sábado, 22 de novembro de 2014

A Era dos Impérios (1875-1914) – Eric J. Hobsbawm

Editora: Paz & Terra
ISBN: 978-85-775-3101-1
Tradução: Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 584
Sinopse: Neste livro, o autor faz uma análise dos anos que definiram o século XIX.
Lançando as pesquisas e teorias do autor sobre a expansão capitalista e a dominação europeia, A era dos impérios mostra fatos que marcaram um período de paz, mas que desencadearam um período de guerra e crise. Hobsbawm integra a cultura, a política e a vida social das décadas que antecederam à Primeira Guerra Mundial, construindo uma interpretação estimulante e inovadora.
  


“A invasão do Egito por Napoleão em 1798, opôs os exércitos francês e maiêutico com equipamento comparável. As conquistas coloniais das forças europeias haviam sido realizadas não por causa de armas milagrosas, mas devido a uma maior agressividade, crueldade e, acima de tudo, organização disciplinada.”


“Os invasores da última leva, que criaram o grande Império Otomano, foram gradualmente expulsos das enormes áreas da Europa por eles controladas entre os séculos XVI e XVIII; era óbvio que seus dias na Europa estavam contados, embora em 1880 ainda controlassem uma faixa considerável, que atravessava a península balcânica (partes das atuais Grécia, Iugoslávia e Bulgária, além de toda a Albânia), bem como algumas ilhas. Grande parte dos territórios reconquistados ou liberados só podiam ser considerados como “europeus” por cortesia: na verdade, a península balcânica ainda era comumente chamada de “Oriente Próximo”: por isso, o sudoeste da Ásia veio a ser conhecido como “Oriente Médio”.


“Entretanto, apesar do título programático do grande trabalho de Adam Smith, A Riqueza das Nações (1776), o lugar da “nação” como unidade não era claro na teoria pura do capitalismo liberal, cujas peças básicas eram os átomos irredutíveis da empresa, do indivíduo e da “firma” (sobre a qual não se dizia muito), movidos pelo imperativo de maximizar os ganhos ou minimizar as perdas. Eles operavam “no mercado”, que tinha a escala mundial por limite. O liberalismo foi a anarquia da burguesia e, como o anarquismo revolucionário, não deixava espaço para o Estado. Ou antes, o Estado como fator econômico só existia como algo que interferia nas operações autônomas e automáticas do mercado.
De certa maneira, essa ótica tinha algum sentido. Por um lado, parecia razoável supor – sobretudo após a liberalização das economias em meados do século – que o que fazia essa economia funcionar e crescer eram as decisões econômicas de suas partículas básicas. Por outro lado, a economia capitalista era, e só podia ser mundial. Esta feição global acentuou-se continuamente no decorrer do século XIX, à medida que estendia suas operações a partes cada vez mais remotas do planeta e transformava todas as regiões cada vez mais profundamente. Ademais, essa economia não reconhecia fronteiras, pois funcionava melhor quando nada interferia no livre movimento dos fatores de produção. Assim, o capitalismo, além de internacional na prática, era internacionalista na teoria. O ideal de seus teóricos era uma divisão internacional do trabalho que garantisse o crescimento máximo da economia, seus critérios eram globais: não tinha sentido tentar produzir bananas na Noruega, pois elas podiam ser produzidas muito mais barato em Honduras. Eles desdenhavam os argumentos locais ou regionais em contrário. A teoria pura do liberalismo econômico era obrigada a aceitar as consequências mais extremas, ou mesmo absurdas, de seus pressupostos, desde que se pudesse demonstrar que destes decorria a otimização dos resultados globais. Se fosse possível demonstrar que toda a produção industrial do mundo devia ser concentrada em Madagascar (como 80% de sua produção de relógios estava concentrada numa pequena região da Suíça), ou que toda a população da França devia se mudar para a Sibéria (como uma grande proporção de noruegueses foi, de fato, trasladada pela migração para os EUA), não havia argumentos econômicos contra tais procedimentos.
Que erro econômico podia ser demonstrado no quase monopólio britânico da indústria mundial de meados do século, ou o desenvolvimento demográfico da Irlanda, que perdeu quase a metade de sua população entre 1841 e 1911? O único equilíbrio que a teoria econômica liberal admitia era o mundial. Mas, na prática, esse modelo era inadequado. A economia capitalista mundial em expansão era formada por um conjunto de blocos sólidos, mas também fluidos. Independente das origens das “economias nacionais” que constituíam esses blocos – isto é, de economias definidas por fronteiras de Estados – e das limitações teóricas de uma teoria econômica baseada nelas – elaborada principalmente por teóricos alemães – as economias nacionais existiam porque as nações-Estado existiam. Pode ser verdade que ninguém pensaria na Bélgica como primeira economia industrializada do continente europeu se seu território tivesse continuado a fazer parte da França (como antes de 1815) ou a ser uma região dos Países Baixos Unidos (como entre 1815 e 1830). Entretanto, já que a Bélgica era um Estado, tanto sua política econômica como a dimensão política das atividades econômicas de seus habitantes eram plasmadas por esse fato. Sem dúvida, é verdade que havia e há atividades econômicas, como as finanças internacionais, que são essencialmente cosmopolitas, escapando assim às restrições nacionais, na medida em que estas eram eficazes. Mesmo assim, essas empresas transnacionais tiveram o cuidado de se vincular a uma economia nacional convenientemente importante.”


“A questão importante não é quem, no contexto da economia mundial em expansão, cresceu mais e mais rápido, mas o conjunto do crescimento desta.
Quanto ao ritmo de Kondratiev (o contraste entre a Grande Depressão e o boom secular posterior motivou as primeiras especulações sobre aquelas “ondas longas” no desenvolvimento do capitalismo mundial, mais tarde associadas ao nome do economista russo Nikolai Kondratiev) – chamá-lo de “ciclo”, no sentido estrito da palavra, seria uma petição de princípio – ele certamente coloca questões analíticas fundamentais acerca da natureza do crescimento econômico no período capitalista ou, como podem argumentar alguns estudantes, acerca do crescimento de qualquer economia mundial. Lamentavelmente, não há nenhuma teoria que mereça aceitação ampla sobre essa curiosa alternância de fases de confiança e apreensão, que juntas formam uma “onda” de cerca de meio século. A teoria mais conhecida e elegante a esse respeito, a de Josef Alois Schumpeter (1883-1950), associa cada etapa “descendente” ao esgotamento do lucro potencial de uma série de “inovações” econômicas e o novo movimento ascendente a um novo conjunto de inovações, percebidas basicamente – mas não só – como tecnológicas, cujo potencial será, por sua vez, exaurido. Assim, as novas indústrias, agindo como “setores líderes” do crescimento econômico – por exemplo, o algodão na primeira revolução industrial, as ferrovias durante e após os anos 1840 –, se tornam, por assim dizer, os motores que arrancam a economia mundial do marasmo em que estava temporariamente imersa. Essa teoria é bastante plausível, pois cada um dos períodos seculares de movimento ascendente desde os anos 1780 esteve, de fato, associado ao surgimento de setores tecnologicamente revolucionários: sem esquecer o mais excepcional de todos esses booms econômicos, o das duas décadas e meia anteriores aos anos 1970.”


“De uma forma ou de outra, após 1875, houve um ceticismo crescente quanto à eficácia da economia de mercado autônoma e autorregulada, a famosa “mão oculta” de Adam Smith, sem alguma ajuda do Estado e da autoridade pública, A mão estava se tornando visível das mais variadas maneiras. Por um lado, a democratização da política forçou governos muitas vezes relutantes e inquietos a enveredarem pelo caminho de políticas de reforma e bem-estar sociais, bem como de ação política na defesa dos interesses econômicos de certos grupos de eleitores, como o protecionismo e – de certa forma com menos eficácia – medidas contra a concentração econômica, como nos EUA e na Alemanha. Por outro lado, ocorreu a fusão da rivalidade política entre os Estados com a concorrência econômica entre grupos nacionais de empresários, o que contribuiu – como veremos – tanto para o fenômeno do imperialismo como para a gênese da Primeira Guerra Mundial.”


“O protecionismo de qualquer tipo é a economia operando com a ajuda da política.”


“A democracia, no entanto, seria tanto mais fácil de domar quanto menos agudos fossem seus descontentamentos. A nova estratégia dos governantes envolvia, portanto, uma disposição no sentido de empreender programas de reforma e bem-estar social, que minaram os clássicos acordos liberais de meados do século, com governos que eram mantidos à distância do campo reservado à iniciativa e à empresa privada. O jurista inglês A. V. Dicey (1835-1922) viu o rolo compressor do coletivismo, em marcha desde 1870, achatando a paisagem da liberdade individual na tirania centralizada e niveladora das refeições escolares, seguros de saúde e aposentadorias. Em certo sentido, ele tinha razão. Bismarck, lógico como sempre, já na década de 1880 decidira cortar as raízes da agitação socialista por meio de um ambicioso esquema de previdência social; foi seguido, nesta orientação, pela Áustria e pelos governos liberais ingleses de 1906-1914 (aposentadorias, bolsas de trabalho, seguros de saúde e desemprego) e mesmo pela França, após algumas hesitações (aposentadorias em 1911). É interessante que os países escandinavos, hoje “Estados do bem-estar social” par excelençe, fossem então alheios ao assunto; e diversos países fizeram apenas gestos simbólicos nessa direção, e os EUA do tempo de Carnegie, Rockefeller e Morgan, nem isso. Nesse paraíso da iniciativa privada, mesmo o trabalho de menores permanecia fora da alçada da lei federal, embora por volta de 1914 existissem leis que o proibiam, teoricamente, até na Itália, na Grécia e na Bulgária. Por volta de 1905, leis geralmente disponíveis estipulavam indenizações a operários em caso de acidente, mas não interessaram o Congresso e foram condenadas pelos tribunais como inconstitucionais. Exceto na Alemanha, tais esquemas de bem-estar social eram modestos até os últimos anos que precederam 1914, e mesmo na Alemanha malograram visivelmente na tentativa de sustar o crescimento do partido socialista. Não obstante, ficou estabelecida uma tendência nesse sentido, notavelmente mais acelerada nos países protestantes da Europa e da Australásia.
Dicey também tinha razão ao sublinhar o inevitável crescimento no peso e no papel desempenhado pelo aparato estatal, uma vez abandonado o ideal da não intervenção. Pelos padrões modernos, a burocracia continuava modesta, embora aumentasse em ritmo acelerado – e em nenhuma parte mais que na Inglaterra, onde os empregos governamentais triplicaram entre 1891 e 1911. Na Europa, por volta de 1914, esses empregos iam de 3% da força de trabalho na França – seu ponto mais baixo, fato, aliás, surpreendente – e, em seu ponto mais alto, a 5,5-6% na Alemanha e – fato igualmente surpreendente – na Suíça. A título de comparação, nos países da Comunidade Econômica Europeia, na década de 1970, os empregos governamentais formavam entre 10 e 13% da população ativa. Não seria possível, no entanto, conquistar a lealdade das massas sem políticas sociais dispendiosas, que talvez onerassem o lucro dos empresários, de quem dependia a economia? Como vimos, acreditava-se que o imperialismo não só teria condições de pagar reformas sociais como era também popular.”


“‘Aquele que se decidir a basear seu pensamento político num reexame de como opera a natureza humana, deve começar por uma tentativa de vencer a própria tendência para exagerar a intelectualidade da humanidade’, assim escrevia um cientista político inglês, Graham Wallas, em 1908, consciente de que escrevia também o epitáfio do liberalismo do século XIX.”


“A democracia burguesa renasceu das próprias cinzas em 1945, permanecendo, desde então, o sistema favorito das sociedades capitalistas, quando suficientemente fortes, economicamente prósperas e socialmente não polarizadas ou divididas para permitir-se a adoção de um sistema tão vantajoso. Esse sistema, porém, opera com eficácia apenas em muito poucos dos 150 Estados que formam as Nações Unidas no final do século XX. O progresso da política democrática, entre 1880 e 1914, não prefigurava sua permanência nem seu triunfo universal.”


“Devem ser mencionados quatro aspectos dessas mutações que compunham uma identificação nacional que tornava-se força política, formando uma espécie de substrato geral da política.
O primeiro, conforme já vimos, é o surgimento do nacionalismo e do patriotismo, como ideologia encampada pela direita política, isto encontraria sua expressão extrema entre as duas guerras, no fascismo, cujos ancestrais ideológicos aí são encontrados. O segundo é a pressuposição, absolutamente alheia à fase liberal dos movimentos nacionais, de que a autodeterminação nacional, até inclusive a formação de Estados soberanos independentes, aplicava-se não apenas a algumas nações que pudessem demonstrar sua viabilidade econômica, política e cultural, mas a todo e qualquer grupo que reivindicasse o título de “nação”. A diferença entre a antiga pressuposição e a nova é ilustrada pela diferença entre as doze entidades bastante grandes consideradas como as que constituíam a “Europa das nações” por Giuseppe Mazzini, o grande profeta do nacionalismo do século XIX, em 1857, e os 26 Estados – 27 se incluirmos a Irlanda – que emergiram do princípio da autodeterminação nacional, do presidente Wilson, no fim da Primeira Guerra Mundial. O terceiro era a tendência progressiva para admitir que a “autodeterminação nacional” não podia ser satisfeita por qualquer forma de autonomia inferior à plena independência do Estado. Durante a maior parte do século XIX a maioria das reivindicações de autonomia não havia previsto isso. Finalmente, havia a nova tendência para definir uma nação em termos étnicos e especialmente em termos de linguagem.”


“O extraordinário impacto internacional das revoluções russas de 1917 só é compreensível se tivermos em mente que aqueles que foram para a guerra de boa vontade, e mesmo com entusiasmo, em 1914, eram movidos pela ideia do patriotismo, que não podia ser confinada a slogans nacionalistas: incluía o senso do que era devido ao cidadão. Esses exércitos não iam para a guerra por gostarem da luta, da violência ou do heroísmo, ou para implementar o incondicional egoísmo e expansionismo do nacionalismo de direita. E menos ainda por hostilidade ao liberalismo e à democracia. Ao contrário. A propaganda doméstica de todos os beligerantes, com respeito à política de massas, demonstra em 1914 que o assunto a ser sublinhado não era a glória nem a conquista, mas o de “nós” sermos vítimas de agressão, ou de política agressiva, o de “eles” representarem uma ameaça mortal aos valores da liberdade e da civilização que “nós” representamos. Mais importante: homens e mulheres não seriam mobilizados com êxito para a guerra, a não ser que sentissem sua luta como algo mais que um simples combate armado: que, em algum sentido, o mundo melhoraria com a “nossa vitória”, e que “nosso” país seria – para repetir uma frase de Lloyd George – “terra digna de heróis”. Os governos inglês e francês, portanto, reivindicavam a defesa da democracia e da liberdade, contra o poder monárquico, o militarismo e o barbarismo (“os hunos”), enquanto o governo alemão reivindicava a defesa dos valores da ordem, da lei e da cultura, contra a autocracia e o barbarismo russos. As perspectivas de conquista e engrandecimento imperial poderiam ser anunciadas nas guerras coloniais; não, porém, nos conflitos mais importantes – mesmo que delas se ocupassem os ministros do Exterior, nos bastidores.
As massas alemãs, francesas e inglesas, ao marcharem para a guerra em 1914, o fizeram não como guerreiros e aventureiros, mas como cidadãos e civis. É este mesmo fato que, para governos que operam em sociedades democráticas, demonstra a necessidade do patriotismo e igualmente a sua força. Apenas o sentimento de que a causa do Estado era genuinamente a sua, poderia mobilizar com eficácia as massas; e em 1914 os ingleses, franceses e alemães sentiam isso. As massas permaneceram mobilizadas até que três anos de massacres sem paralelos e o exemplo da revolução na Rússia lhes ensinaram que haviam estado enganadas.”


“E a indústria cinematográfica começara a se instalar no que já estava se tornando sua capital mundial: uma colina de Los Angeles. Essa realização extraordinária se devia, em primeiro lugar, à total falta de interesse dos pioneiros do cinema por qualquer outra coisa além de produzir diversão lucrativa para um público de massa. Eles entraram para o ramo como artistas, às vezes obscuros artistas de circo, como o primeiro magnata do cinema, Charles Pathé (1863-1957) da França – embora ele não fosse um empresário europeu típico. Eles eram, com mais frequência, como nos EUA, pobres mas dinâmicos mascates judeus imigrantes, que teriam vendido com o mesmo entusiasmo roupas, luvas, peles, ferramentas ou carne se estes artigos tivessem parecido igualmente lucrativos. Passaram à produção para ter o que exibir. Seu público alvo era, sem a menor hesitação, os menos instruídos, os menos reflexivos, os menos sofisticados, os menos ambiciosos intelectualmente, que lotavam os cinematógrafos onde Carl Laemmle (Universal Films), Louis B. Mayer (Metro-Goldwyn-Mayer), os irmãos Warner (Warner Brothers) e William Fox (Fox Films) começaram em torno de 1905. Em The Nation(1913), a democracia populista norte-americana recebeu de braços abertos esse triunfo dos estratos mais baixos, obtido por meio de entradas a cinco centavos, enquanto a democracia social europeia, preocupada em levar aos trabalhadores as coisas mais elevadas da vida, desqualificou os filmes como diversão do homem proletariado escapista. O cinema desenvolveu-se, portanto, segundo as fórmulas que conseguiam aplausos garantidos, tentadas e testadas desde a Roma antiga.
Ainda mais, o cinema desfrutou de uma vantagem não prevista, mas absolutamente crucial. Dado que até a década de 20 ele era apenas capaz de reproduzir imagens, mas não palavras, era forçado ao silêncio interrompido apenas pelos sons do acompanhamento musical; isto multiplicou as oportunidades de emprego para músicos de segunda categoria. Livre das restrições da Torre de Babel, o cinema desenvolveu, portanto, uma linguagem universal que, de fato, lhe permitiu explorar o mercado mundial, independente do idioma.
Não há dúvida de que as inovações revolucionárias do cinema como arte, todas elas já praticamente desenvolvidas nos EUA em 1914, se deveram à necessidade de se dirigir a um público potencialmente universal exclusivamente através da visão – tecnicamente manipulável –, mas também não há dúvida de que essas inovações, que deixaram a avant-garde da cultura erudita muito atrás em termos de ousadia, foram prontamente aceitas pelas massas porque essa era uma arte que tudo transformava, salvo o conteúdo. O que o público viu e adorou no cinema foi precisamente o que surpreendeu, animou, divertiu e movimentou todas as plateias desde que existe entretenimento profissional. (...)
Hollywood se baseava na articulação do populismo do cinematógrafo com a mentalidade e o drama cultural e moralmente gratificantes, esperados pela massa igualmente grande de americanos médios. Sua força e sua fraqueza residiam precisamente no seu interesse único pela bilheteria de um mercado de massas. A força era, em primeira instância, econômica. O cinema europeu optou, não sem alguma resistência da parte de artistas populistas, pelo público culto, às custas do popular. (...)
Enquanto isso, a indústria americana podia explorar ao máximo o mercado de massas de uma população que teoricamente era apenas um terço maior que o proporcionado pela população da Alemanha. Isto lhe permitiu cobrir os custos e obter altos lucros dentro do país e, assim, conquistar o resto do mundo, reduzindo os preços. A Primeira Guerra Mundial acentuaria essa nítida vantagem e tornaria a posição americana inabalável.”


“Assim, a arte “moderna”, a verdadeira arte “contemporânea” deste século se desenvolveu de modo imprevisto, não notada pelos defensores dos valores culturais, e com a velocidade que se pode esperar de uma genuína revolução cultural. Mas já não era e já não podia ser a arte do mundo burguês e do século burguês, salvo num aspecto crucial: era profundamente capitalista. Seria o cinema “cultura”, no sentido burguês? Em 1914, a maioria das pessoas instruídas teria, quase com certeza, pensado que não. E, no entanto, esse veículo novo e revolucionário era muitíssimo mais forte que a cultura da elite, cuja procura de uma nova maneira de exprimir o mundo preenche a maioria das histórias das artes do século XX. Poucos vultos representam de maneira mais óbvia a antiga tradição, em suas versões convencional e revolucionária, que dois compositores da Viena de pré-1914: Erich Wolfgang Konvoid, uma criança prodígio do meio musical médio, já se lançando às sinfonias, óperas e tudo mais; e Arnold Schoenberg. O primeiro chegou ao fim da vida como compositor de muito sucesso de trilhas musicais para os filmes hollywoodianos e diretor musical da Warner Brothers. O segundo, depois de revolucionar a música clássica do século XIX, passou seus últimos dias na mesma cidade, sempre sem público, mas admirado e subsidiado por músicos mais adaptáveis e muito mais prósperos, que ganhavam dinheiro na indústria cinematográfica não aplicando as lições aprendidas com ele.
As artes do século XX foram portanto revolucionadas, mas não por aqueles que assumiram o encargo de fazê-lo.”


“Para os recrutas comuns, mais familiarizados com a servidão do que com as glórias da vida militar, entrar para o exército se tornou um rito de passagem que marcava a chegada de um garoto à idade adulta, seguido por dois ou três anos de treinamento e trabalho duro, que se tornavam mais toleráveis devido à notória atração que a farda exercia sobre as moças. Para os suboficiais profissionais o exército era um emprego. Para os oficiais, um jogo infantil onde quem brincava eram os adultos, símbolo de sua superioridade em relação aos civis, de esplendor viril e de status social. Para os generais era como sempre, o terreno propício às intrigas políticas e ciúmes relativos à carreira, tão amplamente documentada nas memórias dos chefes militares.
Para os governos e as classes dirigentes, os exércitos eram não só forças para enfrentar inimigos internos e externos, mas também um modo de garantir a lealdade, ou mesmo o entusiasmo ativo, de cidadãos com simpatias inquietantes por movimentos de massas que solapavam a ordem política e social. Junto com a escola primária, o serviço militar era talvez o mecanismo mais poderoso à disposição do Estado com vistas à inculcação do comportamento cívico apropriado e, não menos importante, à transformação do habitante de um povoado no cidadão (patriota) de uma nação. A escola e o serviço militar ensinaram os italianos a compreender, se não a falar, a língua “nacional” oficial.”


“O desenvolvimento do capitalismo empurrou o mundo inevitavelmente em direção a uma rivalidade entre os Estados, a expansão imperialista, ao conflito e a guerra. Após 1870, como os historiadores mostraram, a passagem do monopólio à concorrência talvez tenha sido o fator isolado mais importante na preparação da mentalidade propícia ao empreendimento industrial e comercial europeu. Crescimento econômico também era luta econômica – luta que servia para separar os fortes dos fracos, para desencorajar alguns e endurecer outros, para favorecer as nações novas e famintas às custas das antigas. O otimismo em relação a um futuro de progresso indefinido cedeu o lugar à incerteza e a um sentimento de agonia, no sentido clássico do termo. Tudo isso, por sua vez, reforçando e sendo reforçado pelo acirramento das rivalidades políticas, as duas formas de concorrência que surgiam.”


“Mas a novidade da situação residia em que, dada a fusão entre economia e política, nem a divisão pacífica das áreas disputadas em “zonas de influência” podia manter a rivalidade internacional sob controle. A única coisa que poderia controlá-la – como sabia Bismarck, que a administrou com incomparável habilidade entre 1871 e 1889 –, era a limitação deliberada de objetivos. Se os Estados pudessem definir seus objetivos diplomáticos com precisão – uma determinada mudança nas fronteiras, um casamento dinástico, uma “compensação” definível pelos avanços de outros Estados – tanto o cálculo como o acordo seriam possíveis. Mas nenhuma das duas excluía – como o próprio Bismarck comprovara entre 1862 e 1871 – o conflito militar controlado. Mas o traço característico da acumulação capitalista era justamente não ter limite.
As “fronteiras naturais” da Standard Oil, do Deutsche Bank, da De Beers Diamond Corporation estavam situadas nos confins do universo, ou antes, nos limites de sua capacidade de expansão. Foi este aspecto dos novos padrões da política mundial que desestabilizou as estruturas da política mundial tradicional. Enquanto o equilíbrio e a estabilidade permaneciam a condição fundamental das nações europeias em suas relações recíprocas, em outros lugares nem as mais pacíficas hesitavam em recorrer à guerra contra os fracos. Tinham sem dúvida o cuidado de manter seus conflitos coloniais sob controle. Estes nunca pareceram constituir causas bélicas para uma guerra de grandes proporções, mas com certeza precipitaram a formação de blocos internacionais e finalmente beligerantes: o que se tornou o bloco anglo-franco-russo começou com o “entendimento cordial” anglo-francês de 1904, essencialmente uma negociação imperialista através da qual os franceses desistiram de reivindicar o Egito, e, em troca, a Grã-Bretanha apoiaria suas reivindicações relativas ao Marrocos – uma vítima na qual a Alemanha também estava de olho. Entretanto, todas as nações, sem exceção, estavam com ânimo expansionista e conquistador. Até a Grã-Bretanha – cuja postura era fundamentalmente defensiva, dado que seu problema era como proteger seu domínio global, até então incontestado, contra os novos intrusos – atacou as repúblicas sul-africanas; ela também não hesitou em pensar em dividir as colônias de outro Estado europeu, Portugal, com a Alemanha. No oceano do planeta, todos os Estados eram tubarões e todos os estadistas sabiam disso.
Mas o que tornou o mundo um lugar ainda mais perigoso foi a equação tácita de crescimento econômico ilimitado e poder político, que veio a ser aceita inconscientemente. Assim, o imperador alemão pediu, nos anos 1890, “um lugar ao sol” para seu Estado. Bismarck poderia ter reivindicado o mesmo – e, de fato, conquistara um lugar muitíssimo mais poderoso no mundo para a nova Alemanha do que a Prússia jamais desfrutara. Contudo, Bismarck podia definir as dimensões de suas ambições, evitando cuidadosamente entrar no terreno das zonas sem controle, ao passo que para Guilherme II a frase se tornou um mero slogan sem conteúdo concreto. Formulava simplesmente um princípio de proporcionalidade: quanto mais poderosa for a economia de um país, maior será sua população, maior o lugar internacional de sua nação-Estado. Assim, não havia limites teóricos ao lugar que ele podia sentir que lhe cabia. Como dizia a frase nacionalista: “Heute Deutschland, margen die ganze Welt” (Hoje a Alemanha, amanhã o mundo inteiro). Tal dinamismo ilimitado pode ser expresso na retórica política, cultural ou nacionalista-racista: mas o real denominador comum dos três níveis era a necessidade imperiosa de expandir uma economia capitalista maciça, observando suas curvas estatísticas dispararem para cima.”

(Por questões de espaço não convém inseri-lo, mas o capítulo 13, “Da paz à guerra” – da qual este último trecho supracitado é um pequeno excerto –, no qual o autor formula sobre as causas da primeira guerra mundial, é imprescindível.)


“Após a catástrofe maciça de 1914 e cada vez mais, os métodos da barbárie se tornaram parte integrante e esperada do mundo civilizado, tanto que encobriram os avanços contínuos e notáveis da tecnologia e da capacidade humana de produzir, e inclusive as inegáveis melhorias na organização social humana em muitos lugares do mundo, até que se tornasse impossível ignorá-los, no decorrer do grande salto para a frente da economia mundial, no terceiro quartel do século XX. Em termos de melhoria material da humanidade como um todo, para não mencionar sua compreensão e seu controle da natureza, os argumentos a favor de uma visão da história do século XX como progresso são, na verdade, mais convincentes do que no caso do século XIX. Pois mesmo se europeus morreram e fugiram aos milhões, os sobreviventes estavam se tornando mais numerosos, mais altos, mais sadios e viviam mais tempo. A maioria vivia melhor. Mas os motivos por que perdemos o hábito de pensar em nossa história como progresso são óbvios. Embora o progresso do século XX seja inegável, as previsões não sugerem um ascenso contínuo, mas a possibilidade, talvez até a iminência, de alguma catástrofe; outra e mais letal guerra mundial, um desastre ecológico, uma tecnologia cujo triunfo torne o mundo inabitável para a espécie humana, ou qualquer outra forma atual que o pesadelo possa revestir. A experiência nos ensinou, em nosso século, a viver na expectativa do apocalipse.”


“Há lugar para a esperança, pois os seres humanos são animais que esperam.”

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

As 100 Melhores Histórias da Mitologia, de A. S. Franchini / Carmen Seganfredo

Editora: L&PM

ISBN: 978-85-254-1316-1

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 464

Sinopse: A Guerra de Tróia. Os Doze Trabalhos de Hércules. A história de amor de Cupido e Psique. A desgraça de Édipo. O retorno de Ulisses a Ítaca. As maiores batalhas do mundo antigo, o nascimento dos mais célebres heróis de então, os principais episódios envolvendo deuses e deusas do Olimpo, mortais, imortais, monstros e bestas são aqui relatados na sua forma original: com o vigor da ficção. Nas cem histórias que compõem este livro, as forças da natureza tornam vida, forma-se o Universo, nasce o homem, surgem os animais e explicam-se, segundo a ótica mágica da mitologia greco-romana, os primórdios da existência e da história da humanidade. Os mitos não são mitos, mas personagens vividos e de carne e osso, que pensam, sentem e amam – tudo isso contado numa prosa acessível – e que compõem o berço da cultura ocidental.



“– Tudo se inicia pela fantasia.”

 

 

DEUCALIÃO E PIRRA

A humanidade conheceu várias épocas, desde a sua criação – épocas que a história batizou de Idades. Na primeira delas, a Idade do Ouro, todos eram felizes. Apesar do nome, ninguém, então, pensava em ouro. A velhice não existia, tampouco as doenças. Reinava uma primavera permanente, os alimentos brotavam da terra por si sós, e a inocência imperava por tudo.

Depois dessa idade feliz seguiu-se a Idade da Prata, na qual a eterna primavera deu lugar às quatro estações e a terra passou a ter de ser cultivada para oferecer os seus frutos. A decadência prosseguiu com a Idade do Cobre, na qual começaram as disputas entre os homens, até que se chegou, finalmente, à Idade do Ferro, quando o crime fez a sua entrada triunfal entre os mortais. A paz abandonou definitivamente a Terra, que ficou entregue à cobiça dos homens. As coisas estavam nesse estado quando Júpiter, deus dos deuses, observando o caos que se instalara, decidiu pôr um fim nele. Enfurecido, chamou um dia à corte o seu irmão Netuno.

– Meu irmão, creio que é chegada a hora de castigarmos estes mortais insanos, que transformaram o paraíso terrestre num horrível lugar de dor.

– Estou de acordo, meu poderoso irmão – respondeu Netuno. – O que você sugere?

Júpiter ordenou ao irmão que fendesse a terra com um golpe de seu poderoso tridente. Dali se abririam as comportas das águas dos mares, que, uma vez liberadas, inundariam o mundo todo.

Netuno, retirando-se, foi fazer exatamente o que Júpiter lhe dissera. Chegou a um vale seco e pedregoso e empunhou o tridente, erguendo-o para o alto. Em seguida, o fez descer à terra com tamanha força que o enterrou quase inteiro no solo. Uma rachadura começou a se espalhar do ponto onde se abatera o golpe, espraiando-se para todos os lados, como se fossem as raízes de uma árvore invisível. Daquelas imensas fissuras começou a brotar a água submersa, que corria por debaixo da terra em imensos e borbulhantes veios.

Netuno foi por todas as partes golpeando o solo, até que em menos de um dia a terra começou a desaparecer, engolida pela água.

Diante dos olhos deliciados de Júpiter – que a tudo observava do alto – desfilaram envoltos em ondas de incrível ferocidade gafanhotos, moscas, ratos, esquilos, zebras, leões, elefantes, casas, templos e palácios. Em meio a tudo isso, passavam homens, agarrados em qualquer coisa que sobrenadasse na violência das águas. A maioria das pessoas, no entanto, passavam já mortas. As aves, não encontrando mais nenhum lugar seco onde repousar, deixavam-se cair às águas, renunciando à luta pela vida.

No entanto, Júpiter resolveu poupar da destruição um homem e sua esposa, que considerava os únicos justos sobre a face da Terra. Deucalião e Pirra eram seus nomes. Ao verem que tudo naufragava sob as ondas impetuosas, Deucalião abraçou-se à esposa, e foram ambos refugiar-se num velho barquinho. As águas rapidamente cobriram tudo, enquanto suspendiam a frágil embarcação até o topo do monte Parnaso, o último lugar seco da Terra.

Netuno, vendo sua tarefa cumprida, chamou logo os seus tritões, semideuses marinhos metade homens, metade peixes.

– Vão, agora, e devolvam tudo à normalidade – disse, com autoridade.

Um exército de tritões partiu, espalhando-se pela Terra. Surgindo de vários pontos das águas, fizeram soar as imensas conchas marinhas, o que milagrosamente fez as águas recuarem de volta aos leitos dos rios e dos oceanos. Rapidamente as águas foram baixando, deixando à mostra outra vez as árvores, as casas, os templos, os palácios e uma multidão de homens e animais mortos. Parecia que era a própria Terra que ressurgia de dentro das águas, toda lavada e pronta para ser novamente ocupada.

O único casal de sobreviventes vagou, assim, pela Terra, revendo antigos lugares que antes fervilhavam de pessoas, mas que agora eram habitados somente pelo silêncio. De mãos dadas penetraram num grande teatro, onde dias antes uma multidão alegre rira das piadas e gracejos de uma velha comédia, pouco antes de morrer afogada. No centro do palco, Deucalião enxergou o cadáver de um dos atores, que ainda tinha presa ao rosto uma máscara, toda dobrada e enferrujada. Curioso, retirou o dourado e sorridente adereço, mas por detrás da máscara só havia agora uma caveira pálida, que sorria, a seu modo, o grande e compulsório sorriso da Morte.

Pirra virou o rosto para o lado, com um ar compungido.

– Vamos, Deucalião. Aqui só há desolação e morte!

Viram também templos desertos, onde as estátuas dos deuses que não haviam tombado ainda permaneciam em pé, em poses e gestos tão vividos que pareciam prestes a descer de seus nichos para ocupar o lugar dos vivos. Passaram por ruas desertas. Entraram e saíram de casas vazias. Percorreram cidades inteiramente abandonadas. Tudo estava ocupado pela morte.

– Ninguém sobreviveu à cólera de Júpiter, a não ser nós! – disse Deucalião à esposa.

– Oh! – gemia a mulher. – Que faremos vivos, num mundo de mortos?

– Procuremos nos consolar, minha querida Pirra! – exclamou Deucalião, que intimamente estava grato a Júpiter por haver poupado de sua ira a esposa, o seu único consolo e razão de viver.

Ela, de braços cruzados ao peito, chorava em silêncio.

– Deucalião, devemos procurar o templo de Têmis e lá implorarmos piedade – disse Pirra, tornando-se outra vez resoluta.

De comum acordo seguiram até chegar ao templo da deusa da Justiça. Do teto pendia ainda um musgo lamacento, que o vento fazia dançar sobre as colunas, enquanto dos capitéis desciam finas cordas de água. Sobre os altares, os vasos estavam vazios, e não havia fogo algum a brilhar. Deucalião e Pirra, comovidos, lançaram-se aos pés da estátua da deusa:

– Poderosa Têmis, que nos observa, com clemência, do alto! – disse Pirra. – Não queremos habitar um mundo sem vida! Como faremos para repovoá-lo, se já não temos mais forças nem idade para isso?

Uma voz suave saiu da boca cerrada da estátua:

– Meus amados, se quiserem ver de novo a terra povoada, façam exatamente como vou lhes dizer. Após cumprirem meus ritos, quero que saiam do templo – disse a deusa. – Depois, cubram seus rostos, alarguem seus cintos e atirem para trás de si os ossos de sua avó! – completou, de modo enigmático.

Pirra, não entendendo o que a deusa desejava, começou a chorar.

– Ó deusa, como farei tal coisa? – exclamou. – E mesmo que reencontre os ossos de minha avó, como poderia cometer tamanha blasfêmia?

Deucalião, no entanto, tomando o rosto de Pirra nas mãos, a acalmou:

– Calma, querida! Acho que compreendi o sentido das palavras da deusa! É muito simples – esclareceu Deucalião. – A deusa está se referindo não aos ossos da sua avó, mas à Terra, nossa avó comum! Ora, os ossos de nossa avó não são senão as pedras da Terra!

Eufóricos, os dois velaram os rostos e saíram do templo. Juntaram todas as pedras que puderam encontrar, e Deucalião lançou atrás de si a primeira. Tão logo ela caiu, eles escutaram o ruído da pedra se esfarelando e algo surgindo às suas costas.

Era um homem!

Sim, um homem que surgira dos restos da pedra.

Pirra, extasiada, velou também o rosto e lançou para trás uma pedra, e surgiu dali uma linda mulher. E assim foram ambos jogando pedras para trás. Daquelas lançadas por Deucalião surgiam homens, e das que Pirra lançava surgiam mulheres, os novos habitantes da Terra.”

 

 

“Observar os mortais era também um bom calmante, pois, ao ver as loucuras e confusões nas quais eles viviam metidos, as apreensões do grande deus diminuíam.”

 

 

“Os deuses não amam os temerosos.”

 

 

O RAPTO DE PROSÉRPINA

Plutão, o deus dos infernos, andava inquieto com a agitação que vinha abalando os fundamentos do Monte Etna, na Sicília. De fato, o vulcão que ali existia parecia mais irado do que nunca, cuspindo fumaça e faíscas para todos os lados. Sabedor de que o interior daquelas montanhas abrigava o gigante Tifão – que fora anteriormente derrotado por Júpiter e ali acorrentado –, Plutão decidira ir ver pessoalmente o que estava ocorrendo.

Tomando a carruagem da noite, o deus subterrâneo percorria a terra, no caminho do monte Etna, quando avistou um grupo de mulheres que colhiam flores no campo. Enquanto isto Vênus, a deusa do amor, observava tudo, tendo ao lado o filho Cupido.

– Veja, meu filho – disse Vênus, pegando o braço do jovem –, parece que o deus dos infernos decidiu dar uma voltinha à luz do dia.

– O coitado deve estar cansado de toda aquela escuridão – disse Cupido. – Deve ser horrível, afinal, ser o rei de um mundo de mortos.

De repente, Vênus, dando-se conta de algo, encostou sua boca à orelha de Cupido:

– E se lhe arrumássemos algo que o distraísse de sua solidão?

Os olhos do jovem pareceram se iluminar. Cupido pegou rapidamente o seu arco, escolhendo a flecha mais aguda de sua aljava repleta de setas.

– Já entendi, mãe... – disse, caprichando na pontaria.

Uma flecha dourada cortou o ar, indo atingir em cheio o coração do deus infernal. No mesmo instante, Plutão ficou apaixonado pela mais bela das mulheres que tinha diante dos seus olhos. Era Prosérpina, filha de Ceres, a deusa da fertilidade e da agricultura; a jovem podia ser considerada uma digna filha de sua mãe, com seus longos cabelos da cor do trigo.

Tomado por um ímpeto verdadeiramente infernal, Plutão colheu as rédeas cor de ferro que seguravam seus negros cavalos e se lançou em direção ao grupo de moças que circundavam a encantadora presa. Assustadas com a aproximação do carro negro, todas correram em diversas direções, deixando Prosérpina desprotegida. Plutão, aproveitando o descuido, suspendeu a moça com o braço, arrebatando-a aos céus em seu carro veloz.

Foi em vão que a filha de Ceres clamou por socorro: Plutão, mantendo-a solidamente presa em seus braços, a conduzia para cada vez mais longe. Descendo, afinal, o seu carro, o deus das trevas preparava-se para golpear o solo com seu tridente e abrir caminho para retornar ao seu mundo subterrâneo, quando a ninfa Ciana, que estava ali por perto, ainda tentou detê-los:

– Espere, cruel divindade! Deixe-a em paz!

Plutão, sem lhe dar ouvidos, fendeu a terra com um golpe poderoso de seu tridente. Um abismo abriu-se aos pés de ambos. Antes, porém, que o raptor e sua presa entrassem pela negra passagem, Plutão, temendo que a ninfa Ciana viesse a dar com a língua nos dentes, transformou-a em uma fonte. Os cavalos relincharam, felizes de regressarem à sua escura morada, enquanto Prosérpina perdia os sentidos ao ver-se prestes a adentrar aquela escuridão sem fim. – Vamos, você será agora a rainha dos infernos! – disse Plutão, dando um beijo na face desmaiada de Prosérpina, antes de chicotear com furor os seus cavalos da cor da noite.

Ceres, no mesmo dia, foi alertada pelas amigas de Prosérpina, que lhe contaram em detalhes o rapto e o seu autor.

– Plutão?! – exclamou Ceres, incrédula. – O que fará aquele maldito à minha filha?

Desesperada, a deusa saiu a pé, do jeito que estava, em busca de Prosérpina. Percorreu a terra durante o dia inteiro, sem encontrar nem sinal da filha. Quando a noite chegou, acendeu uma tocha e prosseguiu em sua solitária e desesperada busca. Assim que Ceres avistou Selene, a deusa da Lua, deteve o seu passo.

- Por acaso você não viu, poderosa deusa, a minha filha sendo levada num grande carro conduzido por Plutão? – perguntou, esperançosa.

Infelizmente, Selene nada vira. Durante a noite inteira Ceres percorreu a terra, iluminada apenas pelas estrelas e pela Lua, que intensificou seus raios para ajudá-la a encontrar a filha. Quando o dia amanhecia, Ceres encontrou-se com a Aurora, que já vinha adiante, precedendo o radiante carro de Febo, o deus do Sol.

– Aurora querida, perdi minha filha! – disse Ceres, em prantos. – Você, por acaso, não a viu passar num carro puxado por negros cavalos?

Também Aurora nada vira. Estava disposta a ajudar na procura, mas o Sol a impelia para a frente, não dando tempo para que continuasse sua conversa.

Durante vários dias e várias noites, Ceres continuou em seu périplo inútil, esquecida de seus deveres para com a natureza. Logo a terra começou a se tornar estéril. As águas não desciam mais do céu para regar as plantações, e a fome começou a se espalhar por tudo. Um dia, completamente desanimada, Ceres sentou-se numa pedra, curvando a exausta cabeça sobre o peito. Assim esteve um bom tempo, abatida, quando percebeu que a seu lado uma fonte cantante respingava suas águas sobre si. Passando os olhos sobre o espelho das águas, Ceres percebeu nele o desenho do rosto de Ciana, uma das ninfas mais íntimas de sua filha. Ainda que um pouco turvada pela fonte, a imagem a encarava com indizível pena.

– Ciana, o que houve com você? – disse a deusa, sem obter nenhuma resposta, pois, com a metamorfose, a ninfa havia perdido o dom da fala.

Entretanto, por alguns sinais que a deusa logo compreendeu, a ninfa fez entender que sua amiga havia sido engolida pela terra, ali, naquele local. Ceres viu confirmada essa suspeita ao divisar flutuando sobre as águas da fonte o cinto de sua adorada filha. Apanhando-o, secou-o em seu seio, mas logo o encharcou novamente, com suas lágrimas.

Sem meios de poder descer até as profundezas do reino de Plutão, Ceres decidiu subir aos elevados domínios de Júpiter, pai de Prosérpina.

– Deus dos deuses, preciso de sua ajuda! – exclamou Ceres, ao mesmo tempo aflita e determinada. – Quero que obrigue Plutão a me devolver a minha filha.

– Plutão é senhor em seus domínios... – tergiversou Júpiter, dando a entender que não queria problemas com seu irmão das trevas.

– Ele que vá para o inferno! – bradou Ceres, completamente impotente.

– Ele já está lá, querida... – disse Júpiter, sem saber o que dizer.

– Não tenho tempo nem ânimo para seus gracejos! – rugiu.

– Então vá lá para baixo, que é seu lugar, e coloque em ordem outra vez a terra, da qual você tem se descuidado há vários meses – disse Júpiter, tentando impor sua autoridade.

– Ela vai continuar assim, sem brotar mais um pé de couve sequer, enquanto eu não tiver minha filha de volta – respondeu, categórica, a deusa da fertilidade e da agricultura.

O grande Júpiter, ao perceber que sua esposa Juno já se aproximava para ver o que estava acontecendo, resolveu contemporizar, pois sabia que duas mulheres iradas eram demais para ele ou qualquer outro deus:

– Está bem, façamos então assim: sua filha poderá retornar para a Terra, desde que não tenha comido nada nos infernos, pois assim determinaram as Parcas.

A condição parecia meio absurda, mas Ceres não tinha alternativa e, por isto, resolveu ir pessoalmente ao reino de Plutão. Esteve longo tempo nas margens do Aqueronte, aguardando a chegada da barca de Caronte, que a transportaria até o reino das sombras. Quando o velho barqueiro se aproximou, Ceres imediatamente embarcou.

– Vamos com calma! – disse o velho, ameaçando-a com o remo.

– Cale-se e me leve logo até a outra margem! – ordenou Ceres.

Uma vez desembarcada, foi barrada por Cérbero, o terrível cão de três cabeças que guarda os portões do inferno. Mas uma mãe que procura a filha não se deixa intimidar por qualquer coisa. Com o facho que levava numa das mãos desceu uma bordoada sobre as três cabeças do cão ao mesmo tempo, que saiu ganindo inferno adentro. Sem dar ouvido a nada nem a ninguém, foi avançando pelas regiões escuras.

A deusa avançou tanto que em breve tinha diante de si o deus infernal instalado em seu trono, tendo ao lado sua filha. Esta, enxergando a mãe, lançou-se se em seus braços, num abraço longo e emocionado.

Ceres, sem poder emitir qualquer palavra, apenas a enxergava com os olhos nublados. Depois de recomposta, quis saber como ela se sentia ali.

– Bem, não é tão mal assim... – disse a filha, relanceando disfarçadamente o olhar para seu marido, que observava de longe a cena, evitando, porém, se intrometer.

– Mas como pode ser feliz aqui, nesta escuridão?

– É que aqui eu sou rainha, mãe, senhora absoluta de todos estes domínios.

– Mas e este seu marido terrível? – disse Ceres, lançando um olhar feroz para o deus subterrâneo, que olhou para os lados, temeroso da vingança da sogra.

– Bem, ele foi um tanto intempestivo na sua maneira de se declarar para mim, reconheço – disse Prosérpina, com ar condescendente. – Mas sempre me tratou com muita atenção e delicadeza, como uma legítima rainha – completou a moça, que parecia realmente feliz com seu novo estado.

Mas sua mãe não podia suportar a ideia de tê-la para sempre longe de si, por isto lhe perguntou:

– Minha filha, você já comeu algo desde que chegou aqui?

– Por quê? Pareço muito magra? – perguntou Prosérpina.

– Apenas responda – disse Ceres, ansiosa. Prosérpina pensou por algum tempo e depois declarou:

– Bem, comi apenas uma romã que colhi nos jardins de Plutão.

Ceres quase tombou desfalecida ao chão, de tanta tristeza diante dessa terrível revelação. Abandonando momentaneamente a filha, foi falar com o deus dos infernos, para tentar reverter a situação, mas Plutão mostrou-se resoluto, recusando-se a perder a esposa. Uma terrível discussão ameaçava se instalar entre a sogra e o genro, quando Prosérpina propôs uma solução que agradaria a todos:

– Façamos assim, mãe: a metade do ano passarei aqui em meus domínios e a outra metade em sua companhia, na Terra. Que tal acha disso?

Ceres e Plutão chegaram, assim, a um acordo que parecia ser a única solução consensual. Como já estivesse na época da floração, Prosérpina seguiu com sua mãe de volta à terra, para passar sua primeira temporada, disposta a regressar dentro de seis meses, conforme o combinado. Ceres retomou seus cuidados com a Terra, e é assim que Prosérpina alterna a sua vida: durante os meses de calor passeia pela Terra, dando vida e fecundidade a tudo, e durante os meses de frio e escuridão recolhe-se para as profundezas da terra, deixando a natureza despida de seus benefícios.

 

 

“– Não adianta fugir de mim, Eurídice, pois a amo e ninguém me impedirá de tê-la um dia só para mim!

– Ninguém, a não ser a minha vontade! – respondeu Eurídice.

Aristeu não escutou estas palavras, pois o amor só escuta o que lhe convém.”

 

 

“– Mas se eu pudesse compartilhar com Titão da sua decadência física, fazendo-me velha, também, quem sabe não teria sido mais justo? Ao menos ele estaria mais consolado, ao ver que ambos rumávamos para o mesmo destino!

– Não pode o sofrimento de alguém acarretar a melhora de outro sofredor. O martírio inútil é o mais insensato dos remédios, cara amiga, e aquele que exige tal sacrifício de alguém não passa de um fraco e de um egoísta.”

 

 

“Cada qual tem de ser capaz de carregar o seu fardo, seja ele qual for.”

 

 

“– Uma viagem é sempre um enigma.”

 

 

“Sem ousadia o amor será sempre uma palavra vã.”

 

 

“Foi-se o cetro, foi-se o afeto.”

 

 

“Etéocles, tendo provado uma vez o néctar do poder, tomara gosto pela coisa – pois quem, afinal, deixa arrebatar dos seus dentes um petisco já abocanhado?”

 

 

“O tempo, porém, é veloz e desapiedado para com os mortais.”

 

 

“– O trabalho aqui no templo muito me orgulha e me satisfaz. É mais gratificante servir aos deuses do que aos homens.

– Servir nunca é gratificante – disse Creúsa, cuja voz ainda denotava claramente a amargura que lhe pesava na alma. – Gratificante é termos nossa vontade entregue ao nosso exclusivo arbítrio.”

 

 

“Quando uma glória inédita e ambicionada acena adiante, dificilmente um coração jovem e aventureiro deixará de segui-la, só porque uma advertência costumeira lhe acena às costas para que covardemente retroceda.”

 

 

“(...) Nos diz o insigne Virgílio, com maior talento, e mais ainda:

Que logo em seguida o chão sob os pés de Enéias começou a retumbar como se um deus irado sapateasse o teto do subterrâneo;

E que os cães começaram a latir desabrida e desordenadamente;

E que a profetisa Sibila disse, então: “Que os profanos se afastem, eis que a deusa chega!”;

E que, voltando-se para Enéias, disse-lhe: “Agora saque da bainha a sua espada e guarde firmeza em seu coração”;

E que Enéias, levando adiante a Sibila, adentrou as veredas sombrias e estéreis do reino de Plutão;

E que já no vestíbulo dos infernos deu de cara com seres pavorosos, dispostos um ao lado do outro, como num horrível mostruário;

E que dentre eles podia-se divisar o negro Luto, mais escuro que a própria escuridão; as Enfermidades, mais pálidas que o manto invernal; o Remorso, cuja cabeça, torcida várias vezes, olhava sempre para trás; a Velhice, encarquilhada a ponto de seus lábios roçarem os joelhos; o Medo, de olhos costurados e todo enrodilhado sobre si; a Fome, a comer os próprios membros; a Miséria agitando os trapos misturados aos fios de sua própria carne; a Fadiga, a arfar em longos haustos um alento que jamais lhe basta; a Gula estufada, com sua pele lustrosa a rachar e verter uma gosma podre por toda parte; a Guerra, coberta de dardos e com uma tiara ensanguentada posta sobre os olhos; e finalmente o Sono, o pobre!, ali injustamente aprisionado apenas por ser irmão da Morte.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com menos exagero, e ainda mais:

Que logo adiante estavam as estrebarias dos centauros, estes a escarvarem furiosamente a palha;

E que um passo além estavam ainda outros desaforos da Criação, tais como Cila, monstro de seis cabeças, com uma matilha de cães rosnadores presa ao redor da cintura; Briareu, gigante perdulário de cem braços e cinquenta cabeças; a hidra de Lerna, a silvar horrendamente; a Quimera, a botar flamas pelas ventas; as Górgonas de tranças de serpentes; as Harpias, a babarem uma gosma fétida sobre os alimentos;

E que Enéias, vendo avançar sobre si toda esta horrenda estirpe infernal, sacou de sua espada e preparou-se para o embate, mesmo tendo os pelos todos de seu braço arrepiados pelo medo;

E que a Sibila deteve o primeiro golpe, dizendo: “Guarda a coragem, nobre herói, eis que são espectros sem substância a esvoaçarem em vão pelas paredes!”;

E que partindo dali os dois chegaram às margens do infernal Aqueronte, rio que leva à mansão dos mortos;

E que aos poucos foi se aproximando uma velha barca conduzida por um remador horrendo;

E que este era um velho chamado Caronte, cuja sujeira era indescritível;

E que sua barba absurdamente branca lhe descia até o umbigo enorme, nada menos que um infame depósito de larvas;

E que seus olhos despediam chispas, e a boca, impropérios;

E que tinha preso ao ombro apenas um manto pútrido, úmido e fedorento como a pele apodrecida dos afogados;

E que este sórdido barqueiro despedia impiedosos golpes de remo sobre todas as almas que se precipitavam para embarcar em sua nau da cor do ferro;

E que escolhia apenas alguns, afastando com o pé a chusma dos insistentes;

E que Enéias, aturdido, voltou-se para a Sibila e disse: “Virgem, diga o que significa todo este atropelo, e por que somente a alguns é dado embarcar para a outra margem?”;

E que a Sibila teria respondido: “Veja, aqueles que ali ficam lançados sobre o chão a esmurrar a negra areia são espectros daquele cujos ossos não tiveram o favor de uma sepultura, e ali estarão durante cem anos, a vagar e a gemer sem socorro de deus algum nesta infernal soledade, e somente após cumprido o prazo fatal é que serão finalmente admitidos à barca do horrendo condutor”.

E que Enéias, firmando melhor a vista, começou a enxergar velhos companheiros do malfadado sítio, que caíram retumbando sobre o solo com as suas armas, sem terem o descanso de uma sepultura; (...)

“E que Enéias e a Sibila, dando as costas, intentaram, então, embarcar na nau de Caronte imundo;

E que este, volvendo um olhar raiado de sangue ao piedoso Enéias, lhe disse: “Eia, esta é terra de sombras e de mortos, e não é lícito a um vivo pôr os pés em minha barca!”;

E que a Sibila tratou de acalmar o irado condutor, dizendo: “Esteja descansado, Caronte, que estas armas que o forasteiro traz não carregam consigo a violência, eis que com elas pretende apenas avistar seu velho pai, nas profundezas do Erebo, para uma importante revelação; e se mesmo esta razão não o move à piedade, aqui está a passagem que dará o salvo-conduto ao meu companheiro”;

E que a profetisa estendeu, então, o ramo dourado até o barqueiro, que o tomou com grata satisfação nos furibundos olhos;

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior elegância, e ainda mais:

Que Caronte esvaziou a barca das almas que já estavam assentadas, admitindo nela exclusivamente Enéias e a Sibila;

E que a barca rangeu quando Enéias nela entrou, botando água dentro;

E que assim chegaram os dois até a outra margem do pavoroso rio;

E que na outra margem do pavoroso rio rugiu o troar das três bocas de Cérbero, cão de guarda infernal que estava deitado na caverna em frente;

E que a Sibila lançou-lhe um bolo soporífero feito de mel e de escolhidos grãos;

E que Cérbero, abocanhado o petisco, caiu adormecido, facilitando a passagem de Enéias e da Sibila esperta;

E que após escutarem o choro e o lamento de crianças que um dia foram arrancadas dos braços das suas mães para a acerba morte, avistaram Minos, a agitar a urna do sorteio, a fim de proceder ao julgamento das almas réprobas;

E que não distante dali avistava-se o Campo das Lágrimas, bosque umbroso onde buscam refúgio aqueles que o amor fez perecer em um langor cruel, onde entre outros se divisavam claramente Fedra, a infeliz amante, e Prócris, ninfa vitimada por seu próprio ciúme;

E que logo encontrou os antigos companheiros da funesta campanha de Tróia;

E que Enéias não pôde conter um suspiro ao vê-los desfilar diante de si em uma longa e miseranda coluna;

E que as falanges inimigas de Agamenon fugiram espavoridas ao enxergarem de novo entre eles o valente inimigo, de armas em punho;

E que do rebanho das sombras se destacou Deífobo, filho do rei troiano, com o rosto todo desfigurado, eis que lhe faltavam à máscara da face o nariz e as orelhas;

E que Deífobo, ocultando com as mãos as negras feridas, foi perguntado por Enéias da razão de se encontrar em tão mau estado, posto que este não pudera encontrar o corpo do amigo no dia fatal da derrocada da soberba Tróia;

E que Deífobo lhe respondera dizendo que Helena pérfida fora a causa do seu negro fim, pois estando casado com ela após a morte de Páris, fora traído pela infame, a qual pôs para dentro das suas portas o marido ultrajado, retirando da cabeceira de sua cama a sua fidelíssima espada, única defesa que poderia opor diante do invasor enfurecido.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com muito mais colorido, e ainda mais:

Que a Sibila apressou Enéias, dizendo, impaciente: “Eia, Enéias, eis que a noite se aproxima e já perdemos muitas horas a chorar. Saiba que daqui por diante o caminho se bifurca: o da direita conduz ao ameno Elísio, enquanto que o da esquerda leva ao tenebroso Tártaro”;

E que Enéias enxergou no caminho da esquerda grandes casas circundadas por uma sólida e tríplice muralha rodeada pelas águas em chamas do Flegeton sinistro, as quais rolam consigo, sem cessar, enormes pedregulhos ressonantes;

E que ao centro da cidadela erguia-se nos ares uma imensa torre de ferro, morada de Tisífone, a Fúria vingadora, que do alto, de túnica sangrenta e arregaçada, vigiava noite e dia os seus tétricos domínios;

E que de dentro da torre de ferro ecoava o ruído de ásperas chibatadas, e o grito estertorado dos flagelados, e o retinir das ásperas correntes, e o roncar maldito da castigadora;

E que Enéias, querendo saber quem habitava aquelas horrendas moradas, recebeu da Sibila esta resposta: “Deixa estar a sua curiosidade, que a nenhum inocente é permitido transpor o limiar do crime; apenas digo que ali está o horripilante reino de Radamente, onde são interrogados e torturados os autores dos crimes execrandos”;

E que a Sibila ainda disse: “Ouve este silvo, também, que supera mesmo ao do açoite da Fúria vingativa? É o bafo monstruoso que se escapa das cinquenta goelas negras e escancaradas da pavorosa Hidra, que ali reside sempiterna”;

E que disse ainda que mais para dentro, muito mais para dentro, o Tártaro se estendia num espaço duas vezes maior que o que leva do Olimpo até o céu, e que lá embaixo, rolando nos fundos deste medonho abismo, estavam os Titãs, primitivos habitantes da Terra, derrubados que foram pelo raio de Júpiter tonante;

E que depois de a Sibila ter descrito, com muito mais detalhes, a situação dos outros supliciados, disse para Enéias que avançassem até a porta onde deveriam depor sua oferenda;

E que Enéias, depois de ter lavado o corpo de toda sujidade infernal, penetrou no pórtico e pendurou na soleira o ramo dourado, entrando assim nos sítios amenos e idílicos dos bosques afortunados.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com mais elevação, e ainda mais:

Que caía de um éter mais amplo uma luz purpúrea que banhava os campos;

E que os habitantes dos Elísios tinham um sol e variados astros que eram somente deles;

E que todos, guerreiros, sacerdotes, poetas, pastores, tendo as frontes cingidas por ramos, passavam o tempo todo em descanso ou em festejos, exercitando as armas ou a lira, conforme mandasse a sua vontade;

E que tendo encontrado entre eles Museu, aquele divino músico que chegava a curar com sua arte, lhe perguntou Enéias onde morava seu pai Anquises;

E que o poeta lhe dissera: “Não, engana-se, visitante, aqui ninguém possui morada, e todo lugar, bosque, arroio, vereda ou prado é morada bastante para nós”;

E que mesmo assim, apontando o dedo, indicou-lhes o lugar, num bosque verdejante, onde poderia Enéias encontrar seu velho pai;

E que Anquises, com os olhos repletos de lágrimas, estendeu os braços para o filho tão logo o divisou por entre a chusma transparente das sombras que se interpunham entre ambos;

E que Enéias por três vezes tentou em vão abraçar seu velho pai, posto que sua figura tinha a mesma consistência da brisa, do fumo, do hálito e dos sonhos;

E que depois de trocar palavras afetuosas com seu pai, Enéias avistou um pouco mais adiante uma mata de caniços sonoros a margearem as águas silenciosas do Letes, o rio do Esquecimento;

E que tendo se espantado com a imensidão de sombras que enxameavam ao redor daquelas águas de coloração escura, perguntou ao pai: “Diga-me, pai saudoso, por que tantas almas revoluteiam ao redor daquele curso incessante, como abelhas frenéticas ao redor de um oloroso favo?”;

E que Anquises lhe disse que aquelas eram almas purificadas, que depois de haverem expiado suas antigas faltas nas moradas infernais e terem tido o descanso das suas penas nos aprazíveis Elísios, agora preparavam, cumpridos mil anos de exílio, a sua volta para a morada dos vivos; antes, porém, deveriam beber daquelas águas para que, esquecidas de toda mácula ou réstia de passado, pudessem retornar ao convívio da carne, com todos seus tormentos, suas dúvidas, suas tristezas, seus sofrimentos, seus trabalhos, suas penas e suas maravilhosas tentações.

E que depois Anquises mostrou um por um os futuros descendentes de Enéias, os quais colhiam com ambas as mãos a água do Letes, sorvendo-a com ansiosa sede; E que um seria guerreiro inexcedível, outro, poeta mavioso, e o restante, reis, e reis, e reis, e infinitamente reis, eis que ser rei parecia ser a ambição da maioria daquelas sombras; E que depois do velho Anquises ter feito o relato do futuro grandioso que aguardava a cada uma daquelas almas enfastiadas da Eternidade, conduziu, enfim, Enéias e a Sibila até a grande porta de marfim do Sono, saindo ambos outra vez para a luz do Dia e da Vida, a fim de que o piedoso herói pudesse outra vez ir ao encontro de seus companheiros que o aguardavam dentro dos navios, com as proas voltadas para o mar.

Tudo isto diz o insigne Virgílio, com maior inspiração, nos versos de seu poema imortal.”

 

 

“Quem disse que minhas gentilezas acabariam por aí? Quem cede um pouco, cede mais além.”

 

 

“– Como diz o cego aedo, “não é bom o acanhamento num necessitado”.”

 

 

“A que o ser humano não se adapta, quando não há outra solução? A que o ser humano não toma logo tédio, uma vez acabada a novidade?”

 

 

“‘Ah, lá vem ele de novo com a história do duelo com a serpente!’, pensou a esposa de Cadmo. ‘E logo depois a dos mirmidões, eu poderia apostar’.

Então cresceu na alma de Harmonia a certeza de que não existia coisa mais enfadonha à paciência humana do que o homem de um único feito – ou mesmo de dois ou três.”