sábado, 25 de janeiro de 2014

A Feiticeira de Florença, de Salman Rushdie

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1346-0

Tradução: José Rubens Siqueira

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 406

Sinopse: Amigo de infância do célebre Niccolò Machiavelli, Antonino Argalia viveu na Florença renascentista até perder os pais para a peste. Sozinho, decide tentar a sorte em terras distantes, oferecendo seus serviços como mercenário. Peripécias diversas acabam por alçá-lo à frente das forças otomanas em luta contra o xá da Pérsia, em 1514. Uma vez derrotado o xá, Argalia conhece Qara Köz, ex-amante do soberano e mulher de beleza e poderes mágicos, por quem se apaixona de imediato.

A história de Qara Köz, a feiticeira de Florença, é contada ao imperador Akbar, o Grande, por um atrevido forasteiro que atravessa o mundo para comunicar ao soberano mongol que é seu parente direto. Numa intrigante sucessão de aventuras, o misterioso contador de histórias vai revelando os caminhos que conduzem Argalia e sua bela mulher desde Istambul até a Florença dos Medici.

Mesclando habilmente realidade e ficção, A feiticeira de Florença aproxima a cidade de Machiavelli de um império oriental que atinge, também no século XVI, apogeu comparável nas artes e no pensamento filosófico. Teriam as idéias e os ideais renascentistas florescido também do outro lado do mundo, na corte de Akbar? É a resposta a essa pergunta que Salman Rushdie expõe com graça e agilidade nesta obra-prima encantadora.

“Um romance marcado pela engenhosidade e pela ambição - nada menos que uma defesa da imaginação humana.” - The New York Times


 

““Se você fosse um ateu, Birbal”, o imperador desafiou seu primeiro-ministro, “o que diria aos verdadeiros crentes de todas as grandes religiões do mundo?” Birbal era um brâmane devoto de Trivikrampur, mas respondeu sem hesitar: “Eu lhes diria que em minha opinião eles eram todos ateus também; eu apenas acredito em um deus a menos que cada um deles”. “Como assim?”, perguntou o imperador. “Todos os verdadeiros crentes têm boas razões para desacreditar de todos os deuses exceto o seu próprio”, disse Birbal, “então são eles que, juntos, me dão todas as razões para eu não acreditar em nenhum.”

 

 

“Como eram belos, seus filhos! Com que força jogavam! Veja o Príncipe Herdeiro Salim, com catorze anos apenas, arqueiro já tão hábil que as regras do esporte estavam sendo reformadas para encaixá-lo. Ah, Murad, Daniyal, meus galopadores, o imperador pensou. Como ele os amava, e no entanto que vagabundos eles eram! Olhe os olhos deles: já estavam bêbados. Tinham onze e dez anos e já estavam bêbados, bêbados no comando de cavalos, os tolos. Ele havia dado instruções severas à criadagem, mas aqueles eram príncipes do sangue, e nenhum criado ousava contradizê-los.

Ele os mantinha espionados, claro, de forma que sabia tudo sobre o vício do ópio de Salim e seus feitos de lasciva perversão noturna. Talvez fosse compreensível que um sujeito jovem no primeiro jorro de sua potência desenvolvesse um gosto por sodomizar mulheres bonitas, mas logo seria preciso soprar uma palavra no ouvido dele, porque as bailarinas andavam reclamando que os traseiros doloridos, seus botões de romã vandalizados, dificultavam seu desempenho.”

 

 

“No centro da sala principal da Casa da Audiência Privada, havia uma árvore de arenito vermelho da qual pendia o que aos olhos não treinados do visitante Mogor dell’ Amore pareceu um imenso cacho de bananas de pedra estilizadas. Grandes “galhos” de pedra vermelha corriam do alto do tronco da árvore para os quatro cantos da sala. Do intervalo entre esses ramos pendiam dosséis de seda, bordados com ouro e prata; e debaixo dos dosséis e das bananas, de costas para o grosso tronco de pedra, estava o homem mais assustador do mundo (com uma exceção): um homem pequeno e adocicado de enorme intelecto e cintura, amado pelo imperador, odiado por rivais invejosos, um lisonjeador, adulador, devorador de quinze quilos de comida por dia, um homem capaz de mandar seus cozinheiros prepararem mil pratos diferentes para a refeição da noite, um homem para quem a onisciência não era uma fantasia, mas um requisito mínimo da vida.

Tratava-se de Abul Fazl, o homem que sabia tudo (exceto línguas estrangeiras e as muitas línguas incultas da índia, que lhe escapavam, todas, de forma que ele transmitia uma imagem incomum e monoglota na Babel multilinguística daquela corte). Historiador, espião-mestre, a mais brilhante das Nove Estrelas e segundo confidente mais próximo do homem mais assustador do mundo (sem exceção), Abul Fazl sabia a verdadeira história da criação do mundo, que tinha ouvido, dizia, dos próprios anjos e sabia também quanta forragem os cavalos dos estábulos imperiais podiam comer por dia e a receita aprovada de biryani e por que escravos haviam sido rebatizados de discípulos e a história dos judeus e a ordem das esferas celestiais e os Sete Graus do Pecado, as Nove Escolas, as Dezesseis Dificuldades, as Dezoito Ciências e as Quarenta e Duas Coisas Impuras. Ele era também notificado, através de sua rede de informantes, de cada uma das coisas que acontecia em cada língua dentro das muralhas de Fatehpur Sikri, todos os segredos sussurrados, todas as traições, todos os deleites, todas as promiscuidades, de forma que cada pessoa por trás daquelas muralhas estava também à sua mercê, ou à mercê de sua pena, que o rei Abdullah de Bokhara dissera que se devia temer mais que até a espada de Akbar, exceto apenas o homem mais assustador do mundo (sem exceção), que não tinha medo de ninguém, e que era, claro, o imperador Akbar, seu senhor.”

 

 

“Se o homem havia criado deus, então o homem podia incriá-lo também. Ou era possível uma criação escapar ao poder do criador? Podia deus, uma vez criado, ter se tornado impossível de destruir? Esses atritos adquiriam uma autonomia da vontade que os tornava imortais? O imperador não tinha as respostas, mas as próprias perguntas pareciam uma espécie de resposta.”

 

 

“Quanto aos livros, porém, Akbar havia mudado o protocolo. Segundo os velhos hábitos, qualquer livro que chegasse à presença imperial precisava ser lido por três comentadores diferentes e declarado livre de rebeldia, obscenidade e mentiras. “Em outras palavras”, o jovem rei dissera ao subir ao trono, “só podemos ler os livros mais chatos já escritos. Bom, isso não serve absolutamente.”

Hoje em dia todo tipo de livro era permitido, mas as resenhas de três comentadores eram apresentadas ao imperador antes de ele abri-los, por causa do abrangente, supremo protocolo referente à impropriedade da surpresa real.”

 

 

“A princesa Qara Köz instintivamente sabia o que fazer para se proteger e também para conquistar o coração dos homens, o que tantas vezes acabava sendo a mesma coisa.”

 

 

“‘Essa pode ser a maldição da raça humana’, respondeu Mogor. ‘Não que sejamos tão diferentes uns dos outros, mas que sejamos tão parecidos’.”

 

 

““E você, com seus três deuses, um carpinteiro, um pai e um espírito, e a mãe do carpinteiro em quarto lugar", perguntou o imperador a Mogor, com alguma irritação, “você dessa terra santa que enforca seus bispos e queima seus padres na fogueira, enquanto seu grande padre comanda um exército e age com a mesma brutalidade de qualquer general ou príncipe comum – qual das loucas religiões desta terra para você achou mais atraente? Ou elas são para você todas a mesma coisa em baixeza? Aos olhos do padre Acquaviva e do padre Monserrate, temos certeza, nós somos tudo o que o seu Argalia pensava que éramos, o que quer dizer porcos sem deus”.

“Senhor”, disse Mogor dell'Amore, com calma, “sinto atração pelos grandes panteões politeístas porque as histórias são melhores, mais numerosas, mais dramáticas, mais engraçadas, mais maravilhosas; e porque os deuses não nos dão bom exemplo, eles interferem, são vaidosos, petulantes e se comportam mal, o que, confesso, é bem atraente”.

“Temos a mesma sensação”, disse o imperador, retomando a compostura, “e nosso afeto por esses deuses devassos, zangados, brincalhões, amorosos é muito grande. Fundamos uma força de cento e um homens para contar e dar nome a todos, a cada divindade venerada no Hindustão, não os celebrados, altos deuses, mas todos os menores também, os pequenos espíritos de um lugar, de bosques sussurrantes ou murmurejantes regatos de montanha. Mandamos que deixassem suas casas e famílias e embarcassem numa viagem sem fim, uma viagem que só termina quando eles morrerem, porque a tarefa que lhes demos é impossível, e quando um homem assume o impossível ele viaja todo dia com a morte, aceita a jornada como uma purificação, uma expansão da alma, de forma que se transforma numa jornada não para os nomes dos deuses, mas para o próprio Deus. Eles mal começaram seus trabalhos e já recolheram um milhão de nomes. Que proliferação de divindade! Nós achamos que esta terra tem mais entidades sobrenaturais do que pessoas de carne e osso, e ficamos felizes de viver num mundo tão mágico. E no entanto temos de ser o que somos. Um milhão de deuses não são nossos deuses; a austera religião de nosso pai sempre será a nossa, assim como o credo do carpinteiro é a sua”.”

 

 

“Quando a solidão era expulsa, a pessoa ficava mais ela mesma, ou menos? A multidão realçava a identidade ou apagava?”

 

 

“Alessandra aperfeiçoara havia muito a arte de ver só o que ela queria, o que constituía uma conquista essencial se você pretendia ser um dos senhores do mundo e não sua vítima.”

 

 

“Contra Vlad III, o voivode de Wallachia – Vlad “Dracula”, o “diabo-dragão”, o Príncipe Empalador, Kazikli Bey –, nenhum poder comum conseguia triunfar. Começaram a dizer que o príncipe Vlad bebia o sangue de suas vítimas empaladas enquanto elas se retorciam nos espasmos da morte nas estacas, e que beber sangue vivo de homens e mulheres lhe dava um estranho poder sobre a morte. Ele não podia morrer. Ele não podia ser morto. Era também o bruto dos brutos. Cortava o nariz dos homens que matava e mandava para o príncipe da Hungria para se gabar de seu poder. Essas histórias faziam o exército temê-lo, e a marcha para Wallachia não foi feliz. Para encorajar os janízaros, o sultão distribuiu trinta mil moedas de ouro e disse aos homens que se eles vencessem ganhariam títulos de propriedades e recobrariam o uso de seus nomes. Vlad, o Diabo, já havia queimado toda a Bulgária e empalado vinte e cinco mil pessoas em estacas de madeira, mas suas forças eram menores que o exército otomano. Ele recuou e deixou terra arrasada em seu caminho, envenenou poços e abateu gado. Quando o exército do sultão se viu desolado sem comida nem água, o Rei Diabo realizou ataques de surpresa. Muitos soldados foram mortos e seus corpos espetados em varas pontudas. Então, Dracula retirou-se para Tirgoviste e o sultão declarou: “Será a última parada do diabo”.

Mas em Tirgoviste viram uma coisa terrível. Vinte mil homens, mulheres e crianças tinham sido empalados pelo diabo numa paliçada de estacas em torno da cidade, só para mostrar ao exército que avançava o que o esperava. Havia bebês agarrados a suas mães empaladas em cujos seios podres viam-se ninhos de corvos. Diante da visão da floresta de empalados, o sultão ficou enojado e retirou suas tropas desanimadas. Parecia que a campanha ia terminarem catástrofe, mas o herói deu um passo à frente com seu grupo leal. “Faremos o que é preciso fazer”, disse. Um mês depois, o herói retornou a Istambul com a cabeça do diabo num pote de mel. Afinal de contas, Dracula podia morrer, apesar dos rumores em contrário. Seu corpo havia sido empalado como tantos outros e deixado para os monges de Snagov enterrarem como quisessem.”

 

 

“Quando um homem não é querido, algo nele começa a morrer. Todo homem precisa que outros homens se voltem para ele de dia e que uma mulher se envolva em seus braços à noite.”

 

 

““Se acha que vou fazer isso”, disse Hamida Bano, “então essas histórias do estrangeiro realmente deixaram você de miolo mole”. O imperador olhou a mãe nos olhos. “Quando o imperador dá uma ordem”, disse ele, “o castigo para desobediência é a morte”.”

 

 

“(para que pudesse subir ao trono sem concorrência familiar) Selim caçou e estrangulou seus irmãos Ahmed, Korkud e Shahinshah, e matou os filhos deles também. A ordem foi restaurada e o risco de um golpe eliminado. Muitos anos depois, quando Argalia contou a Niccolò il Machia sobre esses feitos, ele os justificou dizendo: “Quando um príncipe toma o poder, ele precisa dar o pior de si imediatamente, porque depois disso cada ato seu parecerá a seus súditos uma melhoria no modo como ele começou”.”

 

 

“Não há herói que não descubra o vazio do heroísmo antes de morrer.”

 

 

“Não o mereciam. Aqueles rústicos o mereciam, mas em geral o povo merecia os cruéis príncipes que amava. A dor que percorrera seu corpo não era dor, porém conhecimento. Era uma dor educativa que rompia os últimos fragmentos de sua confiança nas pessoas. Argalia servira o povo e tinham lhe pagado com dor, naquele lugar subterrâneo sem luz, aquele lugar sem nome em que gente sem nome fazia coisas sem nome com corpos que eram também sem nome, porque nomes não importavam ali, apenas a dor importava, a dor seguida pela confissão, seguida pela morte. O povo havia desejado a sua morte, ou pelo menos não se importara se ele viveria ou morreria. Na cidade de Florença, que dera ao mundo a ideia do valor e da liberdade da alma humana individual, não tinham dado valor a ele nem se importado um mínimo com a liberdade de sua alma, tampouco com a integridade de seu corpo. Ele havia dedicado ao povo catorze anos de serviços honestos e honrados e não tinham dado importância a sua soberana vida individual, a seu direito humano de permanecer vivo. Pessoas assim deveriam ser afastadas. Eram incapazes de amor ou justiça e, portanto, não significavam nada. Gente assim não importava mais. Não eram primárias, mas secundárias. Só os déspotas importavam. O amor do povo era instável e inconstante, e desejar esse amor era loucura. Não existia amor. Existia apenas poder.”

 

 

“Depois que um homem esteve numa câmara de tortura, seus sentidos nunca mais esquecem certas coisas, a úmida escuridão, o frio fedor de excremento humano, os ratos, os gritos. Depois que um homem foi torturado, há uma parte dele que nunca para de sentir dor. O castigo conhecido como strappado estava entre os momentos mais torturantes que podiam ser infligidos a uma pessoa humana sem matá-la de uma vez. Os pulsos eram amarrados às costas, e a corda que os prendia passada numa polia no teto. Quando o homem era levantado do chão por aquela corda, a dor em seus ombros se transformava no mundo inteiro. Não apenas a cidade de Florença com seu rio, não apenas a Itália, mas toda a plenitude de Deus era apagada por essa dor.”

 

 

“Muito se falou em “sabedoria oriental”, o que Qara Köz descartou quando chegou a seus ouvidos. “Não existe nenhuma sabedoria particular no Oriente”, ela disse a Argalia. “Todos os seres humanos são tolos no mesmo grau”.”

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A Rebelião das Massas – José Ortega y Gasset

Editora: domínio público
Tradução: Herrera Filho
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 304
Sinopse: Ortega Y Gasset avalia o homem médio quanto a sua capacidade para continuar a civilização moderna e quanto à sua adesão à cultura. Tentando responder a questões como quem manda no mundo? Ele discute a atitude do homem médio ante a civilização e a cultura.
A rebelião das massas é um ensaio filosófico brilhante, um dos livros mais importantes do século XX. A esta altura, 85 anos depois do seu lançamento, o livro já foi reeditado e traduzido inúmeras vezes e para dezenas de línguas.
O autor coloca em questão os conceitos de homem-massa, razão histórica e governo mundial. Para o público brasileiro, o ensaio de Ortega y Gasset, acidentalmente político, mas essencialmente filosófico, talvez tenha mais a dizer hoje do que em qualquer outro período da história nacional.

“No final das contas, o engano vem a ser um humilde parasita da ingenuidade.”


“A forma de pressão social que é o poder público funciona em toda sociedade, inclusive naquelas primitivas em que não existe ainda um organismo especial encarregado de manejá-lo. Se a esse órgão diferenciado a quem se entrega o exercício do poder público se quer chamar Estado, diga-se que em certas sociedades não há Estado, mas não se diga que nelas não há poder público. Onde há opinião pública, como poderá faltar um poder público se este não é mais que a violência coletiva suscitada por aquela opinião? Ora bem, que há séculos e com intensidade crescente existe uma opinião pública europeia e até uma técnica para influir nela – é incômodo negá-lo.”


“Rotas e sem vigência quase todas as normas com que a sociedade presta uma continência ao indivíduo, não podia este constituir-se uma dignidade se não a extraía do fundo de si mesmo. Mal pode fazer-se isso sem alguma exageração, ainda que seja somente para se defender do abandono orgiástico em que vivia seu contorno.”


“Veja-se, por exemplo, o que há mais de oitenta anos escrevia Stuart Mill: ‘À parte as doutrinas particulares de pensadores individuais, existe no mundo uma forte e crescente inclinação a estender em forma extrema o poder da sociedade sobre o indivíduo, tanto por meio da força da opinião como pela legislativa. Ora bem, como todas as mudanças que se operam no mundo têm por efeito o aumento da força social e a diminuição do poder individual, este desbordamento não é um mal que tenda a desaparecer espontaneamente, mas, ao contrário, tende a fazer-se cada vez mais formidável. A disposição dos homens, seja como soberanos, seja como concidadãos, a impor aos demais como regra de conduta sua opinião e seus gostos, se acha tão energicamente sustentada por alguns dos melhores e alguns dos piores sentimentos inerentes à natureza humana, que quase nunca se reprime senão quando lhe falta poder. E como o poder não parece achar-se em via de declinar, mas de crescer, devemos esperar, a menos que uma forte barreira de convicção moral não se eleve contra o mal, devemos esperar, digo, que nas condições presentes do mundo esta disposição nada fará senão aumentar’.”


“Nas revoluções tenta a abstração sublevar-se contra o concreto; por isso é consubstancial às revoluções o fracasso.”


“As revoluções tão incontinentes em sua pressa, hipocritamente generosa, de proclamar direitos, violaram sempre, espezinhado e esfarrapado, o direito fundamental do homem, tão fundamental que é a definição mesma de sua substância: o direito à continuidade.”


“Surpreender-se, estranhar, é começar a entender. E o esporte e o luxo específico do intelectual. Por isso sua atitude gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para umas pupilas bem abertas. Isso, maravilhar-se, é a delícia vedada ao futebolista e que, ao contrário, leva o intelectual pelo mundo em perpétua embriaguez de visionário. Seu atributo são os olhos em pasmo. Por isso, os antigos deram a Minerva a coruja, o pássaro com os olhos sempre deslumbrados.”


“O homem seleto não é o petulante que se supõe superior aos demais, mas o que exige mais de si que os demais, embora não consiga cumprir em sua pessoa essas exigências superiores. E é indubitável que a divisão mais radical que cabe fazer na humanidade, é esta em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada especial, mas que para elas viver é ser em cada instante o que já são, sem esforço de perfeição em si mesmas, boias que vão à deriva.”


“É notório que sustento uma interpretação da história radicalmente aristocrática.”


“Qual é, em resumo, a altura de nosso tempo?
Não é plenitude dos tempos, e entretanto, sente-se sobre todos os tempos sidos e por cima de todas as conhecidas plenitudes. Não é fácil formular a impressão que de si mesma tem nossa época: crê ser mais que as demais, e ao mesmo tempo sente-se como um começo, sem estar segura de não ser agonia. Que expressão escolheremos? Talvez esta: mais que os demais tempos e inferior a si mesma. Fortíssima e ao mesmo tempo insegura de seu destino. Orgulhosa de suas forças e ao mesmo tempo temendo-as. (...)
Vivemos em um tempo que se sente fabulosamente capaz para realizar, mas que não sabe o que realizar. Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo. Sente-se perdido em sua própria abundância. Com mais meios, mais saber, mais técnicas que nunca, o mundo atual vai como o mais infeliz que tenha havido: puramente ao acaso.”


“Acontece-lhe como se dizia do Regente durante a infância de Luiz XV – tinha todos os talentos, menos o talento para usar deles.”


“A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que de nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. Nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra nossa vida. Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajetória está absolutamente predeterminada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo – o mundo é sempre este, este de agora – consiste em todo o contrário. Em vez de impor-nos uma trajetória, impõe-nos várias e, consequentemente, nos força... a eleger. Surpreendente condição a de nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem um só instante se deixa descansar nossa atividade de decisão. Inclusive quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir.
É, pois, falso dizer que na vida “decidem as circunstâncias”. Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso caráter.”


“O vaidoso necessita dos demais, busca neles a confirmação da ideia que quer ter de si mesmo.”


“O tolo é vitalício e impermeável. Por isso dizia Anatole France que o néscio é muito mais funesto que o malvado. Porque o malvado descansa algumas vezes; o néscio, jamais.”


“O viajante que chega a um país bárbaro, sabe que naquele território não regem princípios aos quais possa recorrer. Não há normas bárbaras propriamente ditas, a barbárie é ausência de norma e de possível apelação.”


“Desde já, uma atitude anti-algo parece posterior a este algo, posto que signifique uma reação contra ele e supõe sua prévia existência. Mas a inovação que o anti representa se desvanece no vazio ademane negador e deixa só como conteúdo positivo uma “antigualha”. Quem se declara anti-Pedro não faz, traduzindo sua atitude à linguagem positiva, senão declarar-se partidário de um mundo onde Pedro não existe. Mas isso é precisamente o que acontecia ao mundo quando ainda não havia nascido Pedro. O antipedrista, em vez de colocar-se depois de Pedro, coloca-se antes e retrocede toda a película à situação passada, ao cabo da qual está inexoravelmente o reaparecimento de Pedro. Acontece, pois, com todos estes anti o que, segundo a lenda, aconteceu a Confúcio. O qual nasceu, naturalmente, depois de seu pai; mas, diabo!, nasceu já com oitenta anos enquanto seu progenitor não tinha mais que trinta. Todo anti não é mais que um simples e vazio não.
Seria tudo muito fácil se com um não puro e simples aniquilássemos o passado. Mas o passado é pura essência revenant. Se o mandamos embora, volta, volta irremediavelmente. Por isso sua única autêntica superação é não mandá-lo embora. Contar com ele. Comportar-se à sua vista para sorteá-lo, evitá-lo. Em suma, “a altura dos tempos”, com hiperestésica consciência da conjuntura histórica.
O passado tem razão, a sua. Se não se lhe dá essa que tem, voltará a reclamá-la, e de passagem a impor a que não tem.”


“Este personagem, que agora anda por toda a parte e onde quer impor sua barbárie íntima, é, com efeito, o garoto mimado da história humana. O garoto mimado é o herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora a herança é a civilização – as comodidades, a segurança; em suma, as vantagens da civilização. Como vimos, só dentro da folga social que esta fabricou no mundo, pode surgir um homem constituído por aquele repertório de feições, inspirado por tal caráter. É uma de tantas deformações como o luxo produz na matéria humana. Tenderíamos ilusoriamente a crer que uma vida nascida em um mundo abastado seria melhor, mais vida e de superior qualidade à que consiste, precisamente, em lutar com a escassez. Mas não é verdade. Por razões muito rigorosas e arquifundamentais que agora não é oportuno enunciar. Agora, em vez dessas razões, basta recordar o fato sempre repetido que constitui a tragédia de toda a aristocracia hereditária. O aristocrata herda, quer dizer, encontra atribuídas a sua pessoa umas condições de vida que ele não criou, portanto, que não se produzem organicamente unidas a sua vida pessoal e própria. Acha-se ao nascer instalado, de repente e sem saber como, em meio de sua riqueza e de suas prerrogativas. Ele não tem, intimamente, nada que ver com elas, porque não vêm dele. São a carapaça gigantesca de outra pessoa, de outro ser vivente, seu antepassado. E tem de viver como herdeiro, isto é, tem de usar a carapaça de outra vida. Em que ficamos? Que vida vai viver o “aristocrata” de herança, a sua ou a do prócer inicial? Nem uma nem outra. Está condenado a representar o outro, portanto, a não ser nem o outro nem ele mesmo. Sua vida perde inexoravelmente autenticidade, e converte-se em pura representação ou ficção de outra vida. A abundância de meios que está obrigado a manejar não o deixa viver seu próprio e pessoal destino, atrofia sua vida. Toda vida é luta, esforço por ser ela mesma. As dificuldades com que tropeço para realizar minha vida são, precisamente, o que desperta e mobiliza minhas atividades, minhas capacidades. Se meu corpo não me pesasse eu não poderia andar. Se a atmosfera não me oprimisse, sentiria meu corpo como uma coisa vaga, fofa, fantasmática. Assim, no “aristocrata” herdeiro toda a sua pessoa vai se desvanecendo, por falta de uso e esforço vital. O resultado é essa específica parvoíce das velhas nobrezas, que não se assemelha a nada e que, a rigor, ninguém descreveu ainda em seu interno e trágico mecanismo – o interno e trágico mecanismo que conduz toda a aristocracia hereditária à sua irremediável degeneração.”


“Envilecimento, acanalhamento, não é outra coisa senão o modo de vida que resta a quem se negou a ser o que tem que ser. Este seu autêntico ser não morre por isso, mas converte-se em sombra acusadora, em fantasma, que lhe faz sentir constantemente a inferioridade da existência que leva a respeito da que tinha que levar. O envilecido é o suicida sobrevivente.”


“Mas o destino – o que vitalmente se tem que ser ou não se tem que ser – não se discute, mas sim aceita-se ou não. Se o aceitamos, somos autênticos; se não o aceitamos, somos a negação, a falsificação de nós mesmos. O destino não consiste naquilo que temos vontade de fazer; mas melhormente se reconhece e mostra seu claro, rigoroso perfil na consciência de ter que fazer o que não está na nossa vontade.”


“A isso conduz o intervencionismo do Estado: o povo se converte em carne e massa que alimenta o mero artefato e máquina que é o Estado. O esqueleto come a carne que o rodeia. O andaime se torna proprietário e inquilino da casa.”


“A verdade é que não se manda com os janízaros. Assim, Talleyrand a Napoleão: “Com as baionetas, Sire, pode-se fazer tudo, menos uma coisa: sentar-se sobre elas.” E mandar não é atitude de arrebatar o poder, mas tranquilo exercício dele. Em suma, mandar é sentar-se.”


“O essencialmente confuso, intricado, é a realidade vital concreta, que é sempre única. Quem seja capaz de orientar-se com precisão nela; aquele que vislumbre sob o caos que apresenta toda situação vital a anatomia secreta do instante; em suma, quem não se perca na vida, esse é de verdade uma mente lúcida. Observai os que vos rodeiam e vereis como avançam perdidos em sua vida; vão como sonâmbulos, dentro de sua boa ou má sorte, sem ter a mais leve suspeita do que lhes acontece. Ouvi-los-eis falar em fórmulas taxativas sobre si mesmos e sobre seu contorno, o que indicaria que possuem ideias sobre tudo isso. Porém, se analisais superficialmente essas ideias, notareis que não refletem muito nem pouco a realidade a que parecem referir-se, e se aprofundais na análise achareis que nem sequer pretendem ajustar-se a tal realidade. Pelo contrário: o indivíduo trata com elas de interceptar sua própria visão do real, de sua vida mesma. Porque a vida é inteiramente um caos onde a criatura está perdida. O homem o suspeita; mas aterra-o encontrar-se cara a cara com essa terrível realidade, e procura ocultá-la com um véu fantasmagórico onde tudo está muito claro. Não lhe interessa que suas “ideias” não sejam verdadeiras; emprega-as como trincheiras para defender-se de sua vida, como espantalhos para afugentar a realidade.”


“Homem de mente lúcida é aquele que se liberta dessas “ideias” fantasmagóricas e olha de frente a vida, e se convence de que tudo nela é problemático, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade – a saber, que viver é sentir-se perdido –, quem o aceita já começou a encontrar-se, já começou a descobrir sua autêntica realidade, já está no firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo para se agarrar, e esse olhar trágico, peremptório, absolutamente veraz porque se trata de salvar-se, lhe facultará pôr ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas ideias verdadeiras; as ideias dos náufragos. O resto é retórica, postura, íntima farsa. Quem não se sente de verdade perdido perde-se inexoravelmente; é dizer, não se encontra jamais, não topa nunca com a própria realidade.”


“Quem descobre uma nova verdade científica teve antes que triturar quase tudo que havia aprendido e chega a essa nova verdade com as mãos sangrentas por haver jugulado inumeráveis lugares comuns.”


“A realidade que chamamos Estado não é a espontânea convivência de homens que a consanguinidade uniu. O Estado começa quando se obriga a conviver a grupos nativamente separados. Esta obrigação não é desnuda violência, mas que supõe um processo incitativo, uma tarefa comum que se propõe aos grupos dispersos. Antes que nada é o Estado projeto de um fazer e programa de colaboração. Chama-se às pessoas para que juntas façam algo. O Estado não é consanguinidade, nem unidade linguística, nem unidade territorial, nem contiguidade de habitação. Não é nada material, inerte, dado e limitado. É um puro dinamismo – a vontade do fazer algo em comum –, e mercê a isso a ideia estatal não está por nenhum termo físico.”


“Nada tem sentido para o homem, senão em função do porvir.”


“Não se sabe para que centro de gravitação vão ponderar em um futuro próximo as coisas humanas, e por isso a vida do mundo entrega-se a uma escandalosa interinidade. Tudo, tudo que hoje se faz em público e na vida privada – até no íntimo –, sem mais exceção que algumas partes de algumas ciências, é provisional. Acertará quem não se fie de quanto hoje se apregoa, se ostenta, se ensaia e se encomia. Tudo isso irá com mais celeridade do que veio. Tudo, desde a mania do esporte físico (a mania, não o esporte em si) até a violência em política; desde a “arte nova” até os banhos de sol nas ridículas praias da moda. Nada disso tem raízes, porque tudo isso é pura invenção, no mau sentido da palavra, que a faz equivaler a capricho leviano. Não é criação do fundo substancial da vida; não é afã nem mister autêntico. Em suma: tudo isso é vitalmente falso. Dá-se o caso contraditório de um estilo de vida que cultiva a sinceridade e ao mesmo tempo é uma falsificação. Só há verdade na existência quando sentimos seus atos como irrevogavelmente necessários. Não há hoje nenhum político que sinta a inevitabilidade de sua política, e quanto mais extremo é seu gesto, tanto mais frívolo, menos exigido pelo destino. Não há mais vida com raízes próprias, não há mais vida autóctone que a que se compõe de cenas iniludíveis. O resto, o que está em nossa mão pegar ou largar ou substituir, é precisamente falsificação da vida.
A atual é fruto de interregno, de um vazio entre duas organizações do mundo histórico: a que foi, a que vai ser. Por isso é essencialmente provisória. E nem os homens sabem bem a que instituições de verdade servir, nem as mulheres que tipo de homens preferem realmente.”


“Todo o mundo percebe a urgência de um novo princípio de vida. Mas – como sempre acontece em crises parelhas – alguns ensaiam salvar o momento por uma intensificação extremada e artificial, precisamente do princípio caduco. Este é o sentido da erupção “nacionalista” nos anos que correm. E sempre – repito – aconteceu assim. A última chama, a mais extensa. O derradeiro suspiro, o mais profundo. A véspera de desaparecer, as fronteiras se hiperestesiam – as fronteiras militares e as econômicas.
Mas todos estes nacionalismos são becos sem saída. Tente-se projetá-los para o futuro e sentir-se-á o choque. Por aí não se sai para lado nenhum. O nacionalismo é sempre um impulso de direção oposta ao princípio nacionalizador. É exclusivista, enquanto este é inclusivista. Em época de consolidação tem, por sua vez, um valor positivo e é uma alta norma. Mas na Europa tudo está de sobra consolidado, e o nacionalismo não é mais que uma mania, o pretexto que se oferece para iludir o dever de invenção e de grandes empresas. A simplicidade de meios com que opera e a categoria dos homens que exalta revelam de sobra que é o contrário de uma criação histórica.”


“O reconhecimento de um erro é por si mesmo uma nova verdade é como uma luz que dentro deste se acende.
Contra o que acreditem os jeremias, todo erro é uma propriedade que acresce nosso haver. Em vez de chorar sobre ele convém apressar-se a explorá-lo. Para isso é preciso que nos resolvamos a estudá-lo a fundo, a descobrir sem piedade suas raízes e a construir energicamente a nova concepção das coisas que isto nos proporciona.”


“Costumamos, sem mais reflexão, maldizer da escravidão, não advertindo o maravilhoso progresso que representou quando foi inventada. Porque antes o que se fazia era matar os vencidos. Foi um gênio benfeitor da humanidade o primeiro que ideou, em vez de matar os prisioneiros, conservar-lhes a vida e aproveitar seu labor. Augusto Comte, que tinha um grande sentido humano, quer dizer, histórico, viu já deste modo a instituição da escravidão – libertando-se das tolices que Rousseau disse sobre ela – e a nós nos corresponde generalizar sua advertência, aprendendo a olhar todas as coisas humanas sob essa dupla perspectiva, a saber: o aspecto que têm ao chegar e o aspecto que têm ao ir.”


“É imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo que é acompanhado da severa vontade de aprontar os meios de sua execução.”


“A sociedade é convivência sob instâncias.”


“O dinheiro não manda mais senão quando não há outro princípio que mande.”


“Todo gesto vital, ou é um gesto de domínio ou um gesto de servidão.”


“A juventude rende a maior delícia ao ser olhada, a madureza, ao ser ouvida.”


“Que vão fazer aos quarenta os europeus futebolistas? Porque o mundo é certamente uma bola, mas tendo dentro de si mais do que simples ar.”


“Em todas as épocas desejou-se a mulher, mas não em todas foi estimada.”

“De tudo aquilo que é um impulso coletivo e propele a vida histórica inteira em uma ou outra direção, não nos apercebemos nunca, como não nos apercebemos do movimento estelar de nosso planeta, nem a faina química em que se ocupam nossas células. Cada qual crê viver por sua conta, em virtude de razões que supõe personalíssimas. Mas o fato é que sob essa superfície de nossa consciência atuam as grandes forças anônimas, os poderosos alísios da história, sopros gigantescos que nos mobilizam a seu capricho.”

domingo, 12 de janeiro de 2014

Discurso do método – René Descartes

Editora: Martins Fontes

ISBN: 978-85-7827-145-9

Tradução: Maria E. A. P. Galvão (livro), André S. M. Da Silva (notas), Homero Santiago (introdução e análise), Monica Stahel (revisão)

Introdução, análise e notas: Étienne Gilson

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 172

Sinopse: Muitas vezes brandido como uma bandeira, esse texto tornou-se uma das obras emblemáticas da filosofia, e sua celebridade há muito ultrapassou as fronteiras da filosofia propriamente dita. Primeiro livro da filosofia francesa escrito em francês, essa obra inaugura a filosofia moderna e continua sendo uma referência viva para a filosofia mais erudita, mas também para um público mais amplo.


 

“Assim, a sabedoria diferirá profundamente da erudição, pelo fato de esta última estar inteiramente voltada para as coisas, ao passo que a primeira reside apenas no pensamento. Ora, para que um pensamento seja capaz de tirar unicamente de seu próprio fundo todos os conhecimentos úteis ao homem, é preciso estar de posse dos primeiros princípios donde esses conhecimentos derivam-se, saber que todas as ciências humanas são rigorosamente encadeadas e ser capaz de efetuar-lhes a dedução. A unidade do corpo das ciências é evidente, porquanto as ciências, todas em conjunto, são constituídas apenas pelo próprio espírito humano; aparentemente múltiplas quando nos colocamos no ponto de vista dos objetos diferentes que estudam, elas são unas quando nos colocamos no ponto de vista do sujeito pensante, porquanto permanece ele sempre idêntico a si mesmo, seja qual for o objeto que considere. A única dificuldade para dar ao espírito a posse dos verdadeiros princípios e torná-lo capaz de daí deduzir à vontade todas as ciências é fornecer-lhe um método. Chama-se de método a ordem que o pensamento deve seguir para alcançar a sabedoria e conforme à qual ele pensa em certo momento que a alcançou.” (Étienne Gilson)

 

 

“O princípio fundamental em que sua conduta deve inspirar-se é o seguinte: cada um de nós é uma pessoa separada dos outros, e cujos interesses são por conseguinte distintos daqueles do restante do universo, entretanto, como essa pessoa separada não conseguiria subsistir sozinha, ela deve sempre subordinar seus interesses aos interesses legítimos do todo de que ela faz parte.” (Étienne Gilson)

 

 

“A paz da alma, isto é, a própria felicidade, é a recompensa de uma vida que se regra segundo as exigências da razão.” (Étienne Gilson)

 

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“O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm. Assim, não é verossímil que todos se enganem; mas, pelo contrário, isso demonstra que o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina bom senso ou razão, é por natureza igual em todos os homens; e portanto que a diversidade de nossas opiniões não decorre de uns serem mais razoáveis que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos por diversas vias, e não consideramos as mesmas coisas.”

 

 

“A multiplicidade de leis frequentemente fornece desculpas aos vícios, de modo que um Estado é muito mais bem regrado quando, tendo pouquíssimas leis, elas são rigorosamente observadas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que a lógica é composta, acreditei que me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma única vez de observá-los.

O primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las.

O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e supondo certa ordem mesmo entre aqueles que não se precedem naturalmente uns aos outros.

E, o último, fazer em tudo enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir.”

 

 

“Como nossa vontade é propensa por natureza a só desejar as coisas que nosso entendimento lhe apresenta de algum modo como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que estão fora de nós como igualmente afastados de nosso poder, não lastimaremos mais a falta daqueles que parecem ser devidos a nosso nascimento, quando deles formos privados sem nossa culpa, do que lastimamos não possuir os reinos da China ou do México; e que, fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ser livres, estando presos, do que desejamos agora ter corpos de uma matéria tão pouco corruptível como os diamantes, ou asas para voar como os pássaros. Mas confesso que é necessário um longo exercício e uma meditação muitas vezes reiterada para se acostumar a olhar desse ângulo todas as coisas; e creio que é precisamente nisso que consistia o segredo daqueles filósofos que outrora conseguiram subtrair-se do império da fortuna e, apesar das dores e da pobreza, rivalizar em felicidade com seus deuses. Pois, ocupando-se sem cessar em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiam-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além de seus pensamentos, que só isso bastava para impedi-los de terem qualquer apego por outras coisas; e dispunham de seus pensamentos de modo tão absoluto que isso lhes era uma razão para se considerarem mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que qualquer dos outros homens que, não tendo essa filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, nunca dispõem assim de tudo o que querem.”

 

 

“Notando que esta verdade – penso, logo existo – era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que buscava.

Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo e que não havia nenhum mundo, nem lugar algum onde eu existisse, mas que nem por isso podia fingir que não existia; e que, pelo contrário, pelo próprio fato de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, decorria muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que, se apenas eu parasse de pensar, ainda que tudo o mais que imaginara fosse verdadeiro, não teria razão alguma de acreditar que eu existisse; por isso reconheci que eu era uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De sorte que este eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele e mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é.”

 

 

“Nunca observei que através das discussões que se praticam nas escolas se haja descoberto alguma verdade que antes se ignorasse; pois, enquanto cada um procura vencer, esforça-se muito mais em fazer valer a verossimilhança do que em pesar as razões de uma e de outra parte; e os que foram por muito tempo bons advogados nem por isso são depois melhores juízes.”

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Palestina: uma nação ocupada* – Joe Sacco

Editora: Conrad
ISBN: 978-85-7616-430-2
Tradução: Cris Siqueira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 158
Sinopse: O livro é resultado de uma longa viagem que o autor fez ao Oriente Médio. Durante dois meses, Sacco coletou histórias nas ruas, nos hospitais, nas escolas e nas casas dos refugiados. Presenciou violentos confrontos dos soldados com a população e entrevistou vítimas de tortura. Conversou com militantes, com outros já conformados com a situação, com velhos e crianças. Ainda que Sacco não disfarce sua simpatia pela causa palestina, o livro está bem longe de poder ser considerado propaganda. Tem muito humor, auto-ironia e nuances para isso. Um livro fundamental, que transcende o mundo das histórias em quadrinhos e deve ser lido por todos os interessados em bom jornalismo.
Vencedor do Prêmio HQMix de Melhor Graphic Novel Estrangeira de 2000 e do American Books Award de 1996.
Inclui prefácio de José Arbex.

“Se já não é possível, no mundo contemporâneo, separar “notícia” da “imagem da notícia”, isso coloca uma outra indagação, de certa forma angustiante: as imagens que vemos do mundo não são neutras, não são “objetivas”, embora construam a ilusão de o serem, com muito mais competência que o texto. Raramente paramos para pensar que aquilo que vemos na televisão ou impresso nas páginas dos jornais não é “o” mundo, mas “um” mundo, entre muitos outros mundos possíveis. (...)
Vemos, logo sabemos – é isso que nos diz a nossa tradição cultural, e é isso que os grandes oligopólios da mídia utilizam para, diariamente, através dos telejornais, construir o seu mundo como se fosse “o” mundo, o único possível, o único existente. A cobertura da Guerra do Golfo (janeiro/fevereiro de 1991) foi exemplar a esse respeito. Quem “viu” a Guerra do Golfo pela televisão, a partir das imagens transmitidas pela CNN, constatou que não houve derramamento de sangue. Foi uma guerra “limpa”, “cirúrgica”. Durante quarenta dias e quarenta noites, os Estados Unidos lançaram 88,5 mil toneladas de bomba sobre Bagdá, a capital do Iraque, onde viviam 4,8 milhões de habitantes, sem matar absolutamente ninguém! Vimos, diante de nossos olhos, um milagre da tecnologia. Hoje se sabe que pelo menos 100 mil pessoas morreram em Bagdá, incluindo crianças, mulheres e velhos.
O incrível não é que tanta gente tenha morrido. Ao contrário, isso é o esperado. O incrível é que bilhões de telespectadores, em todo o mundo, tenham acreditado que a guerra foi “limpa”. O então presidente dos Estados Unidos, George Bush, terminou a guerra contando com o apoio de 90% da opinião pública de seu país, que, alegremente, exorcizou o “fantasma do Vietnã”. E se tanta gente, no mundo inteiro, acreditou em algo tão absurdo, é porque todos foram vítimas (e, de certa forma, cúmplices) de uma sofisticada “engenharia do consenso” arquitetada pelas grandes corporações da mídia, em comum acordo com o Departamento de Estado dos Estados Unidos. A “engenharia do consenso” não é algo “novo”. Ela vem sendo insistentemente desmascarada e denunciada por Noam Chomsky, para quem a mídia, hoje, é o principal inimigo da democracia.” (Jose Arbex)


“De 1987 até 1988, o primeiro ano da Intifada, quando 400 palestinos foram mortos e 20 mil feridos, o ministro de defesa de Israel Yitzhak Rabin ordenou ataques a protestos com “força, poder e surras” e o primeiro-ministro Yitzhak Shamir ordenou que fosse imposto o “medo da morte nos árabes da área”.”


“– Hoje temos apenas quatro homens feridos a bala internados aqui.
“No pico da violência”, prossegue a enfermeira, “o hospital tinha vinte casos de cada vez: casos de tiroteio de Jenin, Tulkarem e até de Ramallah espalhavam-se pela área das mulheres e até na seção de maternidade...”
“Naqueles dias, quando os shebab – os jovens – ouviam o som de ambulância, logo vinham das escolas ou universidades para doar sangue”, conta-me uma atendente...
Agora os hospitais têm um refrigerador especial para plasma, diz ela... mantém por um ano... eles têm um bom estoque...
– Mas, como em todas as guerras, sangue fresco é melhor.
E o que é essa cicatriz no pescoço dela? Ah, um tiro no pescoço que ela levou na universidade de Bir Zeit enquanto protestava contra um assassinato na Universidade de Belém... três operações delicadas...
Mas, enfim, ela conta, que depois de confrontos, os soldados muitas vezes seguem as ambulâncias e entram no pronto-socorro para interrogar o ferido...
Os soldados fazem o que querem, diz ela, entram nas salas de cirurgia sem máscaras, interrogam visitantes, já gritaram com pessoas que estavam doando sangue, já bateram no diretor do hospital. Outros funcionários contam de soldados que pararam ambulâncias, e outros que tiraram pacientes da sala de cirurgia.”


“Estamos em Balata, o maior campo de refugiados da Cisjordânia, ao lado de Nablus. Alguns palestinos estavam entre os 750 mil que fugiram do que agora é Israel, em 1948...
Eu preciso falar sobre 1948? Não é nenhum segredo como os sionistas usaram boatos, ameaças e massacres para expulsar os árabes e criar uma nova distribuição populacional que garantisse a natureza judia de Israel.
Naturalmente, é mais confortável considerar os refugiados uma consequência lamentável da guerra, mas livrar-se dos palestinos tem sido a ideia desde que Theodor Herzl formulou o sionismo moderno no fim do século XIX. “Teremos que encaminhar a população pobre (sic) para o outro lado da fronteira”, escreveu ele, “gerando empregos para ela nos países vizinhos e negando emprego no nosso próprio país”.
Afinal, argumentavam alguns sionistas, os palestinos eram menos apegados a sua terra natal ancestral do que judeus que não viviam lá há séculos. De acordo com David Ben-Gurion, o primeiro-ministro pioneiro de Israel, um palestino “sente-se à vontade do mesmo modo na Jordânia, no Líbano e mais numa porção de lugares”. Com a iminência da guerra, Ben-Gurion não tinha ilusões quanto a “encaminhar” ou induzir os palestinos a irem embora. “Em cada ataque”, escreveu ele, “uma ofensiva considerável deve ser conduzida, resultando na destruição de lares e na expulsão da população”. Quando conseguiram isso, disse a um assessor, “os árabes palestinos só têm uma coisa a fazer agora – fugir”.
Mas, mesmo que 1948 não seja um segredo, é assunto encerrado, ignorado completamente pela primeira-ministra Golda Meir: “Não é como se houvesse um povo palestino que se considerasse um povo palestino e que nós chegamos, expulsamos e tomamos seu país. Eles não existiam”.
Mas eles existiam sim, e existem ainda, aqui estão eles... e seus filhos, e os filhos dos seus filhos... e eles ainda são refugiados... fracos, pode ser, de acordo com o ponto de vista da imprensa, mas ainda refugiados... o que eu acho que quer dizer que estão esperando para voltar...
Mas voltar para o quê? Perto de 400 vilarejos palestinos foram destruídos pelos israelenses durante e depois da guerra de 48... palestinos que fugiram foram declarados “ausentes”... suas casas e suas terras declaradas “abandonadas” e “não-cultivadas” e foram expropriadas para assentamentos de judeus.”


“Pergunto aos palestinos com quem converso onde trabalham. “Israel! Israel!”, diz a maioria. Os empregos estão em Israel, dizem, não na Cisjordânia. Israel dá as cartas na economia e faz regras em seu próprio favor, como aconteceu quando o ministro da Defesa Rabin disse em 1985: “Nenhuma permissão será dada para o desenvolvimento de agricultura ou indústria (nos territórios ocupados) que possa competir com o Estado de Israel”.”


“– Eram nove da noite. Estávamos em casa. Ouvimos um trator... Alguns colonos tinham vindo demolir canos de esgoto no vilarejo... Houve um confronto... Meu irmão saiu com meu primo pela porta dos fundos até este pequeno telhado para ver o que estava acontecendo... Não para juntar-se aos rebeldes... Um colono atirou neles daquela estrada ali embaixo. Nosso primo morreu imediatamente. Meu irmão levou um tiro na barriga e conseguiu entrar em casa... Os soldados decretaram um toque de recolher e nós não podíamos sair para levá-lo ao hospital... Ele estava com sua mãe e seu pai. Sangrou até morrer em três horas. Ele tinha 21 anos. Meu primo tinha 17.
– E o colono que fez isso?
– Foi liberado no mesmo dia em que foi levado à justiça.
– Enquanto seu julgamento não acaba, o colono não precisa se preocupar com as punições da justiça israelense. De dezembro de 1987 a outubro de 1991, colonos mataram 42 palestinos, e nesse tempo apenas 3 julgamentos foram concluídos. A pior sentença? Três anos.
Por outro lado, palestinos mataram 17 colonos durante o mesmo período de tempo. Seis dos nove suspeitos capturados nesses incidentes receberam prisões perpétuas. Outro recebeu 20 anos. Seis lares foram demolidos. (os últimos dois suspeitos ainda estavam sendo julgados.)”
“Falei com vários internos da Ansar III, mas as recordações a seguir foram tiradas de entrevistas com três homens com histórias típicas...
Os três são profissionais de meia-idade, todos presos em detenção administrativa...
Detenção administrativa é um aprisionamento de seis meses imposto sem julgamento.
Pode ser renovado por mais seis meses... e então mais seis meses... e aí de novo... de novo...
Eu poderia contar-lhe quais foram os crimes desses homens, mas nenhum deles foi acusado de crime algum...
Que assim seja...
– Você cai na armadilha de tentar adivinhar o que fez de errado.
– Nossa história começa com a prisão de Yusef, em março de 1988. Ele está chegando à cadeia de Dhahriya, ao sul de Hebron na Cisjordânia, que também foi o ponto de partida de Iyyad...
– Foi durante o período de punho de ferro, durante a política de ‘ossos quebrados’. Éramos vendados e algemados e eles nos batiam no ônibus. Quando saíamos, tínhamos um corredor polonês de soldados. Dois prisioneiros tiveram os braços quebrados. Então eles mandavam que fizéssemos sons de animais e imitássemos barulho de trem. Eles nos batiam até que concordássemos em fazê-lo. Alguns soldados, incluindo mulheres, faziam churrasco perto dali.
– Os primeiros dois dias em Dhahriya passei ao ar livre... então fiquei 11 dias numa cela. Éramos 36. O barril que servia de banheiro estava cheio. Reclamamos para os soldados, mas era noite e estava chovendo, então eles não esvaziaram o barril. Um prisioneiro gordo tinha que ir ao banheiro. Ele subiu no barril, mas perdeu o equilíbrio e caiu tudo no chão.
– A cela estava cheia de merda. Nós gritávamos. Carregávamos nossos sapatos nas mãos com as meias dentro. Os soldados vieram depois de meia hora e deram-nos sabonetes e água para nos lavarmos, mas o cheiro durou cinco dias.
– Passei 18 dias em Dhahriya antes de receber ordem de prisão administrativa por seis meses. Fui colocado num quarto de quatro por seis metros com umas quarenta pessoas. Em dez dias eles só nos deixaram sair duas vezes, por quinze minutos cada vez.
– Fui levado a uma tenda por dois ou três dias, o que era bem melhor, mas logo fomos transferidos para outra cela, que foi uma espécie de inferno para mim. Fiquei nessa cela por uma semana. Tinha três por quatro metros com 21 pessoas. A porta de metal refletia o sol a partir do meio-dia. A ventilação era péssima. Só um buraco do tamanho de uma moeda na porta para injetar gás caso houvesse uma revolta.
– Para ventilar, duas pessoas pegavam um cobertor e balançavam para cima e para baixo. Fazíamos isso em turnos de dez minutos.
– Eu não dormia mais do que duas ou três horas por noite, no máximo. Ficava sentado na lata de lixo com meu nariz enfiado no buraco até cair no sono de exaustão.
Os primeiros prisioneiros transferidos para Ansar III não sabiam para onde estavam sendo levados. Yusef estava entre eles...
– Eles nos tiraram de nossas celas e nos colocaram em cinco ônibus. Éramos mais de 100. Estávamos com medo. Alguns estavam chorando nos ônibus. Pensávamos que estávamos sendo deportados para a Jordânia ou para o Líbano.
– Depois de quase quatro horas, tiraram-nos do ônibus e percebemos que estávamos em frente a umas tendas. Não sabíamos nada sobre o lugar ou porquê estávamos ali.
– Um soldado duro disse-me que era uma nova prisão.
– Ordenaram que tirássemos nossas roupas e colocássemos uniformes azul-marinho. Na primeira noite, cada um de nós ganhou um pedaço de pão, cinco azeitonas e uma colher de geleia.
– Eles também nos deram cobertores e colchões finos. Fazia muito frio nas tendas. Eu não conseguia dormir.
“Sentimo-nos como animais”, contou Yusef, e adicionou dois itens específicos à lista de privações que eu já havia coletado de outros ex-prisioneiros: as extremas temperaturas do deserto, os insetos, um fornecimento de água tão insuficiente que tinha que ser usado quase que exclusivamente para beber, uma dieta pobre e inadequada, sem trocas de roupas, pouco cuidado médico... em outras palavras, material suficiente para outra serie em quadrinhos...”


*: Romance gráfico.