comerciante libanês Fadul Abdala –, encontram em Tocaia Grande um refúgio e o conforto da amizade.
Com a prosa leve e bem-humorada de sempre, Jorge Amado relata a união profunda e os laços de afeto que se desenvolvem entre os habitantes de Tocaia Grande, e que serão responsáveis pelo crescimento do povoado e por sua resistência à pressão da Igreja e do poder político-econômico para se enquadrar no sistema coronelista.



“Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida dos compêndios de História por infame e degradante; quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do barro amassado com lama e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do homem civilizado. Quero contar do amor impuro, quando ainda não se erguera um altar para a virtude. Digo não quando dizem sim, não tenho outro compromisso.”


“Cobiça de mulher no fim do mundo do cacau não tinha freio nem medida, pois não havia fêmea senão para uns raros felizardos; tudo que usava saia possuía encanto e serventia. Sem falar nas éguas, mulas e jumentas viciadas.”


“Novamente em paz consigo mesmo, Fadul Abdala matutava sobre a vida e seus percalços. Não sendo ainda fácil, a prebenda já fora mais difícil. Tinha certeza de que, se desistisse, em seguida se arrependeria: a graça de Deus não se destina aos homens de pouca fé.”


“Após o susto que raspara quando Janjão Fanchão ameaçou enrabá-la, a rapariga desaparecera, certamente em busca de paisagens menos adversas onde pudesse rebolar em paz o cobiçado fiofó. Palmilhou léguas de chão: ao dar-se conta viu-se novamente naquelas perigosas bandas. Constatou o crescimento do lugar: mais gente, novos barracos, menos riscos e a forja acesa.
A par dos malfeitos e das intenções dos falecidos, dos planos de Janjão, Fadul comunicou a Dalila com evidente satisfação a morte do fanchono. A rapariga já sabia: o acontecido causara alvoroço, dera o que falar; o zunzum se espalhara, fora alcançá-la em Itapira, onde ela se detivera no decurso da entressafra. Assim tão longe? Como lhe digo.
– Diz-que caparam ele, foi bem feito. Deus é grande.
Não tendo interesse em desmentir os cruéis detalhes das contraditórias versões sobre o fim dos bandidos, muito ao contrário, Fadul desviou o rumo da conversa:
– É verdade mesmo que tu é cabaço por de trás?
Dalila não se deu por achada, respondeu na bucha, categórica e enigmática: – A pulso, seu Fadu, nem na frente, quanto mais atrás.
Nada acrescentou por não ser hipócrita como tantas outras. Sentimental, quando enxodozada nada sabia recusar; quando necessitada curvava-se a polpuda oferta: a culpa era de Deus que a fizera tão bem servida. Deixou o curioso no ora-veja: a pulso, antes a morte, seu Fadu.”


“Zezinha depois chorou lágrimas deveras sentidas ao contar a morte do pai, um homem bom que não tivera sorte. Enquanto forte lavrara a terra de terceiros, terminara na cachaça quando o impaludismo montara em seu cangote. A família trabalhava a dia em plantações alheias, os homens cortavam cana nos campos do banguê. Não fosse a ajuda de Zezinha, passariam fome. Das filhas mulheres, Zezinha tinha sido a única a subir na vida, a prosperar, graças a Deus que a protegera. Fora ser puta em Itabuna.”


“A febre sem nome, a peste, aquela que no dizer do povo matava até macaco. Falavam dela em voz baixa e reverente, monstruosa divindade, flagelo endêmico e antigo sobre o país do cacau, cidades e roças, recolhendo aqui e acolá a quota que lhe era devida em sacrifício. Evitavam citá-la nas conversas, procuravam esquecê-la para ver se assim ela os esquecia e os deixava em paz.
Enquanto a maligna matava com parcimônia, sem pressa, sem esganação, iam-lhe entregando sua ração de mortos, convivendo com ela, conformados. Mas quando, aquartelada numa povoação, virava epidemia e matava a granel, o medo se transformava em pânico e em lugar do choro manso de pai e mãe, de mulher, marido e filho, subia aos céus um clamor de maldição.
Consumia o vivente em poucos dias. Queimava-lhe o corpo e o amolecia, a cabeça estalando em dor, o bestunto avariado, o mau cheiro das bufas, as entranhas desfeitas numa soltura pestilenta. Morte certa e feia, não havia jeito a dar.
Outras febres tinham nome: a terçã, a palustre, a aftosa que ataca gente e gado, a febre amarela e a febre de caroço, cada qual mais perigosa. Havia porém remédio e tratamento para todas elas, até para a bexiga negra: bosta de boi, seca, colocada em cima das borbulhas. Mas não havia remédio para a febre sem nome, simplesmente a febre, sem adjetivo a distingui-la, sem diagnóstico nem receita, o paciente na mão de Deus, o impiedoso Deus da peste. Apelavam para suadouros, cataplasmas, mezinhas, garrafadas e tisanas, beberagens feitas com raízes e folhas do mato, fórmulas passadas de pais para filhos. Tiro e queda na cura de múltiplas mazelas: as doenças feias, por exemplo, mula e cavalo, gonorreia. Mas de nenhum efeito para a febre, aquela que não tinha nome e matava até macaco. Restavam as rezas, as jaculatórias, as benzeduras, os feitiços e as promessas.
Chegava de repente, sem se fazer anunciar. Derrubava, pelava e escaldava, esvaziava as tripas e o juízo, reduzia o homem mais forte a um molambo, antes de matá-lo. Nada havia a fazer além de esperar que, tendo enchido o bucho, inesperada como viera, fosse embora cavar sepulturas em outra parte. Obedecendo a um ciclo ou por simples acidente, a esmo? Por estar farta ou por que Deus ouvira as preces? Tudo podia ser. Se nas cidades de Ilhéus e de Itabuna, doutores de anel e canudo não sabiam diagnosticá-la e combatê-la, ao povo dizimado nos confins de judas cabia apenas fugir ou aguardar que a febre decidisse partir, mudasse de quartel, levando no embornal as sentenças de morte, sem apelação. Morte dolorosa, suja e fedorenta, atroz.”


“Além de cama de casal, Carlinhos trouxe da cidade escrivaninha e estante com livros, a maioria em língua de gringo. Aos que se admiravam ao ver cama de casal em casa de solteiro, respondia amável e desbocado: solteiro, sim, punheteiro, não.”


“– Vade retro, Satanás! – Exclamou frei Zygmunt Von Gotteshammer no momento culminante, da confissão da menina Chica, não tão menina, pois ia completar quatorze anos nas vésperas de São Pedro: das noivas de maio a única em condições de usar grinalda e véu na cerimônia do casamento.
Revelando decidido pendor para os detalhes e absurda inocência a respeito do que fosse e do que não fosse pecado venial e pecado mortal, a moleca do cordão encarnado, sem ruborizar-se – o que aliás iria bem com as cores de sua ala –, relatou ao indignado frei Zygmunt as gostosas provações a que a sujeitava o namorado. Balbino tinha morado em Ilhéus e conhecia as invenções das gringas: com elas Chica se comprazira.
Nem por incruenta, foi menos insana a luta que se travou no improvisado santuário entre o santo inquisidor e a mocinha do cordão encarnado. Diante do que, prazenteira, ela lhe narrou: escabrosos lances de dedo e língua, de sodomia – ah, Sodoma rediviva! –, o frade lhe interditara véu e grinalda, os símbolos da virgindade. Mas a noiva, em obstinado preito, reivindicara seus direitos às flores de laranjeira, confeccionadas pelos dedos maneiros de dona Natalina, pois lá dentro da periquita – juro por Deus, seu padre! – Balbino nunca metera, Chica jamais deixara. O demais que tinham praticado servira exatamente para impedir que ele lhe tirasse os tampos: onde o reverendo frei ouvira dizer que tomar no cu era o mesmo que dar a maricotinha? Em Estância as moças casavam donzelas, em sua maioria, mas para aguentar a espera iam tomando nas coxas e no fíofó, que ninguém é de ferro, seu padre.
Frei Zygmunt a expulsou em latim, vade retro, Belzebu! Noutros tempos teria usado o azorrague para exorcizá-la, retirar-lhe do corpo os demônios que o habitavam: nos bons tempos da Sagrada Inquisição. Chica foi-se satisfeita, acreditando que o sacerdote a abençoava e com ela se pusera de acordo sobre o vestido de noiva. Rezou três ave-marias e um padre-nosso, pois o bom frei esquecera de lhe dar a penitência.”


“O nome, dado em homenagem ao crime, já diz tudo: eis como iniciou o Grande Inquisidor Zygmunt o seu sermão. Em resumo acusou Tocaia Grande de ser cidadela do pecado, couto de bandidos. Terra sem lei, nem a de Deus nem a dos homens, território da degradação, da luxúria, da impiedade, do sacrilégio, das imundas práticas do demônio, reino da danação de Satanás, Sodoma e Gomorra reunidas, desafiando a ira do Senhor. Um dia a cólera de Deus irromperá em fogo, castigando os infiéis, destruindo os muros da maldade e da profanação, transformando em cinzas aquele covil de escândalo e de iniquidade. Assim profetizou.
Na hora da bênção, na agonia do crepúsculo, frei Zygmunt Martelo de Deus ergueu a garra adusta, traçou no ar a cruz da excomunhão, amaldiçoou o lugar e os habitantes.”


“No deslumbre da lua cheia cravada sobre a terra violada, sobre o rio assassinado, sobre a morte desatada, na hora da meia-noite, junto ao pé de mulungu, no alto do Outeiro do Capitão, Jacinta Coroca e Natário da Fonseca, ela com a repetição, ele com o parabelo, na tocaia, usufruíam a beleza da paisagem. Lá embaixo, jazia Tocaia Grande ocupada pelos jagunços e pelos cabras da Briosa.
– O melhor de tudo – disse Coroca –, não tem nada que se compare, é aparar menino. Ver aquele peso de carne saído de um bucho de mulher, mexer na mão da gente, vivinho. Até dá vontade de chorar. No primeiro que peguei, caí no choro.
O Capitão deixou transparecer nos lábios o fio do sorriso:
– Tu pegou um bocado de menino. Tu virou uma senhora dona.
– Nós mudou e cresceu com o lugar. Tu também, Natário, não é o mesmo cabra ruim de dantes.
– Possa ser.
Houve um breve silêncio e, vinda do rio, na noite estival, a viração os envolveu numa carícia morna e espalhou no ar o perfume do jasmineiro. Na voz serena de Coroca, o calor e a brisa:
– Nunca vi ninguém gostar tanto de outra pessoa, mulher gostar tanto de um homem, como Bernarda de vancê. – Ficou pensativa por um instante, prosseguiu: – Acho que isso é o amor de que se fala. Sei como é, conheci mocinha nova. Se chamava Olavo, me comeu os tampos, era fraco do peito, morreu botando sangue pela boca. Me lembro como se fosse hoje.
Chegou até eles o tropel da comitiva dos notáveis. Vinham da desolação da Baixa dos Sapos: nas choças abandonadas pelas raparigas, os jagunços haviam-se entrincheirado, após liquidar Paulinha Marisca, única que ficara de guarda no puteiro. Aprendera a atirar em Alagoas com os vários pistoleiros da família. Na casa de madeira, nos barracos de adobe, o intendente, o Juiz, o Promotor, o Mandatário e a álacre companhia, a corte altissonante, se abrigaram, aguardando o momento da entrada triunfal.
Despontaram sob a claridade do luar, uma cavalhada de se ver e bater palmas: gordos, fortes, garbosos, bem vestidos, bem-dispostos, traziam a lei para implantá-la. Jacinta Coroca apoiou a repetição no galho da árvore. O capitão Natário da Fonseca repetiu:
– Lugar mais bonito pra viver!
– Não há igual. – Concordou Coroca.
Montando um esplendor de égua, no centro do cortejo tendo de um lado o intendente, do outro a divina Ludmila Gregorióvna, destacava-se o corpanzil do bacharel Boaventura Andrade Júnior, chefe político, mandachuva. A cara aberta em riso.
Natário firmou a pontaria, visando a testa de Venturinha. Em mais de vinte anos, não errara um tiro. Com sua licença, Coronel.”