segunda-feira, 27 de abril de 2015

O capital no século XXI (Parte I), de Thomas Piketty

Editora: Intrínseca

ISBN: 978-85-8057-581-1

Tradução: Monica Baumgarten de Bolle

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 674

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Sinopse: Nenhum livro de economia publicado nos últimos anos foi capaz de provocar o furor internacional causado por O capital no século XXI, do francês Thomas Piketty. Seu estudo sobre a concentração de riqueza e a evolução da desigualdade ganhou manchetes nos principais jornais do mundo, gerou discussões nas redes sociais e colheu comentários e elogios de diversos ganhadores do Prêmio Nobel.

Fruto de quinze anos de pesquisas incansáveis, o livro se apoia em dados que remontam ao século XVIII, provenientes de mais de vinte países, para chegar a conclusões explosivas. O crescimento econômico e a difusão do conhecimento impediram que fosse concretizado o cenário apocalíptico previsto por Karl Marx no século XIX. Porém, os registros históricos demonstram que o capitalismo tende a criar um círculo vicioso de desigualdade, pois, no longo prazo, a taxa de retorno sobre os ativos é maior que o ritmo do crescimento econômico, o que se traduz numa concentração cada vez maior da riqueza. Uma situação de desigualdade extrema pode levar a um descontentamento geral e até ameaçar os valores democráticos. Mas Piketty lembra também que a intervenção política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá voltar a fazê-lo.

Essa obra, que já se tornou uma referência entre os estudos econômicos, contribui para renovar inteiramente nossa compreensão sobre a dinâmica do capitalismo ao colocar sua contradição fundamental na relação entre o crescimento econômico e o rendimento do capital. O capital no século XXI nos obriga a refletir profundamente sobre as questões mais prementes de nosso tempo.


 

“Quando se discute a distribuição da riqueza, a política está sempre por perto, e é difícil escapar aos preconceitos e interesses de classe que predominam em cada época.”

 

 

“Quais foram as principais conclusões que pude tirar dessas fontes históricas inéditas? A primeira é que se deve sempre desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômicos. Em particular, a redução da desigualdade que ocorreu nos países desenvolvidos entre 1900-1910 e 1950-1960 foi, antes de tudo, resultado das guerras e das políticas públicas adotadas para atenuar o impacto desses choques. Da mesma forma, a reascensão da desigualdade depois dos anos 1970-1980 se deveu, em parte, às mudanças políticas ocorridas nas últimas décadas, principalmente no que tange à tributação e às finanças. A história da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos.

A segunda conclusão, que constitui o cerne deste livro, é que a dinâmica da distribuição da riqueza revela uma engrenagem poderosa que ora tende para a convergência, ora para a divergência, e não há qualquer processo natural ou espontâneo para impedir que prevaleçam as forças desestabilizadoras, aquelas que promovem a desigualdade. (...)

Não há evidência de que a participação do trabalho na renda nacional tenha aumentado de modo substancial ao longo dos anos. O que se sabe é que o capital (não humano) é quase tão indispensável no século XXI quanto foi nos séculos XVIII e XIX — e que é possível que se torne ainda mais indispensável no futuro. Podemos também afirmar que, tal qual acontecia no passado, a desigualdade da riqueza ocorre, sobretudo, dentro de cada faixa etária, e veremos que a riqueza herdada é quase tão decisiva para o padrão de vida de uma família no século XXI quanto era na época em que Balzac escreveu O pai Goriot. No longo prazo, a força que de fato impulsiona o aumento da igualdade é a difusão do conhecimento e a disseminação da educação de qualidade.

Ainda que a difusão do conhecimento seja muito potente, sobretudo para promover a convergência entre países, às vezes ela pode ser contrabalançada e dominada por outras forças que operem no sentido contrário — as de divergência, isto é, na direção do aumento da desigualdade. É evidente que a falta de investimento adequado na capacitação da mão de obra pode excluir grupos sociais inteiros, impedindo-os de desfrutar dos benefícios do crescimento econômico, ou até mesmo rebaixá-los em benefício de novos grupos sociais: vejam, por exemplo, a substituição de operários americanos e franceses por operários chineses. Ou seja, a principal força de convergência — a difusão do conhecimento — só é natural e espontânea em parte. Ela também depende muito das políticas de educação e do acesso ao treinamento e à capacitação técnica, e de instituições que os promovam.

Neste livro, procuro dar atenção especial a algumas das forças de divergência mais preocupantes — elas são tão inquietantes porque podem existir mesmo num mundo onde haja um nível de investimento adequado em treinamento e capacitação da mão de obra e onde todas as condições que asseguram a eficiência dos mercados (na definição dos economistas) estejam presentes. Quais são essas forças de divergência? São aquelas que garantem que os indivíduos com os salários mais elevados se separem do restante da população de modo aparentemente intransponível, ainda que por ora esse problema pareça um tanto pontual e localizado. São também, sobretudo, um conjunto de forças de divergência atreladas ao processo de acumulação e concentração de riqueza em um mundo caracterizado por crescimento baixo e alta remuneração do capital. Esse segundo processo é potencialmente mais desestabilizador do que o primeiro, o do distanciamento dos salários, e sem dúvida representa a principal ameaça para a distribuição igualitária da riqueza no longo prazo.”

 

 

“Essa desigualdade fundamental, que denotarei como r > g, em que r é a taxa de remuneração do capital (isto é, o que rende, em média, o capital durante um ano, sob a forma de lucros, dividendos, juros, aluguéis e outras rendas do capital, em porcentagem de seu valor) e g representa a taxa de crescimento (isto é, o crescimento anual da renda e da produção), desempenhará um papel essencial neste livro. De certa maneira, ela resume a lógica das minhas conclusões.

Quando a taxa de remuneração do capital excede substancialmente a taxa de crescimento da economia — como ocorreu durante a maior parte do tempo até o século XIX e é provável que volte a ocorrer no século XXI —, então, pela lógica, a riqueza herdada aumenta mais rápido do que a renda e a produção. Basta então aos herdeiros poupar uma parte limitada da renda de seu capital para que ele cresça mais rápido do que a economia como um todo. Sob essas condições, é quase inevitável que a fortuna herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração do capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça social que estão na base de nossas sociedades democráticas modernas.

Essa força de divergência fundamental pode, além disso, ser reforçada por outros mecanismos, como, por exemplo, se a taxa de poupança aumentar muito com o nível de riqueza ou, ainda, se a taxa média de retorno do capital for maior quanto mais elevada for a dotação inicial de capital de um indivíduo (como parece ser cada vez mais comum). O caráter imprevisível e arbitrário do retorno do capital, que permite que a riqueza aumente de diversas maneiras, também apresenta um desafio para o ideal meritocrático.

Em suma, os processos de acumulação e distribuição da riqueza contêm em si poderosas forças que impulsionam a divergência, ou, ao menos, levam a um nível de desigualdade extremamente elevado. Há, também, forças de convergência, e em alguns países ou em determinados momentos elas podem predominar; contudo, as forças de divergência têm sempre a capacidade de se restabelecer, como parece estar acontecendo no mundo agora, neste início do século XXI. A queda provável no crescimento econômico e no ritmo de expansão da população ao longo das próximas décadas torna essa tendência ainda mais alarmante.”

 

 

“O caso da França é interessante porque a Revolução Francesa — revolução “burguesa” por excelência — introduziu precocemente o ideal de igualdade jurídica em relação ao mercado. É interessante avaliar como esse ideal afetou a dinâmica da distribuição da riqueza. Embora a Revolução Inglesa de 1688 tenha dado início ao parlamentarismo moderno, ela conservou uma dinastia real, deixou inalterada a primazia sobre a propriedade da terra para os primogênitos até os anos 1920 e manteve os privilégios políticos da nobreza hereditária até o presente (a reforma da Câmara dos Lordes está em discussão até hoje, o que é, obviamente, um debate longo demais). Por outro lado, a Revolução Americana de 1776 instituiu o princípio republicano, porém deixou a escravidão prosperar durante mais um século, além de garantir a legalidade da discriminação racial durante quase dois séculos. Não é à toa que a questão racial continua a influenciar, até hoje, o debate social nos Estados Unidos. A Revolução Francesa de 1789 foi, de certa maneira, mais ambiciosa: aboliu todos os privilégios legais e tencionou criar uma ordem política e social totalmente fundada na igualdade dos direitos e das oportunidades. O Código Civil garantiu a igualdade absoluta no que diz respeito ao direito de propriedade e permitiu a livre contratação (pelo menos para os homens). No final do século XIX e da Belle Époque, os economistas conservadores franceses — como Paul Leroy-Beaulieu — utilizavam quase sempre esse argumento para explicar por que a França republicana, país de “pequenos proprietários”, que se tornou igualitário graças à Revolução Francesa, não tinha necessidade de um imposto progressivo sobre a renda ou sobre as heranças, ao contrário do Reino Unido monárquico e aristocrático. Ora, nossos dados demonstram que a concentração da riqueza era, nessa época, quase tão extrema na França quanto no Reino Unido, o que ilustra claramente que a garantia de direitos iguais nos mercados não é suficiente para conduzir à igualdade dos direitos tout court. Mais uma vez, a experiência da França é muito relevante para o mundo de hoje, onde muitos continuam a crer, à imagem de Leroy-Beaulieu, que basta garantir os direitos de propriedade e a livre operação dos mercados e enaltecer a concorrência “pura e perfeita” para se chegar a uma sociedade justa, próspera e harmoniosa. A tarefa, infelizmente, é mais complexa do que isso.”

 

 

“Se os países ricos estiverem tão cheios de poupança e de capital que estes já não servem para nada além de construir mais imóveis ou instalar mais uma máquina na fábrica (diz-se, nesse caso, que a “produtividade marginal” do capital, ou seja, a produção suplementar possibilitada por uma unidade adicional de capital, é muito baixa), pode ser mais eficaz que invistam uma parte desses recursos nos países pobres. Dessa maneira, as nações ricas — ou ao menos os habitantes que detenham capital excedente — obterão uma taxa de retorno melhor, e os países pobres poderão reduzir o atraso na produtividade. Esse mecanismo, baseado na livre circulação dos fluxos de capitais e na equalização da produtividade marginal do capital no âmbito mundial, é, de acordo com a teoria econômica clássica, o fundamento do processo de convergência entre países e da redução progressiva da desigualdade ao longo da história, graças às forças do mercado e da concorrência.

Essa teoria otimista tem, entretanto, dois grandes defeitos. Em primeiro lugar, do ponto de vista estritamente lógico, esse mecanismo não garante de modo algum a convergência da renda por habitante no âmbito mundial. Na melhor das hipóteses, pode levar à convergência do produto por habitante — desde que haja a livre mobilidade de capital e, sobretudo, uma equalização completa dos níveis de qualificação da mão de obra e do capital humano entre países, o que não é pouca coisa. Em todo caso, essa convergência da produção não implica de modo algum que o mesmo ocorra com a renda. Uma vez que os investimentos tenham sido realizados, é sempre possível que os países ricos continuem a possuir os países pobres de forma permanente, chegando a alcançar proporções massivas, de tal modo que a renda nacional dos países ricos seja eternamente superior à dos pobres — que continuariam, para todo o sempre, a enviar uma parte do que produzem aos seus proprietários (como acontece com a África há muitas décadas). (...)

Em segundo lugar, do ponto de vista histórico, o mecanismo da mobilidade de capital não parece ter sido o fator que permitiu a convergência entre os países, ou, ao menos, não o fator principal. Nenhuma das nações asiáticas que reduziram o atraso em relação aos países mais desenvolvidos, quer se trate do Japão, da Coreia e de Taiwan no passado ou da China hoje, se beneficiou de investimentos estrangeiros substanciais. Basicamente, todos esses países financiaram os próprios investimentos em capital físico de que necessitavam e, sobretudo, os investimentos em capital humano — o aumento do nível geral de educação e formação —, cuja importância para o crescimento econômico de longo prazo foi respaldada por todas as pesquisas contemporâneas. Em contrapartida, os países que são propriedade de outros, como na época colonial ou na África atual, não foram tão bem-sucedidos, muitas vezes porque se especializaram em setores produtivos de pouco futuro ou devido a uma instabilidade política crônica.

Não é de todo errado pensar que essa instabilidade se explica, em parte, pelo seguinte: quando um país é, em larga medida, posse de estrangeiros, a demanda social pela expropriação é recorrente e quase irreprimível. Outros atores do quadro político respondem que somente a proteção incondicional dos direitos de propriedade originais garante um ambiente adequado para o investimento e o desenvolvimento. O país se encontra, desse modo, preso numa interminável alternância entre governos revolucionários (cujo sucesso na promoção de melhorias na qualidade de vida de seu povo é, muitas vezes, limitado) e governos que protegem os interesses dos proprietários existentes enquanto preparam a próxima revolução ou golpe de Estado. A desigualdade da propriedade do capital já é algo muito difícil de aceitar e organizar de modo suave no contexto da comunidade nacional. No âmbito internacional, isso é quase impossível (a não ser que se imagine uma relação de dominação política do tipo colonial).

Evidentemente, a inserção internacional na economia global não é negativa em si: a autarquia jamais foi uma fonte de prosperidade. Os países asiáticos sem dúvida foram beneficiados pela abertura internacional para reduzir seu atraso. Mas eles se apoiaram, sobretudo, na abertura dos mercados de bens e serviços e numa excepcional inserção no comércio internacional, não tanto na livre circulação dos fluxos de capital. A China, por exemplo, pratica até hoje o controle de capitais: não se pode investir livremente no país, mas isso não impede a acumulação de capital, uma vez que a poupança interna é suficiente. O Japão, assim como a Coreia e Taiwan, financiou o investimento usando os recursos de sua própria poupança. Os estudos disponíveis mostram, também, que a maior parte dos ganhos provenientes da abertura do comércio internacional advém da difusão do conhecimento e do aumento dinâmico da produtividade que resultam da abertura, e não dos ganhos estáticos relacionados à especialização. Esses parecem ser relativamente modestos.*

Em suma, a experiência histórica sugere que o principal mecanismo que permite a convergência entre países é a difusão do conhecimento, tanto no âmbito internacional quanto no doméstico. Ou seja, as economias mais pobres diminuem o atraso em relação às mais ricas na medida em que conseguem alcançar o mesmo nível de conhecimento tecnológico, de qualificação da mão de obra, de educação, e não ao se tornarem propriedade dos mais ricos. Esse processo de difusão do conhecimento não cai do céu: muitas vezes ele é acelerado pela abertura internacional e comercial (a autarquia não facilita a transferência tecnológica) e, sobretudo, depende da capacidade desses países de mobilizar os financiamentos e as instituições que permitam investir vastos montantes na formação de seu povo, tudo isso sob as garantias de um contexto jurídico para os diferentes atores. Ele está, portanto, intimamente relacionado ao processo de construção de uma potência pública (um governo) legítima e eficaz. Essas são as principais lições, brevemente resumidas, que podem ser extraídas da investigação histórica da evolução do crescimento mundial e da desigualdade entre países.”

*: De acordo com um estudo recente, os ganhos estáticos da abertura comercial da China e da Índia não teriam superado 0,4% do PIB mundial, 3,5% do PIB da China e 1,6% do PIB da Índia.  Levando em conta os enormes efeitos redistributivos entre setores e países (com importantes grupos de perdedores dentro de cada país), parece difícil justificar a abertura comercial (na qual os países parecem tão engajados) unicamente com esses ganhos.

 

 

“Em trinta anos, um crescimento de 1% ao ano corresponde a um crescimento acumulado de mais de 35%; já 1,5% ao ano corresponde a um crescimento acumulado de mais de 50% no mesmo período. Na prática, isso implica transformações consideráveis nos modos de vida e nos empregos. De fato, o crescimento da produção por habitante foi de, no máximo, 1-1,5% por ano ao longo dos últimos trinta anos na Europa, na América do Norte e no Japão. Ainda assim, nossas vidas foram transformadas radicalmente: no início dos anos 1980 não existiam nem a internet nem os telefones celulares, os transportes aéreos eram inacessíveis para um grande número de pessoas, a maioria das tecnologias de ponta da medicina disponíveis hoje ainda não existia, e apenas uma minoria tinha acesso ao ensino superior. Na área das comunicações, dos transportes, da saúde e da educação, as mudanças foram profundas. Essas transformações também afetaram a fundo a estrutura dos empregos: quando a produção por habitante cresce 35-50% no espaço de trinta anos, isso significa que uma fração substancial da produção realizada hoje — entre um quarto e um terço — não existia há trinta anos, e, portanto, entre um quarto e um terço das carreiras e das tarefas realizadas hoje não existiam há trinta anos. (...)

Um país com um crescimento de 0,1% ou 0,2% ao ano se reproduz quase de forma idêntica de uma geração para a outra: a estrutura das carreiras é a mesma, assim como a da propriedade. Um país no qual o crescimento é de 1% ao ano, como tem sido o caso dos países mais avançados desde o início do século XIX, é uma sociedade que se renova de modo profundo e permanente.”

 

 

“A dívida pública não é nada mais do que um crédito de uma parte do país (aqueles que recebem os juros) junto a outra (aqueles que pagam os impostos).”

 

 

“Na prática, a primeira regularidade observada quando se busca medir a desigualdade das rendas é que a desigualdade do capital é sempre mais forte do que a do trabalho. A distribuição da propriedade do capital e das rendas que dele provêm é sistematicamente mais concentrada do que a distribuição das rendas do trabalho.

Dois pontos merecem ser ressaltados de imediato. Primeiro, essa regularidade é encontrada em todos os países e em todas as épocas com dados disponíveis, sem exceção e sempre em grandes proporções. Apenas para destacar uma primeira ordem de grandeza, a participação dos 10% dos indivíduos que recebem as rendas do trabalho mais elevadas costuma ser de 25-30% do total das rendas do trabalho, enquanto a participação dos 10% dos indivíduos que detêm o patrimônio mais alto é sempre superior a 50% do total da riqueza, chegando às vezes a 90% em algumas sociedades. Talvez ainda mais marcante, os 50% mais mal pagos recebem uma parte considerável do total das rendas do trabalho (geralmente entre um quarto e um terço, mais ou menos tanto quanto os 10% mais bem pagos), enquanto os 50% mais pobres em patrimônio não possuem nada — ou quase nada (sempre menos de 10% do patrimônio total e em geral menos de 5%, ou dez vezes menos do que os 10% mais ricos). A desigualdade em relação ao trabalho é com frequência mais suave, moderada e razoável (ao menos até onde a desigualdade puder ser considerada razoável — veremos que essa questão não deve ser exagerada). Já a desigualdade do capital é sempre extrema.”

 

 

“Nas sociedades mais igualitárias em matéria de patrimônio, que são, mais uma vez, os países escandinavos dos anos 1970-1980, os 10% com patrimônios mais elevados representam cerca de 50% da riqueza nacional, ou até um pouco mais — entre 50% e 60% — se as maiores fortunas forem consideradas. Atualmente, no início dos anos 2010, a participação dos 10% com patrimônios mais altos se situa em torno de 60% da riqueza nacional na maior parte dos países europeus, e em particular na França, na Alemanha, no Reino Unido e na Itália.

Sem dúvida, o mais assombroso é que, em todas essas sociedades, a metade mais pobre da população não possui quase nada: os 50% mais pobres em patrimônio detêm sempre menos de 10% da riqueza nacional, e geralmente menos de 5%. Na França, de acordo com os dados disponíveis para os anos 2010-2011, a parcela dos 10% mais ricos chegava a 62% da riqueza total, e a dos 50% mais pobres não passava de 4%. Nos Estados Unidos, a pesquisa mais recente organizada pelo Federal Reserve para os mesmos anos revela que o décimo superior possuía 72% da riqueza americana, e a metade inferior da distribuição, apenas 2%. É preciso, ainda, salientar que essa fonte, como a maioria das pesquisas baseadas em declarações individuais, subestima as fortunas mais elevadas.”

 

 

“O caráter mais ou menos sustentável de uma desigualdade tão extrema depende não só da eficácia do aparato repressivo, mas também — e talvez sobretudo — da eficácia das diversas justificativas para ela. Se a desigualdade for percebida como justificada, por exemplo, porque os mais ricos escolheram trabalhar mais — ou de maneira mais competente — do que os mais pobres ou mesmo porque impedi-los de ganhar mais inevitavelmente prejudicaria os mais pobres, seria possível imaginar uma concentração de renda superior aos recordes históricos observados. É por essa razão que um novo recorde possível de ser alcançado pelos Estados Unidos em torno de 2030 caso a desigualdade das rendas do trabalho — e, em menor grau, a desigualdade da propriedade do capital — continue a evoluir como nas últimas décadas.”

 

 

“A forte elevação da desigualdade na França entre 1945 e 1967 conjuga uma expressiva alta da participação do capital na renda nacional e das desigualdades salariais num contexto de sólido crescimento econômico. O clima político desempenhou um papel relevante: todo o país estava concentrado na reconstrução, e a prioridade não era a redução da desigualdade, sobretudo quando havia a sensação de que ela tinha diminuído substancialmente depois da guerra. Os salários dos executivos, engenheiros e outros profissionais qualificados cresceram mais rápido que os salários baixos e médios nos anos 1950-1960, e num primeiro momento ninguém se abalou com isso. O salário mínimo nacional fora criado em 1950, mas não sofreu alterações e revalorizações e, assim, se distanciou bastante do salário médio.

A ruptura interveio em 1968. O movimento de maio de 1968 teve raízes estudantis, culturais e sociais que foram além da questão dos salários — ainda que o sentimento de fadiga em relação ao modelo de crescimento desigualitário dos anos 1950-1960 tivesse um grande peso. Contudo, seu desfecho político mais imediato deu-se sobre os salários: para sair da crise, o governo do general De Gaulle assinou os acordos de Grenelle, que previam uma alta de 20% do salário mínimo. O salário mínimo foi oficialmente indexado — em parte — ao salário médio em 1970, e os sucessivos governos de 1968 a 1983 se sentiram compelidos a aumentá-lo consideravelmente a cada ano diante do clima político e social em ebulição. Foi assim que o poder de compra do salário mínimo aumentou mais de 130% entre 1968 e 1983, enquanto o salário médio não subiu mais do que 50%, o que resultou numa forte compressão da desigualdade salarial. A ruptura com o período anterior foi marcante e substancial: o poder de compra do salário mínimo aumentara apenas 25% entre 1950 e 1968, e o salário médio mais do que dobrara. Propelida pela forte alta dos salários mais baixos, a massa salarial cresceu no total bem mais rápido que a produção ao longo dos anos 1968-1983, e daí decorreram a queda considerável da participação do capital na renda nacional e a compressão particularmente forte da desigualdade da renda.

O movimento voltou a se inverter em 1982-1983. O novo governo socialista que venceu as eleições de maio de 1981 gostaria, sem dúvida alguma, de ter prolongado a tendência. Contudo, não é nada simples fazer com que o salário mínimo aumente duas vezes mais rápido que o salário médio no longo prazo (sobretudo quando o próprio salário médio sobe mais rápido do que a produção).

Assim, o governo eleito decidiu implementar, em 1982-1983, o que na época se chamou de “volta à austeridade”: os salários foram congelados e a política de gatilhos anuais do salário mínimo foi abandonada em definitivo. Logo vieram as consequências: a participação dos lucros na produção disparou feito uma flecha durante os anos 1980 e as desigualdades salariais retornaram com força, assim como a desigualdade da renda. A ruptura foi tão intensa quanto a de 1968, mas no sentido oposto.”

 

 

“Para avançar em nossa compreensão, é aconselhável decompor o décimo superior da hierarquia das rendas americanas em três grupos: o 1% mais rico, os 4% seguintes e os 5% que vêm depois. Observa-se que a maior parte da alta resulta do grupo do “1%”, cuja parcela na renda nacional passou de cerca de 9% nos anos 1970 a cerca de 20% nos anos 2000-2010 (com fortes variações provenientes dos ganhos de capital), uma elevação de onze pontos percentuais. O grupo dos “5%” (para os quais a renda anual variava entre 108.000 e 150.000 dólares por domicílio em 2010), assim como o grupo dos “4%” (cuja variação da renda domiciliar era entre 150.000 e 352.000 dólares) foi beneficiado por elevações substanciais: a parcela dos “5%” na renda nacional americana passou de 11% a 12% (alta de um ponto percentual), enquanto a dos “4%” passou de 13% a 16% (alta de três pontos percentuais). Por definição, isso significa que esses grupos sociais foram beneficiados por altas expressivas desde os anos 1970-1980, muito superiores ao crescimento médio da economia americana, fato nada negligenciável.

Nesses grupos estão os economistas que trabalham como professores universitários americanos, os mesmos que tendem a acreditar que a economia americana funciona muito bem e, em particular, que ela remunera o talento e o mérito com justiça e precisão: aí está uma reação bastante humana e compreensível. A verdade, entretanto, é que os grupos sociais acima deles se saíram bem melhor: dos quinze pontos percentuais de renda nacional suplementar que foram absorvidos pelo décimo superior, em torno de onze pontos — quase três quartos — foram arrebanhados pelo “1%” (isto é, o grupo das rendas anuais superiores a 352.000 dólares em 2010), e a metade disso foi para o “0,1%” (o grupo das rendas anuais acima de 1,5 milhão de dólares).”

 

 

 

“Vimos que a crise financeira em si não parece ter influenciado a alta estrutural da desigualdade. Mas e a causalidade inversa? Seria possível que a alta estrutural da desigualdade americana tivesse contribuído para a eclosão da crise de 2008? Considerando que a parcela do décimo superior na renda nacional americana atingiu dois picos absolutos ao longo do último século, um em 1928 (às vésperas da crise de 1929) e o segundo em 2007 (às vésperas da crise de 2008), é difícil evitar essa pergunta.

De meu ponto de vista, não resta dúvida de que o aumento da desigualdade contribuiu para fragilizar o sistema financeiro americano. A razão é simples: a alta da desigualdade teve como consequência uma quase estagnação do poder de compra das classes populares e médias nos Estados Unidos. Daí só poderia resultar o endividamento crescente das famílias menos abastadas, sobretudo considerando que o acesso ao crédito foi ficando cada vez mais fácil e a falta de regulação dos bancos e das instituições de intermediação financeira, cada vez menos escrupulosas, ávidas por bons rendimentos, pela enorme poupança financeira injetada no sistema pelos mais ricos.

Para sustentar essa tese, é importante insistir na considerável amplitude da transferência de renda americana — da ordem de quinze pontos percentuais da renda nacional — que ocorreu entre os 90% mais pobres e os 10% mais ricos desde 1970. Concretamente, se acumularmos o crescimento total da economia americana ao longo dos trinta anos que antecederam a crise, isto é, de 1977 a 2007, observa-se que os 10% mais ricos se apropriaram de três quartos desse crescimento — o 1% mais rico absorveu sozinho cerca de 60% do crescimento total da renda nacional ao longo desse período. Para os 90% restantes, a taxa média de crescimento da renda foi de menos de 0,5% por ano. Essas cifras são incontestáveis e assombrosas: a despeito do que se pense sobre a legitimidade da desigualdade de renda, elas merecem ser examinadas com muita atenção. É difícil imaginar uma economia e uma sociedade que funcionem para sempre com uma divergência tão extrema entre os grupos sociais.”