terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

1968: O ano que não terminou (Parte I), de Zuenir Ventura

Editora: Planeta

ISBN: 978-85-7665-361-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 286

Sinopse: Considerado um dos maiores clássicos da literatura contemporânea brasileira, 1968 - O ano que não terminou retorna, 20 anos depois de seu estrondoso sucesso, às livrarias totalmente revisado. O livro é um retrato fiel de todos os acontecimentos que fizeram do ano de 1968 um divisor de águas na história brasileira e mundial. Além de ser uma peça de excelente jornalismo, um exemplo de texto brilhante, 1968 - O ano que não terminou presta relevante serviço à revitalização da consciência democrática brasileira.


 

“Num dia de agosto, o Jornal do Brasil estampou na primeira página a foto de uma cena então rara e chocante: uma quadrilha de assaltantes de táxi formada por garotos de doze a dezessete anos.

Garrincha, o mais novo, aparecia de tarja nos olhos e um cigarro de maconha na boca. O Rio era uma cidade cujas ocorrências policiais nos fazem morrer de inveja hoje: quatro assaltos por dia, três carros roubados, sete acidentes de tráfego. Inusitada, a foto do bando de Garrincha inspirou uma crônica a Carlinhos, que, lida 20 anos depois, parece um remoto prefácio ao nosso apocalipse urbano:

Todos os dados indicam que fracassamos. Não temos futuro algum para oferecer às nossas crianças. Os garotos ricos – em minoria, é verdade, mas a minoria que vale, aquela que faz barulho – querem outra coisa, outra sociedade, outro regime. Os garotos pobres precisam apenas de uma pistola e de um cigarro de maconha.

O mais impressionante é que, rebelde, anárquico, contraditório, Carlinhos era um “alienado”. Ele próprio, nessa crônica, confessa que não chega nem a ser “contra o atual governo federal”. O seu grito de alerta era tanto mais significativo quanto não está comprometido por nenhuma motivação ideológica ou oposicionista. É como profeta que ele fala dos ainda iniciantes jovens delinquentes:

Só pensaremos neles daqui a 20 anos, daqui a 50 anos, quando eles forem numerosos como ratos e agressivos como ratazanas bloqueadas pelo perigo.

José Carlos Oliveira morreu em 1986, deixando, entre outros, um romance, Terror e êxtase, de 1978, que é a história de uma garotinha rica que se apaixona por seu sequestrador, 1001, um bandido preto e desdentado.

Pouco tempo depois, como se sabe, esses personagens deixaram o livro para frequentar as nossas ruas e cadeias. Como previra Carlinhos, os vários governos da ditadura fizeram o possível para marginalizar as duas gerações, empurrando uma para a clandestinidade e ajudando a outra a permanecer na delinquência.

A diferença é que, embora sofrida e marcada, a chamada geração de 68 se salvou, quando nada como exemplo de entrega e como lição para outras gerações.

Na realidade, como diz Cesinha, relembrando o tempo em que tinha 14 anos, “nossa vida como um todo estava disponível para aquele projeto”. Segundo ele, a “exigência integradora” que procurou articular sonho e vida perdeu-se, seja na música, seja na política. Ao contrário do rock dos Rolling Stones, de Jimmy Hendrix ou de Janis

Jopplin, ele observa com razão que o rock atual não vive mais a sua música, assim como a esquerda não vive mais o seu projeto.

Ninguém melhor do que Cesinha para fazer essa crítica. Como se viu no capítulo anterior, ele foi preso em 1971. E na prisão passaria mais de cinco anos, dos quais três e meio numa solitária, com direito a apenas uma visita semanal do pai, da mãe e do irmão Leo – dez minutos para cada um. Como atividade, só lhe permitiam trabalhos manuais. Um dia, na altura do terceiro ano de isolamento, Cesinha confeccionou uma capa de livro em couro preto, com o desenho de um pássaro amarelo solto no infinito.

Sua mãe, Iramaia, uma precursora das “locas de la Plaza de Maio”, temendo que a solidão o estivesse enlouquecendo, levou o trabalho para o psicanalista Hélio Pellegrino examinar.

Pouco antes de morrer, Pellegrino ainda se surpreendia com a saúde mental de Cesinha: “"Apesar dos sofrimentos, das violências, do isolamento, ele estava mentalmente mais são do que nós. Que cabeça!”.

A saga de César Queirós Benjamin iria continuar. Em fevereiro de 76, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, ordenou a sua libertação. Mas só em agosto, depois de uma memorável campanha liderada pelo Comitê de Anistia, OAB, ABI, o advogado de Cesinha recebeu um telefonema do Procurador-Geral da República, convidando-o a ir a Brasília para tomar conhecimento de que o presidente Ernesto Geisel decidira “não dar um mártir para a oposição”. Isso significava que, diante das informações de que agentes do CENIMAR ameaçavam sequestrar o preso, se ele fosse solto, a Polícia Federal armaria uma operação, por ordem presidencial, para retirá-lo e depositá-lo dentro de um avião.

Assim, sem pisar o solo do aeroporto, César Queirós Benjamin foi levado para a Suécia.

Por isto, quando ele diz o que diz, ninguém ousa acusar a frase de retórica:

“Nós estávamos dispostos a morrer e morremos”.”

 

 

“Conciliando Marx e Freud, (o escritor francês marxista Marcuse) fornecia ambiciosos objetivos políticos ao movimento estudantil, já que o papel de vanguarda da revolução – ele dizia – se transferira da classe operária, engajada no processo produtivo, para as minorias raciais, para os marginalizados pela sociedade industrial e, principalmente, para os estudantes. Ele ensinava que, em lugar da exploração bruta, o capitalismo passava a impor “novas formas de controle social, mais efetivas e agradáveis”. Diante desse quadro, o proletariado seduzido pela sociedade de consumo, passava a não pensar mais em revolução, só em casa de veraneio.”

 

 

Revolucionários quase todos os estudantes, eles só divergiam em relação à natureza da Revolução – se socialista, se de libertação nacional, se democrática.

Essa geração, como lembra Vladimir, tinha tirado de 64 uma lição: “Não se pode confiar na legalidade burguesa. Perdemos em 64 porque os trabalhadores não reagiram.”

Raciocinando assim, eles achavam que as transformações sociais só viriam, de fato, pela luta armada.

          É fácil condenar hoje o voluntarismo daqueles jovens que acreditavam mais na vontade do que na razão. Mas como não ser voluntarista sendo contemporâneo de Fidel Castro, Che Guevara, Mao e Ho Chi Minh? Realmente, poucas vezes a História reunia tantos argumentos em favor das famosas “condições subjetivas”, em detrimento das “objetivas”.

A derrota de 64 desencadeara um processo de desencanto em relação à organização e ao debate político. Não havia mais tempo a perder com discussões. A prática ensinaria o caminho, como se podia ver nos textos de Mao, no exemplo de Ho Chi Minh e, principalmente, nos ensinamentos teóricos de Guevara e Debray.

Eles eram a melhor prova do poder deflagrador dos focos guerrilheiros. “O dever do revolucionário é fazer a revolução”, “Para fazer a revolução não é preciso pedir licença a ninguém”, ensinavam. Até os muros de Paris sabiam: “Uma revolução não se vota; faz-se.” O mais jovem revolucionário de então, Cesinha, acha que havia um dado novo na esquerda da época: “O que importava para nós era fazer a revolução, não discutir sobre ela ou sobre as possibilidades de fazê-la. O desafio era fazê-la”.”

 

 

“Segundo Cesinha, havia uma certeza que dava sentido a tudo:

O que se sentia, se dizia, o que se achava é que era possível fazer a revolução. Essa certeza dava sentido a tudo. Fora dessa ideia radical não tinha sentido jogar a sua vida. Ninguém joga a vida para virar deputado.”

 

 

“Apesar dos riscos que ofereciam, as passeatas são lembradas com doce nostalgia, talvez porque, quando a polícia deixava, elas correspondiam ao que havia de mais generoso naquela geração: a capacidade quase religiosa de comunhão, o impulso irrefreável para a doação. Se houve na história um movimento em que seus componentes não souberam o que era egoísmo, anulando-se como indivíduos para se encontrar como massa, esse movimento foi o da espetacular, pública e gregária geração de 68.”

 

 

“O Rio de Janeiro já foi uma cidade capaz de parar numa sexta-feira à tarde para enterrar um estudante morto pela PM.

Eram de fato outros tempos aqueles em que a revolta contra uma violência policial colocava milhares de pessoas nas ruas.

Agora, “como a morte aqui é tanta” – poderia dizer João Cabral de Melo Neto, sem pensar apenas no Nordeste. Em 68, a morte de alguém, mesmo a de um jovem desconhecido, podia levar o país a uma crise e o povo à indignação, como levou naquela sexta-feira, 29, em que 50 mil pessoas acompanharam o corpo de Édson Luís Lima Souto ao cemitério São João Batista.

Na então Assembleia Legislativa, velava-se ainda o corpo de Edson Luís, que no começo da noite anterior fora baleado no peito por um soldado da PM num choque estudantil do restaurante Calabouço. Durante a noite e a madrugada, estudantes, intelectuais e artistas lotaram o saguão onde se realizava o velório. Discursos indignados exigiam justiça e os oradores exibiam a camisa ensanguentada do morto. (...)

Duas horas antes do enterro, a Cinelândia já estava totalmente ocupada. As faixas, cartazes e slogans eram exibidos ou gritados: “Bala mata a fome?”, “Os velhos no poder, os jovens no caixão”. Uma palavra de ordem se destacava pelo irresistível apelo: “Mataram um estudante. E se fosse um filho seu?”

Às 16 horas, o padre Vicente Ádamo encomendou o corpo: “Depois desses acontecimentos”, ele disse, “não há mais possibilidade de diálogo entre jovens e adultos. Será preciso uma nova fórmula para resolver esse estado de coisas.” (...)

Sem horário de verão, às 6 horas da tarde já era noite, o que impediu que as testemunhas vissem que o tiro saía do revólver do aspirante da PM Aloísio Raposo para atingir mortalmente o coração do estudante Édson Luís. Quando chegaram ao local, o corpo já estava sendo conduzido.

Longe de ser um líder, Édson Luís era, como muitos de seus colegas, um daqueles jovens que vinham do interior tentar estudar no Rio, sobrevivendo graças à alimentação barata do Calabouço. Para estudar, Édson Luís era obrigado a recorrer a pequenos expedientes, inclusive na limpeza do restaurante. Ele não tinha nenhum dos componentes míticos para sonhar em ser o que acabou sendo: um mártir. (...)

A repercussão de certos acontecimentos políticos nem sempre é proporcional à importância dos atores neles envolvidos. O episódio do Calabouço, que desencadeou uma série de manifestações de protestos que iriam culminar com a lendária Passeata dos 100 Mil, três meses depois, ficou na História como um marco.

Pode-se dizer que tudo começou ali – se é que se pode determinar o começo ou o fim de algum processo histórico. De qualquer maneira, foi o primeiro incidente que sensibilizou a opinião pública para a luta estudantil. Como cinicamente lembrava a direita, “era o cadáver que faltava”.”

 

 

A sexta-feira sangrenta

Em meados de junho, o governo estava seriamente preocupado com a possibilidade de se repetir no Brasil o maio francês. Embora o movimento lá estivesse em descenso – De Gaulle já havia conseguido em Baden-Baden o apoio do direitista Massu – as autoridades brasileiras continuavam achando que havia um plano comunista de exportação das agitações estudantis. A matriz seria achienlit da França.

No dia 12, Costa e Silva, patético, prometia: “Enquanto eu estiver aqui, não permitirei que o Rio se transforme em uma nova Paris”. Por ocasião da greve de Osasco, o ministro do Trabalho Jarbas Passarinho também advertia: “O Tietê não é o Sena”. Alguns estudantes estimulavam essa paranoia. Luís Raul Machado dizia, durante a ocupação do CRUSP em São Paulo: “Os generais podem estar tranquilos que não se repetirá aqui o que houve na França. Vai ser muito pior”.

Durante os dias 19, 20 e 21 – quarta, quinta e sexta-feira – a promessa de Costa e Silva quase foi quebrada. Na sexta-feira, principalmente, conhecida como “a sexta-feira Sangrenta”, o Rio não ficou nada a dever à Paris das barricadas – e não por mimetismo, como temiam as autoridades militares. A motivação estava aqui mesmo.

Ao contrário do movimento francês, não se lutava no Brasil contra abstrações como a “sociedade de opulência” ou a “unidimensionalidade da sociedade burguesa”, mas contra uma ditadura de carne, osso e muita disposição para reagir. As barricadas de maio de Paris talvez não tenham causado tantos feridos quanto a “sexta-feira sangrenta” do Rio, para citar apenas um dia de uma semana que ainda teve uma quinta e uma quarta quase tão violentas.

Nesse dia, quando o povo – não só os estudantes – resolveu atacar a polícia, o centro da cidade assistiu a uma sequência de batalhas campais como nunca tinha visto antes e como não veria nos 20 anos seguintes. Nos seis governos militares pós-64, incluindo a Junta, foi o que mais se pareceu com uma insurreição popular.

Durante quase dez horas, o povo lutou contra a polícia nas ruas, com paus e pedras, e do alto dos edifícios, jogando garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos de flores e até uma máquina de escrever.

O balanço de alguns hospitais – nem todos divulgaram os totais – registrou: 23 pessoas baleadas, 4 mortas, inclusive o soldado da PM Nélson de Barros, atingido por um tijolo jogado de um edifício, 35 soldados feridos a pau e pedra, seis intoxicados e 15 espancados pela polícia.

No DOPS, à noite, amontoavam-se cerca de mil presos.

“O povo tomou partido”, escreveu José Carlos Oliveira, enquanto assistia aos acontecimentos de um lugar privilegiado, o 3° andar do JB, então na Avenida Rio Branco. “Baderna por baderna, violência por violência, a dos garotos é mais simpática”, observou o cronista.

O relato dos jornais no dia seguinte tinha a dramaticidade de uma cobertura de guerra. O Correio da Manhã cronometrou a batalha em todas as suas frentes. Alguns trechos do relato dão a ideia do clima:

13h 15min – Soldados da PM, armados de fuzil, não hesitam: dispersam a tiros os manifestantes nas proximidades do edifício Avenida Central. Populares e estudantes correm em várias direções. E uma jovem, baleada, permanece estendida na calçada em frente à Ótica Lux. Nas ruas laterais começa o pânico. Agentes do DOPS atiram mais

De 20 bombas de gás lacrimogêneo em populares. Dentro de uma lanchonete, duas senhoras grávidas desmaiam, após serem destratadas por dois agentes que pareciam estar sob efeito de estimulantes. Uma menina de dez anos perde-se da mãe, chora e recebe uma bofetada, de um agente.

13h30min – Na Avenida Rio Branco, os estudantes começam a erguer barricadas: a primeira, apenas com pedras; a segunda, com material de construção de obras próximas. Vai começar a batalha campal. Entre estudantes e populares, estão reunidos neste ponto cerca de 2 mil pessoas, que resistirão a carga policial durante quase duas horas. A cavalaria da PM vem da Cinelândia pela Rio Branco; dois batalhões de choque vão com ela encontrar-se na confluência de Assembleia e Rio Branco. Os policiais continuam sob o ataque dos populares postados à janela. Agora caem também vasos de flores e tampas de latrina. A polícia consegue passar a primeira barricada e abre fogo contra a segunda – tiros de fuzil e de pistola 45. Agentes do DOPS juntam-se à repressão. Enfurecidos com a adesão popular aos estudantes, os policiais passam a atirar também para cima, em direção aos edifícios.

14h30min – Já sem comando, a polícia passa aos ataques suicidas contra populares e estudantes. Em grupos de cinco, investem e entram em luta. Alguns manifestantes são presos. O jovem Jorge Afonso Alves tem a perna quebrada a chutes e cacetadas. Outro, de 17 anos, também com a perna quebrada, é socorrido no banco Andrade Arnaud. Um detetive de cor preta, gordo, camisa azul, atira uma bomba sobre as pessoas que estão na entrada do edifício. Aproveita a confusão, saca a pistola 45 e atira contra a multidão. Um senhor de 40 anos aproximadamente tomba com uma bala nas costas e outra na perna. Enquanto isso, a Biblioteca Nacional é invadida por policiais que atiram bombas sobre rapazes e moças. Seu diretor, Adonias Filho, sai à rua para protestar e é destratado por um elemento do DOPS.

As batalhas prosseguiram com essa intensidade até as 20 horas, com barricadas espalhadas pela avenida Rio Branco e pelas ruas México e Graça Aranha. Só não houve mais soldados feridos porque, diante da chuva de objetos jogados do alto, um superior de bom senso permitiu que eles se abrigassem debaixo das marquises.

A “sexta-feira sangrenta” desenrolou-se em duas etapas. Na primeira, que começou de manhã com concentrações estudantis em três pontos do Centro da cidade, ocorreram os distúrbios de sempre. Vladimir (Palmeira, presidente da UME e maior liderança estudantil da época) chegou à Praça Tiradentes com seu grupo às 8 horas da manhã. Pela primeira vez se marcava uma concentração naquele local pouco indicado, porque amplo e aberto. “Não sei se foi por excesso de segurança nossa”, ele explica, “ou porque eu tinha decidido que não dava para fazer mais nada escondido”.

O fato é que, às 8h30min, quando Vladimir subiu num poste para falar para uma plateia de umas 30 pessoas, as lojas, que mal acabavam de abrir, fecharam logo suas portas, inclusive a banca de jornais. Depois de apanhar umas pedras numa construção, líder e liderados marcharam na direção do MEC, via Esplanada do Castello, onde iriam encontrar Franklin Martins e seu grupo, que se haviam concentrado no pátio do Ministério. Preocupado com a demora do companheiro, Franklin deixara o posto, e assim, por acaso, acabaram se encontrando no meio do caminho – ele, Vladimir e Elinor Brito. No dia seguinte os jornais publicaram uma foto de dois jovens não identificados se abraçando. “Sou eu e o Franklin nos abraçando em pleno ar, como na comemoração de um gol”, relembra Vladimir. Cada um achava que o outro estava preso. Para eles, a “sexta-feira sangrenta” ia começar e acabar logo: algumas pedras jogadas nos vidros de frente da embaixada dos Estados Unidos, um discurso de Vladimir trepado num poste, as coisas de sempre. De repente, uma camioneta do DOPS aparece jogando bombas de gás lacrimogêneo. Os estudantes correm e são apanhados pelo fogo cruzado na esquina das ruas México e Santa Luzia: de um lado, agentes do DOPS e da Polícia Federal: do outro, dois soldados da PM de guarda na embaixada. Estabelece-se o pânico.

Os fugitivos tentam refugiar-se nos prédios, mas duas viaturas do DOPS surgem jogando mais bombas. Um helicóptero sobrevoa o local. Sirenes anunciam que estão chegando reforços. É um pandemônio. Policiais gritam: “Vamos atirar para matar!”. Em seguida, três moças caem feridas: Márcia Jurkiewe, com um tiro no tornozelo, é medicada no local; Jeni de Barros Lopes, com um tiro na coxa direita, é removida para um hospital; e Maria Ângela Ribeiro, ferida na fronte, é levada com vida para o QG da PM, onde morre em seguida.

É hora do almoço, e a reação popular vai começar. Alguém joga pedaços de gelo de um edifício, tentando acertar a polícia. Foi como um sinal. Uma chuva de objetos passa a cair em lugar do gelo.

Perto dali, em frente ao Teatro Municipal, Vladimir ainda discursava quando ouviu um tiroteio. Tentou dizer: “calma, companheiros”. Não tinha percebido que eram tiros de fuzil. “Quando vi, eu estava sozinho, porque a segurança não funcionou naquele dia, nada funcionou”. Vladimir saltou do poste com a velocidade que é possível a alguém meio gordo e asmático: “Peguei a rua México, sozinho, correndo, a polícia atrás dando tiro, aquela confusão”. Foi quando apareceu um português desconhecido, que podia ser até um policial, e o levou até seu carro, estacionado na Presidente Vargas. Para fugir daquele tiroteio, o presidente da UME era capaz de aceitar carona até de camburão.

A participação dos principais líderes terminou por aí. Às 4 horas da tarde, Vladimir já estava no Leblon, no restaurante Diagonal, que a liderança estudantil gostava de frequentar, esperando Franklin e Muniz. Na antevéspera, quarta-feira, as batalhas contra as várias tropas da PM tinham sido conduzidas por eles. O ministro da Educação, Tarso Dutra, ficara de recebê-los de manhã. Quando chegaram, encontraram o pátio do MEC cercado. “Recuem”, ordenou o presidente da UME, “mas voltem logo com paus e pedras”. Foi uma batalha campal que durou toda a manhã.

Por isso, já sentado no Diagonal, Vladimir ficou muito surpreso quando alguém informou que continuava a agitação no Centro da cidade – sem eles. Embora um pequeno grupo permanecesse guerreando na avenida – o pessoal do Calabouço, liderado por Brito, e a turma da Universidade Rural, que chegara atrasada –, o comando da batalha tinha mudado de mãos: a praça era do povo.

Nessa tarde, a infantaria da PM teve medo de entrar na Avenida Rio Branco. Os poucos que se aventuraram, esconderam-se logo sob as marquises. A única força a entrar foi a cavalaria, mas os cavalarianos não esconderam o medo. “Eu tinha que entrar”, relembraria o comandante das tropas, o major Rebouças, “e como é que eu entrei? Entrei motivando a tropa. Mandei o clarim tocar “carga”. Em seguida, o pelotão disparou a galope, a 450 metros por minuto”.

Para Rebouças, esse foi o momento mais difícil de um ano cheio de dificuldades para a PM. Aos 14 anos, ele tinha assistido ali à chegada dos pracinhas da FEB, cobertos por papel picado jogado do alto dos edifícios. “Era assim, não se via o outro lado. Só que agora, em vez de papel, o que caía era pedra, tijolo, cinzeiros, tudo”.

As tropas passaram, limpando a avenida, mas, na hora de dispersar, o comandante teve a clarividência de ordenar “dispersão em forrageadores”, o que, traduzido em linguagem paisana pelo próprio autor da ordem, significava: cada um por si.

Se a cavalaria não entrasse, seria convocada a Divisão Blindada.

“Você calcula tanques dentro da avenida dando tiro?” tremia com a hipótese Rebouças.

Num semestre marcado pela rotina diária de choques violentos, o que teria ocorrido de extraordinário para que a população se revoltasse com tanto ódio? Na mesma crônica em que narrou os acontecimentos, Carlinhos Oliveira explicava:

Os cariocas amanheceram hoje com as mãos trêmulas; no café da manhã, os jornais lhes serviram fotografias hediondas. Moças e rapazes deitados de bruços, com a cara enterrada na grama: moças forçadas a andar de quatro diante de insolentes soldados da PM; dezenas de estudantes encostados a um muro e com as mãos segurando a nuca, ou na mesma atitude, mas deitados de bruços.

Ele se referia aos episódios ocorridos na véspera, quinta-feira, no campo do Botafogo, para onde foram tangidos pela PM cerca de 400 estudantes, depois de uma assembleia na Faculdade de Economia. O que ocorreu ali no gramado do time que iria conquistar, naquele ano, o seu único campeonato nos últimos 20 anos, chocou a cidade, uma cidade que, desde a morte e as missas de sétimo dia de Édson Luís, achava que já tinha assistido a tudo em matéria de violência.

Mais do que pela agressão física, as fotos “hediondas” indignavam como símbolos do ultraje. A descrição de soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as pernas das moças, junto às imagens de jovens de mãos na cabeça, ajoelhados ou deitados de bruços com o rosto na grama, eram uma alegoria da profanação.

Quando se pergunta a Vladimir Palmeira qual o acontecimento mais importante de que ele participou em 68, a resposta, de certa maneira, surpreende. Não é a morte de Édson Luís – embora o enterro fosse, como ele disse, o espetáculo “mais impressionante” –, não é a Passeata dos 100 Mil, nem o Congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo.

“Nessa manifestação”, explica Vladimir, “nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o alunado que aprende”. A assembleia, para ele, significou a quebra do autoritarismo e o rompimento do domínio absoluto que os professores detinham na universidade até os anos 60. Na verdade, significou mais. Foi a subversão total da hierarquia dentro da universidade. “Era uma velharia com postos vitalícios”, constata Vladimir. “Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade”.

Da mesma opinião é Franklin Martins, para quem a manifestação foi importante para dentro e para fora da universidade: “Pra dentro, por mérito nosso, pra fora, por culpa da polícia. Ela desmistificou o último bastião que detinha dentro da universidade, os professores, muito conservadores”.

Naquela tarde, os estudantes iriam inverter os papéis, rebaixando os professores à condição de alunos.

A assembleia geral tinha sido convocada pela UNE e pela UME para as 10h30m da manhã de quinta-feira, mas às 9 horas, quando chegaram as primeiras representações de várias faculdades, portando faixas de “Abaixo a ditadura”, alguns choques da PM já estavam postados nos arredores da Praia Vermelha. Às 11h30m a liderança desistiu de realizar a reunião no campus e convocou os estudantes para o Teatro de Arena. Nesse momento, chegava outro caminhão da PM despejando mais soldados. Era visível que um cerco policial se armava em torno do conjunto onde se localizava também a reitoria.

Eram 12h15m quando Vladimir anunciou ter recebido a informação de que o esquema policial estava aumentando e que havia ordem de prender as lideranças na saída. “Desta vez ninguém vai preso”, prometeu o orador sob aplausos. “Nós é que vamos exigir a libertação de nossos colegas presos”.

Vários oradores falaram a seguir, inclusive Luís Travassos, até que Vladimir propôs que os estudantes subissem ao andar da reitoria, onde estava reunido o Conselho Universitário. A proposta foi logo aceita. As portas arrombadas, cerca de 1500 estudantes atropelaram-se pelos corredores e salões da reitoria. Não foi fácil fazer os conselheiros descerem. Enquanto as negociações se desenrolavam, os estudantes criaram um sistema de vigilância que previa inclusive o acompanhamento dos mestres nas suas eventuais idas aos banheiros, o que não impediu que o mais visado deles fugisse, o professor Hélio Gomes, da Faculdade de Direito, “um fascista”, como diziam os rapazes. Outros que também fugiram – Gérson Cunha Bueno, da Escola de Belas-Artes, Martins Alvarez, da Odontologia, Iolanda Ferreira e Dionídia Sodré, da Escola Nacional de Música, e Alfredo Amaral Osório e Oscar Oliveira, sub-reitores – não sofreram agressão física, mas foram demoradamente punidos com vaias.

A descida da escadaria foi penosa. Clementino Fraga Filho, reitor em exercício, e seus colegas de Conselho desceram aqueles dois andares virtualmente prisioneiros.

Vladimir se lembra da cena como se ela tivesse acabado de acontecer:

Descendo por aquela espécie de corredor polonês, eles sentem que não podiam continuar como antes. O passivo virou ativo. Os meros depositários dos conhecimentos – ou da ignorância – deles, estão agora cobrando, exigindo. Era uma ruptura na cabeça do professor.

Os estudantes brasileiros tinham mais petulância do que os seus colegas franceses. Em maio de 68, na porta do Hôtel du Levant, na rua de La Harpe, no Quartier Latin, o professor Fernando Henrique Cardoso costumava fazer o relato dos acontecimentos estudantis em Nanterre, onde lecionava. O que mais o impressionava, e à sua seleta platéia – Leon Hirszman, José Celso Martinez Corrêa, Ítala Nandi, Liana Aureliano –, era o respeito que o estudante francês ainda mantinha pelo professor no trato diário. Enquanto virava Paris pelo avesso, Cohn-Bendit, por exemplo, se perfilava diante dos seus mestres e dizia: “Oui, Monsieur le professeur”.

Sentados como alunos em cadeiras escolares de braços, formando um semicírculo na arena, os professores pareciam examinandos diante de uma interminável banca examinadora. Espremidos em fileiras que começavam no chão e subiam até o último degrau da arquibancada, os estudantes faziam um cerco intransponível.

O primeiro a falar foi o reitor, ressaltando que estudantes e professores tinham objetivos comuns – “apenas seguiam caminhos diferentes”. Os professores, segundo ele, de “forma silenciosa”, batalhavam também por mais verbas para a universidade e eram contra transformação em fundação.

O momento mais aplaudido foi quando o corajoso reitor respondeu à pergunta se era contra a repressão: “Vocês querem que eu diga que sou aqui ou que vá dizer lá fora para os policiais?” rebateu, arrancando risos e demorados aplausos.

Clementino iria demonstrar um grande desassombro não só diante dos estudantes, como, mais tarde, ao enfrentar a polícia. “Além de tudo ele era hábil”, depõe Vladimir. “Opôs-se a algumas teses nossas e dizia, quando era o caso ‘isso aqui, não’. Foi obrigado a conversar com a gente mas manteve um comportamento correto. Os outros professores só se levantavam para dizer: ‘concordo com os estudantes em gênero, número e grau’.

Às 15h30min, chegou a notícia de que tinham sido presos dois funcionários da UFRJ, além de vários estudantes, e de que chegava mais um carroção do DOPS. O reitor decidiu então sair para pedir a retirada do dispositivo policial.

Enquanto isso, a assembleia continuava ouvindo os professores, que em geral ressaltavam o caráter comum das reivindicações de mestres e alunos. O professor Hélio Luz, o diretor do Instituto de Nutrição, chegou a perguntar: “Como podemos ser contra vocês, se aí ao lado muitos de nós temos nossos filhos e filhas?”

Às 16h30m, voltava o incansável Clementino Fraga Filho informando que tivera entendimentos com o chefe do policiamento, obtendo a garantia de que os estudantes não seriam molestados, “desde que saiam em ordem, em pequenos grupos, sem fazer passeata ou qualquer manifestação”.

Mesmo assim, o reitor não ficou satisfeito com a resposta e disse que iria pedir diretamente ao governador Negrão de Lima para “retirar o policiamento”.

Às 18h30min, Clementino voltava finalmente com uma definitiva informação: dentro de 10 minutos as tropas seriam retiradas:

“O governador atendeu à solicitação de que saísse tanto o esquema ostensivo, como o de policiais à paisana”, informou o reitor, debaixo de uma aclamação.

Eles saíram e foram massacrados – da maneira como os jornais mostraram no dia seguinte. Todos tinham sido traídos, inclusive, ao que tudo indica, o próprio governador. O secretário de Segurança teria preferido obedecer ao comando do I Exército.

Se fosse possível precisar o momento exato em que o governo Costa e Silva perdeu definitivamente a batalha pela conquista da opinião pública, esse momento estaria situado entre os dias 19, 20 e 21 de junho – quarta, quinta e sexta-feira. Mais por insensatez própria do que por estratégia do adversário, as autoridades estaduais e federais, em três dias, atraíram para si o ódio da classe média, e aceleraram o que na época se chamava de “ascenso do ME”.

A morte de Édson Luís já tinha provocado uma grande comoção, a repressão na porta da Candelária chocara e indignara, mas o que de fato levou a população a tomar partido, a se revoltar, a entrar fisicamente na guerra, foi a “sexta-feira sangrenta”.

Graças a ela, a cidade estava quase pronta para a Passeata dos 100 Mil.”

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