sexta-feira, 29 de julho de 2016

A caminho de Cabul e Bagdá: Relatos do conflito no mundo islâmico – Jason Burke

Editora: Zahar
ISBN: 978-85-378-0086-7
Tradução: Roberto Franco Valente
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Nas ruelas de um povoado curdo, um jovem britânico é encurralado por seus perseguidores e se salva no último minuto. Um homem corre por uma árida estrada iraquiana desviando-se das bombas que caem ao seu redor. O jornalista Jason Burke enfrentou essas e muitas outras situações que parecem cenas de um filme de ação, nos dez anos em que cobriu os eventos do sudoeste asiático e do Oriente Médio. Em seus encontros com centenas de pessoas – de refugiados miseráveis e atiradores norte-americanos a ministros de alto escalão –, Burke percebe a multiplicidade oculta sob o rótulo de “mundo islâmico”. A caminho de Cabul e Bagdá relata uma jornada em busca de respostas para questões que estão entre as mais importantes do nosso tempo: como devemos, por exemplo, entender o Islã e o radicalismo islâmico? E oferece poderosas lições de humanidade.



“Quando regressei no outono de 2001 depois de fazer a cobertura da guerra no Afeganistão, fiquei chocado ao verificar como fora seriamente mal interpretada a natureza das causas daqueles ataques (contra as torres gêmeas). Por uma grande variedade de razões, que vão desde a mentira praticada por diversos governos até antigos preconceitos sociais e culturais sobre a natureza da ação violenta – tanto religiosa quanto política –, eles estavam sendo atribuídos a um sombrio grupo radical militante, rigorosamente estruturado, chamado Al-Qaeda, liderado por um mentor terrorista de nome Osama bin Laden. Declarava-se amplamente que esse grupo era responsável por violência no mundo inteiro. Dezenas de militâncias antigas, com raízes profundas em fatores econômicos, culturais e religiosas no mundo islâmico e além dele, estavam sendo simplesmente descartadas em favor da obra de um único dissidente saudita maluco e de alguns seguidores seus. Fiquei tão irritado diante da preguiça intelectual deste tipo de análise – e tão preocupado com as potenciais consequências disso – que comecei a escrever meu primeiro livro. Nele eu analisava a estrutura da militância islâmica contemporânea e ao mesmo tempo investigava algumas das suas raízes ideológicas e históricas. A Al-Qaeda, dizia eu, era uma ideia, não uma organização.”


“Todas as religiões importantes têm recursos em seu interior que podem ser explorados para diferentes usos, sejam belos ou pacíficos, tolerantes ou intolerantes. Mas era só aquele elemento minoritário dentro de uma minoria cujo epítome era Osama bin Laden e seus correligionários extremistas – homens que minaram o Islã através de tudo que havia de mais inflexível, violento e amargo –, que representava aquela fé nos tenebrosos dias que se seguiram a atrocidade dos ataques a Nova Iorque e Washington. E não foram apenas os radicais de direita ou os religiosos conservadores dos Estados Unidos que sentiram o que estava acontecendo como uma batalha existencial entre o bem e o mal, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso. Vários colegas e amigos meus pouco se esforçavam para disfarçar sua certeza de que o Islã era uma religião retrógrada, e que os “muçulmanos” constituíam um perigo claro e atual para quaisquer valores básicos da democracia liberal. Isso também me deixou aturdido, preocupado e irritado. E me entristeceu muito.
Talvez a característica mais deprimente do argumento do choque de civilizações, que poderia ser ironicamente engraçado se não fosse tão perigoso, seja a coincidência entre os pontos de vista e as ideias dos seus proponentes, tanto no mundo islâmico quanto no Ocidente. Neste, colunistas de jornal costumam referir-se ao “mundo islâmico” como algo monolítico. Os conservadores muçulmanos fazem semelhantes afirmações sobre o “Ocidente de orientação norte-americana”. Fala-se sobre o modo de pensar “dos árabes”, ou “dos islâmicos”, de um lado, e da “mente” ocidental, cristã ou judaica, de outro. No Ocidente, senadores americanos falaram em bombardear Meca em represália aos ataques contra os Estados Unidos, enquanto na Arábia Saudita e em outros lugares os radicais exigiam o bombardeio dos Estados Unidos em represália aos ataques contra a Palestina, a Chechênia, a Caxemira, o Iraque e o Afeganistão. E os dois lados acreditavam fazer parte de um grupo religioso definido, que deveria combater violentamente, numa competição hobbesiana, pelos escassos recursos morais, intelectuais e físicos da Terra. Acreditavam também estar se engajando em uma batalha sem limites e sem trégua contra um inimigo fanático e irracional, agressivo, beligerante e decidido a se expandir até que todos os outros sistemas de cultura, de sociedades e de crenças fossem erradicados. Todos apresentavam um leque de referências históricas e culturais espúrias para justificar o que constituía fundamentalmente uma visão preconceituosa e ignorante, distorcendo a realidade para adequá-la às suas ideias.”


“Estávamos sentados no refeitório da unidade de oficiais, uma grande barraca de lona armada junto à curva de um rio, afastada cerca de 1 km e meio da linha de frente. O jantar era galinha tikka seguida de pudim de claras, e foi servido na prataria do regimento por soldados usando luvas brancas. Durante o prato principal, as bombas indianas explodiam suficientemente perto para que os estilhaços batessem nas paredes. Eu não estava com tanto apetite assim. Herl, um homem forte e elegante de quarenta e poucos anos, dentes proeminentes, nariz grande, olhar alegre e bigode curto e espesso, mostrava-se muito expansivo. “A Índia e o Paquistão têm disputado a Caxemira por talvez mais de 50 anos, e ainda não conseguimos resolver a questão”, disse ele. “A guerra não pode prosseguir indefinidamente. Deve-se encontrar alguma outra forma de solucionar o caso”.
Ele serviu-se de um pouco mais de pudim. “Comer bem é um dom de Deus”, disse sorrindo, e fez um sinal para o soldado com a calda.
Dei um pulo quando uma bomba indiana explodiu perto dali. “E a guerra?”, perguntei.
“Isso é obra dos homens”, respondeu ele, com uma piscadela.”


“O fenômeno do Talibã começara bem perto de Khandahar, no verão de 1994, quando Omar, um veterano da guerra contra soviéticos, decidiu que o banditismo, o roubo e as violações, endêmicos na região naquela época tinham de acabar. Reuniu então um grupo de aldeões e atacou o acampamento do chefão local, que recentemente sequestrara e violentara uma jovem; o sujeito foi pendurado ao canhão de um tanque e enforcado. Rapidamente outros homens da região se juntaram ao grupo, e mais outros recrutas apareceram dentre os milhares de estudantes das escolas religiosas do Paquistão. Esses estudantes, muitas vezes refugiados afegãos ou filhos destes, receberam o nome de “talibãs”, que no idioma persa significa “os que procuram”. Passados dois anos do ataque surpresa de Omar em Khandahar, o Talibã já governava o país inteiro. Entretanto, esse sucesso impressionante não se devia apenas ao simples fato de o povo afegão já estar farto de guerras e banditismo. Omar e seu bando de vigilantes começaram sua campanha no momento em que os astros geopolíticos estavam perfeitamente alinhados a seu favor. Os generais paquistaneses consideraram os talibãs como seus legítimos representantes, e lhes enviaram especialistas e armas. Homens como Javed Parachar, da província da Fronteira noroeste, viram-nos como uma força contra o mal, e mandaram-lhes de suas escolas religiosas maciços reforços. Devotos comerciantes e príncipes da Arábia Saudita enviaram caixas de dinheiro, enquanto os Estados Unidos mantiveram-se quietos, distraídos pelos Bálcãs e receosos em relação aos assuntos internacionais de modo geral – e, de certa forma, felizes por ver o Afeganistão estabilizado, ainda que fosse por um bando de radicais linha-dura.”


“Quanto a Bin Laden, os fatos mais básicos eram bem conhecidos e tinham sido amplamente divulgados após os bombardeios contra as embaixadas, em agosto de 1998. Nascido na Arábia Saudita em 1957, filho de um devoto iemenita magnata da construção, Bin Laden viajara para o Paquistão no início dos anos 1980 para ajudar os afegãos a combater os soviéticos, e usara seus contatos no Golfo para levantar grandes somas de dinheiro vivo, que ele encaminhara para diversas facções. Perto do fim da guerra, decidira criar o próprio grupo a fim de reunir o pequeno número de belicosos militantes estrangeiros que lutavam ao lado dos afegãos e levar a luta para além das fronteiras daquele país. Decidira que esse grupo agiria como “Al-Qaeda” ou “base” ou “vanguarda” na língua árabe – para futuras operações e expansão. Bin Laden retornara depois à Arábia Saudita, onde não fizera nada digno de nota até Saddam Hussein invadir o Kuwait em 1990. Como súdito leal que era, oferecera-se para organizar uma legião de militantes árabes com o propósito de proteger a Arábia Saudita do ditador iraquiano. Sua proposta fora rejeitada, o que não o surpreendera, e logo em seguida ele deixara a terra natal e fora para o Sudão, onde passara os cinco anos seguintes experimentando de tudo, desde o financiamento de militantes islâmicos nos Bálcãs e no extremo oriente até a arboricultura e construção de estradas de rodagem.”


“Finalmente, começamos a compreender que a verdadeira força do círculo de Bin Laden – em termos intelectuais, é claro – era Ayman al-Zawahiri*, um pediatra egípcio que muito cedo se passara para a militância, e que fora preso e torturado em sua terra natal antes de partir para o Paquistão, no início dos anos 1980, para apoiar a guerra contra os soviéticos. Al-Zawahiri experimentara diretamente os rigores do ativismo militante, era um poderoso pensador e empregara de muitas maneiras o dinheiro e o indiscutível carisma de Bin Laden para desenvolver suas ambições pessoais e as fortunas do seu próprio grupo, a Jihad Islâmica egípcia. Embora Al-Zawahiri fosse frequentemente descrito como um simples representante de Bin Laden, logo ficou evidente para nós que seu papel era muito mais importante do que isso.
Em seguida, concentramos nossa atenção nos acontecimentos posteriores ao retorno de Bin Laden ao Afeganistão, em 1996. Mais uma vez percebemos que a versão oficial da carreira de Bin Laden fora sutilmente distorcida, se bem que de forma significativa. Descobrimos também que a relação dele com o Talibã era muito mais complicada do que se pensava. Em 1996, por exemplo, ele fora expulso do Sudão e convidado a voltar para o Afeganistão – não pelo Talibã, como tanto se disse, mas por três chefes guerreiros. Quando seus protetores foram derrotados, Bin Laden, usando seu dinheiro e seu carisma, conseguira convencer parcialmente os novos governantes do país de que ele não representava um risco, mas uma vantagem. Pelo que soubemos, porém, o Talibã permaneceu sempre cauteloso. Eles eram afegãos, e Bin Laden, um árabe, um forasteiro. Eles estavam interessados em livrar seu país da corrupção, e ele, em uma campanha para reforçar todo o mundo islâmico. Todo esse mal-estar tinha sido demonstrado da forma mais evidente apenas alguns meses antes, em setembro de 1998, quando o mula Omar, o líder do Talibã, deixara claro que os bombardeios às embaixadas norte-americanas na África Oriental, sobre os quais ele não fora consultado, haviam usurpado a sua própria autoridade. O Talibã, preocupado com a rejeição internacional acarretada pela concessão de abrigo a Bin Laden, decidiu que seria melhor o saudita “desaparecer”. Começaram a declarar, de forma bastante implausível, que não tinham a menor ideia do destino que ele tomara.”
*: Depois da morte de Bin Landen (destaque-se que este livro, escrito anos antes da captura dele, apontava o Paquistão como seu provável refúgio), Ayman al-Zawahiri assumiu a liderança da Al-Qaeda.


“Quando um repórter chega a uma cidade desconhecida, existem vários lugares aonde ele pode se dirigir para recolher histórias. Normalmente, não são os ministérios ou as embaixadas, mas os hospitais, os postos policiais e as escolas.”


“Saddam podia ser visto por toda a parte no Iraque. Dei-me conta de que totalitarismo significa exatamente o que parece querer dizer. O poder de Saddam dependia do medo, e esse medo dependia da ideia de não haver ninguém no país que pudesse estar fora do seu alcance pessoal, ou do alcance de seus comandados. Assim, seu controle era total. A rede de informantes por todo o território significava que ninguém poderia ter certeza de que o presidente não estivesse pessoalmente escutando suas palavras. Sem dúvida, Saddam estava constantemente vigiando. Em qualquer muro, em qualquer estrada, via-se a sua imagem, umas vezes sorrindo, outras sombrio, mas sempre vigiando.”


“Certamente, a história e a situação atual dos palestinos vivendo na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza poderiam ter sido propositadamente designadas para criar os diversos elementos que levavam à frustração e à hostilidade. Pode não haver nenhuma conexão direta entre pobreza e militância, mas uma relação indireta existe: uma situação de pobreza gera o sentimento de injustiça, que torna muito mais provável o ativismo violento. Os palestinos dos territórios Ocupados estavam sujeitos a humilhações diárias, e tinham de conviver com a constante consciência de lhes ter sido negado muito do que consideravam legitimamente seu.  Sabiam que eram mal governados pelos próprios líderes e traídos seguidamente pela comunidade internacional, além de por outros árabes e muçulmanos. O padrão de vida muito mais elevado dos israelenses, bem ali ao lado – ou mesmo nas colônias, bem ali no meio –, era uma constante lembrança de como poderiam ter sido as coisas. E o que era pior, o processo de paz do início dos anos 1990 gerara expectativas que foram completamente frustradas. A vida, exceto para uma pequena elite, continuava sendo extremamente dura. E, para completar, não havia qualquer meio não-violento de protesto que fosse eficaz, quer contra os israelenses, quer contra os próprios líderes palestinos, ineficientes e venais.”


“Quanto mais eu aprendia sobre a guerra na Argélia, mais me convencia de que ela tinha uma lição extremamente importante sobre a natureza da militância islâmica como um todo. Na Argélia eu pude ver muitas coisas que já testemunhara no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque e na Palestina, ou seja: como a religião podia atrair as pessoas simplesmente por ser útil a elas, de forma positiva ou negativa; como os sistemas baseados na fé podiam fornecer uma alternativa atraente quando outras ideologias eram consideradas um fracasso ou uma ameaça, ou ambas as coisas; como a propaganda funcionava melhor quando conectava-se a desconfianças e ressentimentos latentes que aguardavam  uma linguagem e um canal para se expressarem, principalmente quando muitos já tinham um forte sentimento de humilhação e de injustiça, ou de aspirações frustradas. Mas a Argélia também me ensinou algo novo. Enquanto eu viajava pelo país, ou melhor, pela estreita faixa habitada ao longo da costa norte, comecei a perceber toda a importância do meio-termo, do conjunto da opinião moderada, do imenso peso daquela parte da população que só desejava uma vida decente para si, seus amigos e familiares. Pois foi o apoio inicial que ela deu aos islamitas que, de certa forma, acarretou a guerra. E foi seu desgosto final pelos militantes que pôs fim à mesma.”


“Na Cabília, assim como no centro de Argel, os muros das moradias estavam cobertos de slogans políticos grafitados com spray. “Os que estão mortos não temem a morte”, dizia um.”


“O problema era que ninguém estava muito certo de quem – ou o quê – era o inimigo. Pouco se discutira, em nível mais elevado, sobre a Al-Qaeda antes do 11 de setembro ou durante o outono de 2001, e pouco havia para dar conteúdo, de modo sensato e não partidário, à discussão que se seguiu ao fim da campanha no Afeganistão. O resultado foi um vazio preenchido por análises baseadas em fontes insuficientes e parciais, e definido por posições ideológicas prévias. Enquanto estive no Paquistão e no Afeganistão, eu ignorava muito do que se falava na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos sobre a militância islâmica. Quando retornei, surpreendi-me ao perceber que aquilo que eu julgava fortemente ser uma ideia completamente equivocada sobre a natureza da Al-Qaeda se estabelecera como senso comum. A Al-Qaeda era considerada uma organização monolítica, muito ao estilo dos grupos terroristas tradicionais dos anos 1960 e 1970, com uma hierarquia definida, membros, quadros de funcionários, células e agentes por todo o mundo. Pior ainda, toda uma série de grupos espalhados pelo mundo islâmico, sem a menor relação com Bin Laden e cuja existência era quase desconhecida do Ocidente antes do 11 de setembro, era agora designada como Al-Qaeda ou filiais desta. Bin Laden era agora universalmente representado como um vilão à James Bond, sentado em uma caverna, diante de uma mesa de computador, orquestrando uma campanha mundial em prol da violência. De um modo mais generalizado, o terrorismo – ou pelo menos sua variação “muçulmana” – era frequentemente descrito como um ato de raiva irracional ou de ódio visceral contra a riqueza e a liberdade, integrando um plano para conquistar o mundo. Claramente, concluía-se que o importante não era a busca pelas “causas originais” do problema, e que aqueles que o fizessem estariam sendo “indulgentes”. Dizia-se que os homens-bomba eram loucos ou motivados por alguma disfunção sexual, e os tomadores de decisão aparentemente precisavam ter em mente que apenas uma ação resoluta e decidida deteria os terroristas, enquanto uma demonstração de fraqueza os encorajaria.
Esse pacote de ideias – o discurso “linha-dura” do antiterrorismo – dominou o debate, por uma grande variedade de razões. Em primeiro lugar, ele refletia as simpatias daqueles que formulavam as estratégias na Casa Branca e dos que os elegeram, repercutindo amplamente em uma cultura que enfatizava a ação e o esforço individuais, tanto na “sociedade” quanto no “ambiente”, como determinantes do comportamento, do sucesso, do fracasso e da história. Em segundo lugar, favoreciam-no a instituição da defesa e da indústria de segurança, que eram esmagadoramente conservadores nos Estados Unidos, na Europa e por todo o mundo. A natureza dos homens especializados em antiterrorismo e segurança, muitos dos quais são ex-soldados ou ex-policiais, leva coletivamente a um forte viés direitista em sua participação nas tomadas de decisão e nos debates públicos. Um terceiro motivo para o domínio do paradigma de direita foi a sua esmagadora popularidade entre governos desmoralizados de todo o mundo. Para sistemas de governo tais como o da Argélia, do Uzbequistão, das Filipinas e da Rússia, atribuir à Al-Qaeda – esse recém-descoberto grupo de bichos-papões internacionais – a responsabilidade por insurgências regionais há muito existentes era de extrema utilidade: desencadeava uma enxurrada de ajudas diplomáticas, militares e financeiras de Washington e ao mesmo tempo obscurecia o papel que a própria corrupção, nepotismo, repressão e administração incompetente haviam desempenhado no fomento à violência. Um quarto fator foi a ampla cumplicidade da mídia, tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos. Com poucas exceções, os jornalistas – fosse por ignorância, deferência ou preguiça – sentiam-se felizes em poderem acreditar em tudo que diziam os políticos e os “especialistas em segurança”. E estavam satisfeitos com o novo e brilhante rótulo para aquela ameaça que, muito pelo contrário, era extremamente obscura. Também estavam contentes por poderem atribuir à Al-Qaeda a culpa por qualquer ataque, em qualquer parte do mundo. Um derradeiro motivo para a prevalência do discurso direitista foi a fragilidade da resposta da esquerda, que ia desde um antiamericanismo fácil até o uso de teorias liberais amplas, carentes de rigor e clareza. Além disso, eram poucas as vozes na esquerda, ou mesmo no centro, que podiam falar com tanta autoridade e certeza quanto os seus adversários.
O resultado daquele distorcido debate sobre a natureza da ameaça que, aparentemente, surgira de repente em setembro de 2001 foi imediatamente perceptível em termos de políticas. A principal investida da “Guerra Contra o Terrorismo” foi, naturalmente, determinada pela Casa Branca, e se baseava quase exclusivamente nas tradicionais táticas “duras” do antiterrorismo. Os Estados Unidos buscavam transformar-se em uma fortaleza, enquanto fora dali agentes e tropas da inteligência se organizavam, com todo magnífico hardware, para saírem à caça dos maus elementos e os eliminarem. Fizeram-se promessas hipócritas de se incentivar a democracia e o crescimento econômico no Oriente Médio, mas quase não foram discutidas as complexas raízes do terrorismo islâmico, a diversidade do mundo muçulmano, a importância de se chegar ao tão crucial meio-termo e de se contrapor à ideologia que alimentava o apoio aos militantes. As lições de décadas de guerra contra rebeliões, como também as dos recentes acontecimentos na Argélia, no Afeganistão, no conflito Israel-Palestina e em outros lugares, foram esquecidas, ou ignoradas. A força, de um modo geral, deveria ser combatida com força.
Para lançar mais lenha na fogueira – ou, quase literalmente, acrescentando insulto à injúria –, a opinião pública no mundo islâmico foi seguidamente ofendida, e de uma forma que deve ter deliciado Bin Laden. Uma sequência de gafes do presidente Bush – suas insistentes referências à “cruzada” contra o terrorismo sendo apenas uma entre muitas – deixaram ultrajadas plateias já extremamente sensíveis. Regimes opressores foram cortejados e apoiados. A “limpidez moral” – o velho termo da Guerra Fria que significava não estar comprometido com “valores liberais superados” – foi seguida diretamente por uma série de horríveis abusos contra os direitos humanos nas novas prisões da Baía de Guantánamo e do Afeganistão. Isso manchou o nome dos Estados Unidos e deu credibilidade a uma velha acusação, tão difundida no mundo islâmico, do uso de dois pesos e duas medidas. Uma vez que o tema mais evidente, em anos de conversa que tive com militantes islâmicos, era a ideia de que eles estavam sendo atacados, o impacto cumulativo desses vários erros foi, como se pode imaginar, catastrófico. O vasto apoio que os Estados unidos desfrutaram no período posterior ao 11 de Setembro, até mesmo no mundo islâmico, rapidamente se transformou em – ou voltou a ser – hostilidade profunda. E o pior ainda estava por vir.
As implicações subjacentes à estratégia antiterrorista adotada pela Casa Branca – e, portanto, por grande parte dos aliados dos Estados Unidos depois dos ataques de 11 de Setembro – foram muito influenciadas pelo legado da Guerra Fria. Naquela ocasião os conservadores americanos e europeus também haviam atribuído o terrorismo ou a violência rebelde por todo mundo a sombrias redes dirigidas por um comitê central. Além disso, ao negarem que as insatisfações socioeconômicas tais como a pobreza ou a repressão fossem relevantes para a acolhida das ideologias de esquerda, sugeriam que o apoio estatal ao terrorismo é que era, em vez disso, o elemento importante. Uma vez que a administração de Bush tinha tantos membros com histórico de envolvimento na disputa com os soviéticos – como o próprio Rumsfeld –, essa continuidade era previsível. Não eram apenas os soldados e os repórteres em Bagram que estavam reencenando antigas guerras em suas mentes.
Em situação diversa, isso poderia não ter sido um grande problema. Na sobrecarregada atmosfera de 2002, porém, as consequências foram muito graves. A ênfase nos Estados que apoiavam o terrorismo, em vez de em suas causas originárias mais gerais, levou os tomadores de decisão norte-americanos a uma conclusão. Nas mentes de muitos estrategistas veteranos e influentes, a maior ameaça ao “mundo civilizado” não vinha de uma amorfa e confusa constelação de grupos radicais islâmicos independentes que articulavam antigas insatisfações sociais, culturais, políticas e econômicas em linguagem religiosa. Vinha, sim, de uma única nação: o Iraque.”


“Como a maioria dos curdos, ele era sunita, da escola de Shafai. Explicou-me que, quase dois mil anos antes, o Islã sunita fora dividido por autoridades religiosas dos impérios árabes islâmicos em quatro principais correntes, todas diferindo entre si na prática e na teoria. Essas correntes, cujos nomes vinham dos seus juristas mais eminentes, ainda determinavam a prática em grande parte do mundo islâmico. A mais rigorosa e conservadora, a corrente Hambali, predominava na Arábia Saudita e no Golfo, e era mais bem representada por movimentos como o wahabismo. A escola menos conservadora, a hanafista, abrangia o Iraque, a Turquia e a maior parte do sul e do sudoeste da Ásia. Os malikis encontravam-se no Magreb e na África subsaariana. Segundo Ismael Mohammed, os shafais eram conhecidos por sua moderação, mas, embora fossem fortes no Extremo Oriente, eram minoria no Oriente Médio.”


“A pergunta que todos faziam era: Como se pôde chegar a isso? Quais foram as razões que levaram, tão depressa, à insurreição armada no Iraque (pós-ocupação americana) em toda parte? Não era fácil responder.
Algumas razões para a violência eram óbvias. Foram cometidos erros cruciais pela Autoridade Provisória da Coalizão, e também por importantes figuras políticas de Washington, que transformaram um trabalho já difícil em algo muito, muito mais difícil. Imediatamente após a queda de Bagdá, a incapacidade das tropas americanas de deter a pilhagem na capital chocara muita gente. Depois, houvera uma série de decisões radicais – tais como a desmobilização total do Exército iraquiano e um esforço agressivo para excluir do Partido Baath todos os membros veteranos e muitos outros ocupando postos médios da administração civil – que criaram um vasto acúmulo de homens desempregados, humilhados e enraivecidos, grande parte dos quais pertenciam à minoria muçulmana sunita do país. Além disso, graças aos fracassos da inteligência, pelo menos tão graves quanto os que levaram à conclusão de que Saddam tinha armas de destruição em massa, não houvera quase nenhuma avaliação realista das maciças necessidades de infraestrutura do Iraque pós-Saddam, e por isso o ritmo da reconstrução se tornara espantosamente lento. E à medida que a situação da segurança ia se deteriorando, esse processo ficava ainda mais lento, provocando novas ondas de ressentimento. Dessa forma, mais recrutas se apresentavam aos insurgentes. Tampouco a mídia local de língua árabe facilitou a tarefa da Autoridade da Coalizão, pois, embora muitas vezes contestasse a versão dos acontecimentos de forma útil, frequentemente permitia que sua profunda oposição à guerra colorisse as reportagens, muitas vezes sensacionalistas porém amplamente respeitadas.”


“Um problema era a escassez de informação verdadeira. Era difícil, mesmo para os jornalistas morando em casas alugadas na cidade, descobrir o que estava se passando no outro lado de Bagdá. Era quase impossível para qualquer um na Zona Verde* obter informações confiáveis sobre o que estava acontecendo a apenas 200 quilômetros de distância. Comunicações insuficientes significavam que os administradores de Bagdá simplesmente não sabiam o que estava ocorrendo nas outras partes do Iraque. Os resultados ficaram mais evidentes nas apelidadas “Tolices das Cinco e Meia” – conferências de imprensa diárias em estilo Orwell realizadas na Zona Verde por veteranos porta-vozes da Coalizão. Em certa ocasião, apesar de um helicóptero ter sido abatido perto de Faluja, dos conflitos em Narjaf, Karbala e Cidade de Sadr, de um ataque com morteiros a Bagdá naquela manhã – que literalmente me fez pular da cama – e de todas as estradas do país aparentemente estarem perigosas demais para se trafegar, o chefe militar de imprensa se referiu a “um ligeiro aumento de hostilidades”. Ao lhe pressionarem sobre o fato de que as forças recrutadas recentemente pelo governo iraquiano tinham desertado em massa, tendo alguns homens se juntado aos rebeldes, ele admitiu muito contra a vontade que “o progresso que esperávamos fazer com a segurança não ocorreu como prevíamos”, caindo em seguida nos clichês de sempre: “As tropas americanas estão lutando e morrendo para trazer a democracia para as jovens mulheres e crianças iraquianas”. O ruído de helicópteros voando baixo era aparentemente “o som da liberdade”. Regularmente nos davam “volumosa informação” sobre os CACs (os combatentes anti-Coalizão) mortos em “vigorosas operações de combate”, enquanto o número de civis mortos era impossível de se obter.”
*: Área reservada de cerca de dez quilômetros quadrados onde as tropas (e o comando da Autoridade da Coalizão) se concentravam durante a ocupação; é a atual sede do governo iraquiano.


“O que eu sabia era que, não importa por onde eu tenha viajado nos anos que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro – desde a Indonésia até o Magreb, passando pela Malásia, a Tailândia, a Índia (cuja população de 140 milhões de muçulmanos permanecia decididamente moderada), o Paquistão, o Afeganistão, o Qatar, o Iraque, a Jordânia, a Síria, Israel-Palestina, Líbano e Turquia –, jamais me deparei com qualquer hostilidade direta, pessoal. Mesmo no Iraque, eu me sentira sempre confiante de que a grande maioria da população não me faria mal. A verdade era que, apesar dos terríveis abusos cometidos em Abu Ghraib e em Guantánamo, apesar dos constantes desapontamentos da vida cotidiana, apesar das mortes de 30 mil civis no Iraque, apesar da frustração de tantas aspirações e esperanças, apesar de todos os esforços de homens como Bin Laden, Al-Zawahiri e Al-Zarqawi, apesar dos governantes incompetentes, corruptos, dinásticos e esclerosados ainda agarrados ao poder por toda parte, apesar da retórica agressiva e beligerante partindo de todos os lados, apesar da maciça transmissão pela mídia de uma mensagem de ódio, preconceito e violência – apesar disso tudo, o povo comum do mundo islâmico, aqueles apanhados em meio ao fogo cruzado, aqueles cujas vozes foram tantas vezes sufocadas pelos gritos e os tiros, todos aqueles moderados não foram vencidos pelos radicais. O centro resistiu. Sim, alguns se enfureceram. Sim, outros ficaram ressentidos. Sim, alguns se passaram para a militância, e não há dúvida de que muitos mais o fariam nos anos seguintes. Mas quando Bin Laden disse “o despertar já começou”, ele acreditava que seus espetaculares atos de violência iriam desencadear uma ampla onda de apoio por todo mundo islâmico. E ele estava errado.”


“O nascente otimismo que eu vinha sentido desapareceu no mesmo instante em que soube das explosões (em julho de 2005 três bombas explodiram no metrô de Londres e uma em um ônibus, matando 52 pessoas e deixando mais de 700 feridas). Senti também profunda tristeza. E, é claro, me senti com muita raiva. Fiquei furioso, diante da ridícula declaração, seguidamente repetida tanto pelos políticos quanto por “líderes comunitários”, de que “o Islã é uma religião de paz”. De fato, como aprendi in loco, qualquer crença é aquilo que os fieis fazem dela, e o Islã dispunha de recursos que poderiam ser utilizados tanto para justificar a estarrecedora brutalidade quanto para encorajar a misericórdia e a tolerância. (...)
Descobriu-se que os autores daqueles ataques eram quatro jovens, todos cidadãos britânicos – três nascidos no Reino Unido de pais paquistaneses e o quarto nascido na Jamaica e convertido ao Islã mais recentemente. Não parecia haver um mentor intelectual que os houvesse recrutado, dirigido sua célula e logo em seguida fugido do país, e tampouco existia evidência de qualquer conexão com Osama bin Laden ou alguém mais próximo a ele. Era um dos primeiros exemplos de um grupo de cidadãos nascidos em um país ocidental que, em nome do Islã, lançava um ataque à própria terra natal. Parece que a célula era inteiramente “de casa”, confirmando minha teoria de que a ideologia radical que se difundira desde fins dos anos 1990 não precisava de organizações, campos de treinamento ou líderes para levar as pessoas à ação, ela viria de dentro do país. Eu sabia, pela minha experiência no Iraque e em outros lugares, que a lógica do terrorismo significava que bastava uma leve alteração na radicalização geral para se criar um número suficiente de pessoas dispostas a cometer atos violentos o bastante para causar sérios danos. Essa alteração, como eu e outros tínhamos previstos, acontecera.”


“Pensei mais uma vez em todos os militantes que conheci ou entrevistei: no Talibã, nas pessoas que conheci no Paquistão, em Didar – o homem-bomba de Suleimaniyah que gostava de futebol –, em Abu Mujahed em Bagdá, nos milicianos xiitas de Najaf, nos homens das prisões de Caxemira e de Kandahar, e em todos os outros. Não havia nenhuma regra determinando por que os diversos argumentos da ideologia radical “islâmica” funcionaram com eles. O caminho que cada um seguira era diferente. Uns tinham buscado uma solução para o que consideravam injustiças sociais e econômicas; outros queriam uma vingança contra uma humilhação ou uma ofensa real ou imaginária; outros simplesmente queriam amizade, ou respeito próprio, ou aventura. Outros queriam combater o que viam como a ocupação de sua terra natal. Alguns claramente tinham sido homens brutais, endurecidos pelo ódio e enfurecidos desde o início, pessoas que apenas gostavam do sentimento de poder proporcionado pelo prejuízo causado aos outros. Outros queriam apenas demonstrar sua fé da maneira mais extrema possível. Alguns compreendiam que os seus atos eram parte de um programa político cuidadosamente articulado. A maioria acreditava que seriam elogiados como heróis em suas comunidades. Poucos não se importavam com o que poderiam pensar seus semelhantes. Por um longo tempo tentei descobrir alguma espécie de teoria geral que desvendasse o segredo da “militância islâmica”, e subitamente me dei conta de que era impossível fazer isso. Não havia uma resposta única. Na verdade, o ponto era exatamente não haver uma resposta única.
E me dei conta de que não só não havia nenhuma teoria geral que pudesse explicar o “mundo islâmico”, e que qualquer busca nesse sentido seria não apenas fútil, mas de fato contraproducente. Seria fazer contornos em volta das pessoas, designá-las como pertencendo a este ou aquele bloco, decidindo que em vez de alto, baixo, gordo, magro, velho, jovem, alfabetizado, analfabeto, homem, mulher, sem filhos, com filhos, empregado, desempregado, saudável, doente, todos eram muçulmanos ou não-muçulmanos, e que essa distinção, quase inteiramente arbitrária, era como as pessoas podiam ser divididas e subdivididas e de novo divididas, e as comunidades definidas.
Por suas próprias naturezas, as únicas coisas que poderiam definir o “radicalismo muçulmano violento” eram o “Islã” e a “violência”. A definição era um argumento circular que inevitavelmente levaria à simples conclusão de que as duas coisas estão intimamente ligadas. De fato, a violência com a qual nos defrontávamos era um fenômeno contemporâneo muito complicado, com raízes em desenvolvimentos culturais, políticos, econômicos e na interação entre indivíduos, grupos, países e sociedades por todo o mundo há séculos. E, como estava projetada para fazer, a violência nos confrontava com uma escolha de extrema importância. No período seguinte aos bombardeios, como também na esteira das execuções e dos assassinatos pela honra ou mostrados em vídeo, poderíamos destacar a divisão ou o seu oposto. E se os bombardeios em Londres me ensinaram algo foi que reunir as pessoas – sejam centenas de milhões em imensas extensões do planeta ou apenas 50 delas em um vagão de metrô – e demarcá-las, rotulá-las e designá-las simplesmente como isto ou aquilo, como inimigos ou amigos, ocidentais ou orientais, muçulmanos ou não-muçulmanos, crentes ou descrentes é uma coisa que ninguém jamais deve fazer. E se as minhas viagens nos últimos anos me ensinaram algo foi que dar ênfase às diferenças quando há tanta coisa que une, enfatizar as divisões quando tantas coisas são as mesmas, enfatizar as distâncias quando há tanto que cada vez mais se aproxima não é apenas perigoso: é errado.”

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (Parte III) – Gilberto Freyre

Editora: Global

ISBN: 978-85-2600-869-4

Opinião: ★★★★★

Páginas: 736

Sinopse: Ver Parte I


 

“Enquanto o esforço exigido pelo colono do escravo índio foi o de abater árvores, transportar os toros aos navios, granjear mantimentos, caçar, pescar, defender os senhores contra os selvagens inimigos e corsários estrangeiros, guiar os exploradores através do mato virgem – o indígena foi dando conta do trabalho servil. Já não era o mesmo selvagem livre de antes da colonização portuguesa; mas esta ainda não o arrancara pela raiz do seu meio físico e do seu ambiente moral; dos seus interesses primários, elementares, hedônicos; aqueles sem os quais a vida se esvaziaria para eles de todos os gostos estimulantes e bons: a caça, a pesca, a guerra, o contato místico e como que esportivo com as águas, a mata, os animais. Esse desenraizamento viria com a colonização agrária, isto é, a latifundiária: com a monocultura, representada principalmente pelo açúcar. O açúcar matou o índio. Para livrar o indígena da tirania do engenho é que o missionário o segregou em aldeias. Outro processo, embora menos violento e mais sutil, de extermínio da raça indígena no Brasil: a sua preservação em salmoura, mas não já a sua vida própria e autônoma.

As exigências do novo regime de trabalho, o agrário, o índio não correspondeu, envolvendo-se em uma tristeza de introvertido. Foi preciso substituí-lo pela energia moça, tesa, vigorosa do negro, este um verdadeiro contraste com o selvagem americano pela sua extroversão e vivacidade. Não que o português aqui tivesse deparado em 1500 com uma raça de gente fraca e mole, incapaz de maior esforço que o de caçar passarinho com arco e flecha e atravessar a nado lagoas e rios fundos: os depoimentos dos primeiros cronistas são todos em sentido contrário. Léry salienta nos indígenas seu grande vigor físico abatendo a machado árvores enormes e transportando-as aos navios franceses sobre o dorso nu. Gabriel Soares descreve-os como indivíduos “bem feitos e bem dispostos”; Cardim destaca-lhes a ligeireza e a resistência nas longas caminhadas a pé; e o português que primeiro os surpreendeu, ingênuos e nus, nas praias descobertas por Pedrálvares, fala com entusiasmo da robustez, da saúde e da beleza desses “como aves ou alimareas monteses”: “por que hos corpos seus sam tam limpos, e tam gordos, e tam fremosos, que nem pode mais ser [...]”. Robustez e saúde que não esquece de associar ao sistema de vida e de alimentação seguido pelos selvagens: ao “ar” – isto é, ao ar livre – “a que se criam”; e ao “inhame, que aquy haa muyto [...]. Elles nom lauram, nem criam, nem haa aquy boy, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimarea, que costumada seja aho viver dos homeens; nem comem senom dese inhame, que aquy haa muyto, e desa semente, e fruitos que ha terra, e has arvores de sy lançam: e com isto andam taaes, e tam rijos, e tam nedeos, que ho nom somonós tanto com quanto trigo, e legumes comemos.”

Se índios de tão boa aparência de saúde fracassaram, uma vez incorporados ao sistema econômico do colonizador é que foi para eles demasiado brusca a passagem do nomadismo à sedentariedade –, da atividade esporádica à contínua; é que neles se alterou desastrosamente o metabolismo ao novo ritmo de vida econômica e de esforço físico. Nem o tal inhame nem os tais frutos da terra bastariam agora à alimentação do selvagem submetido ao trabalho escravo nas plantações de cana. O resultado foi evidenciar-se o índio no labor agrícola o trabalhador banzeiro e moleirão que teve de ser substituído pelo negro. Este, vindo de um estádio de cultura superior ao do americano, corresponderia melhor às necessidades brasileiras de intenso e contínuo esforço físico. Esforço agrícola, sedentário. Mas era outro homem. Homem agrícola. Outro, seu regime de alimentação, que, aliás, pouca alteração sofreria no Brasil, transplantadas para cá muitas das plantas alimentares da África: o feijão, a banana, o quiabo; e transportados das ilhas portuguesas do Atlântico para a colônia americana o boi, o carneiro, a cabra, a cana-de-açúcar.

Do indígena se salvaria a parte por assim dizer feminina de sua cultura. Esta, aliás, quase que era só feminina na sua organização técnica, mais complexa, o homem limitando-se a caçar, a pescar, a remar e a fazer a guerra. Atividades de valor, mas de valor secundário para a nova organização econômica – a agrária estabelecida pelos portugueses em terras da América. O sistema português do que precisava, fundamentalmente, era do trabalhador de enxada para as plantações de cana. Trabalhador fixo, sólido, pé-de-boi.

Entre culturas de interesses e tendências tão antagônicos era natural que o contato se verificasse com desvantagem para ambas. Apenas um conjunto especialíssimo de circunstâncias impediu, no caso do Brasil, que europeus e indígenas se extremassem em inimigos de morte, antes se aproximassem como marido e mulher, como mestre e discípulo, daí resultando uma degradação de cultura por processos mais sutis e em ritmo mais lento do que em outras partes do continente.

Goldenweiser aponta para o destino dos mongóis submetidos pelos russos; dos ameríndios, dos nativos da Austrália, da Melanésia, da Polinésia e da África, sempre o mesmo drama: as culturas atrasadas desintegrando-se sob o jugo ou à pressão das adiantadas. E o que mata esses povos primitivos é perderem quase a vontade de viver, “o interesse pelos seus próprios valores”, diz Goldenweiser, uma vez alterado o seu ambiente; quebrado o equilíbrio de sua vida pelo civilizado. Dos primitivos da Melanésia já escrevera W. H. R. Rivers que estavam “dyíng from lack of interest”. Morrendo de desinteresse pela vida. Morrendo de banzo. Ou chegando mesmo a se matar, como aqueles índios que Gabriel Soares observou irem definhando e inchando: o diabo lhes aparecia e mandava que comessem terra até morrerem.

Ainda assim o Brasil é dos países americanos onde mais se tem salvo da cultura e dos valores nativos. O imperialismo português – o religioso dos padres, o econômico dos colonos – se desde o primeiro contato com a cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-la de repente, com a mesma fúria dos ingleses na América do Norte. Deu-lhe tempo de perpetuar-se em várias sobrevivências úteis.

Sem que no Brasil se verifique perfeita intercomunicação entre seus extremos de cultura – ainda antagônicos e por vezes até explosivos, chocando-se em conflitos intensamente dramáticos como o de Canudos – ainda assim podemos nos felicitar de um ajustamento de tradições e de tendências raro entre povos formados nas mesmas circunstâncias imperialistas de colonização moderna dos trópicos.

A verdade é que no Brasil, ao contrário do que se observa em outros países da América e da África de recente colonização europeia, a cultura primitiva – tanto a ameríndia como a africana – não se vem isolando em bolões duros, secos, indigestos, inassimiláveis; ao sistema social do europeu. Muito menos estratificando-se em arcaísmos e curiosidades etnográficas. Faz-se sentir na presença viva, útil, ativa, e não apenas pitoresca, de elementos com atuação criadora no desenvolvimento nacional. Nem as relações sociais entre as duas raças, a conquistadora e a indígena, aguçaram-se nunca na antipatia ou no ódio cujo ranger, de tão adstringente, chega-nos aos ouvidos de todos os países de colonização anglo-saxônica e protestante. Suavizou-as aqui o óleo lúbrico da profunda miscigenação, quer a livre e danada, quer a regular e cristã sob a bênção dos padres e pelo incitamento da Igreja e do Estado. Nossas instituições sociais tanto quanto nossa cultura material deixaram-se alagar de influência ameríndia, como mais tarde da africana, da qual se contaminaria o próprio direito: não diretamente, é certo, mas sutil e indiretamente. Nossa “benignidade jurídica” já a interpretou Clóvis Beviláqua como reflexo da influência africana. Certa suavidade brasileira na punição do crime de furto talvez reflita particular contemporização do europeu com o ameríndio, quase insensível à noção desse crime em virtude do regime comunista ou meio comunista de sua vida e economia.

Vários são os complexos característicos da moderna cultura brasileira, de origem pura ou nitidamente ameríndia: o da rede, o da mandioca, o do banho de rio, o do caju, o do “bicho”, o da “coivara”, o da “igara”, o do “moquém”, o da tartaruga, o do bodoque, o do óleo de coco-bravo, o da “casa do caboclo”, o do milho, o de descansar ou defecar de cócoras, o do cabaço para cuia de farinha, gamela, coco de beber água, etc. Outros, de origem principalmente indígena: o do pé descalço, o da “muqueca”, o da cor encarnada, o da pimenta, etc. Isto sem falarmos no tabaco e na bola de borracha, de uso universal, e de origem ameríndia, provavelmente brasílica.

No costume, ainda muito brasileiro, muito do interior e dos sertões, de não aparecerem as mulheres e os meninos aos estranhos, nota-se também influência da cultura ameríndia; da crença, salientada por Karsten, de serem as mulheres e os meninos mais expostos que os homens aos espíritos malignos. Entre caboclos do Amazonas, Gastão Cruls observou o fato de as mulheres e crianças serem sempre postas “ao abrigo do olhar estrangeiro”.”

 

 

“A figura do colonizador português do Brasil é vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas modernos. Assemelha-se em uns pontos à do inglês –, em outros à do espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis.

O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos, que de longe se adivinhavam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com os escravos. É verdade que, em grande parte, pela impossibilidade de constituir-se em aristocracia europeia nos trópicos: escasseava-lhe para tanto o capital, senão em homens, em mulheres brancas. Mas independente da falta ou escassez de mulher branca, o português sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenação. Tendência que parece resultar da plasticidade social, maior no português que em qualquer outro colonizador europeu.

Nenhum menos rígido no contorno. Menos duro nas linhas do caráter. Daí prestar-se a tantas e tão profundas deformações. Não é uma “lenda negra”, como a grande, sinistra, que prestigia, mesmo denegrindo, a figura do conquistador espanhol, a que envolve o colonizador português, mas uma tradição pegajenta de inépcia, de estupidez e de salacidade.”

 

 

“Longe de conformar-se com uma viuvez honesta, de nação decaída – como mais tarde a Holanda, que depois de senhora de vasto império entregou-se ao fabrico do queijo e da manteiga – continuou Portugal, após Alcácer-Quebir, a supor-se o Portugal opulento de D. Sebastião vivo. A alimentar-se da fama adquirida nas conquistas de ultramar. A iludir-se de uma mística imperialista já sem base. A envenenar-se da mania de grandeza. “Celebram Lisboa com tal cópia de palavras, que a fazem igual às principais cidades do mundo, e por isso costumam dizer: – Quem não vê Lisboa, não vê cousa boa”, escreviam dos portugueses em fins do século XVI os embaixadores venezianos Trom e Lippomani. E acrescentavam: “A gente miúda gosta que lhe deem o tratamento de Senhor, manha esta comum a toda a Espanha”.

Do século XVI até hoje só tem feito aguçar-se no português a simulação de qualidades europeias e imperiais, que possuiu ou encarnou por tão curto período. É um povo que vive a fazer de conta que é poderoso e importante. Que é supercivilizado à europeia. Que é grande potência colonial. Bell observou entre os portugueses dos princípios do século XX que seus ideais de engrandecimento nacional continuavam a variar entre “a conquista da Espanha e a construção de uma marinha de guerra.” A Suíça que condense o seu leite e a Holanda que fabrique seus queijos. Portugal continua de ponta de pé, no esforço de aparecer entre as grandes potências europeias.

Foram esses exageros que o impressionismo de Keyserling não soube descontar ou descontou mal, reduzindo os portugueses a um povo sem grandeza nenhuma: quase uma Andorra ou uma São Marinho. República de opereta onde todos os homens fossem doutores e se tratassem por Vossa Excelência. Diminuiu-lhes a importância da função criadora que nos séculos XV e XVI afirmou-se não só na técnica da navegação e da construção naval como no arrojo dos descobrimentos e das conquistas, nas guerras da África e da Índia, na opulenta literatura de viagens, no eficiente imperialismo colonizador. Só lhes deixou de original a música popular ou plebeia; e de grande o ódio ao espanhol. Ódio igualmente plebeu.

Pelo ódio ou antagonismo ao espanhol é que o português se teria tornado e conservado autônomo. Independente.

Mas antes do ódio ao espanhol, salientado por Keyserling, outro, talvez mais profundo e criador, atuou sobre o caráter português, predispondo-o ao nacionalismo e até ao imperialismo: o ódio ao mouro. Quase o mesmo ódio que se manifestou mais tarde no Brasil nas guerras aos bugres e aos hereges. Principalmente aos hereges – o inimigo contra quem se uniram energias dispersas e até antagônicas. Jesuítas e senhores de engenho. Paulistas e baianos. Sem esse grande espantalho comum talvez nunca se tivesse desenvolvido “consciência de espécie” entre grupos tão distantes uns dos outros, tão sem nexo político entre si, como os primeiros focos de colonização lusitana no Brasil. A unificação moral e política realizou-se em grande parte pela solidariedade dos diferentes grupos contra a heresia, ora encarnada pelo francês, ora pelo inglês ou holandês; às vezes, simplesmente pelo bugre.

 Repetiu-se na América, entre portugueses disseminados por um território vasto, o mesmo processo de unificação que na Península: cristãos contra infiéis. Nossas guerras contra os índios nunca foram guerras de branco contra peles-vermelhas, mas de cristãos contra bugres. Nossa hostilidade aos ingleses, franceses, holandeses teve sempre o mesmo caráter de profilaxia religiosa: católicos contra hereges. Os padres de Santos que em 1580 tratam com os ingleses da Minion, não manifestam contra eles nenhum duro rancor: tratam-nos até com alguma doçura. Seu ódio é profilático. Contra o pecado e não contra o pecador, diria um teólogo.”

 

 

“No Brasil, a catedral ou a igreja mais poderosa que o próprio rei seria substituída pela casa-grande de engenho. Nossa formação social, tanto quanto a portuguesa, fez-se pela solidariedade de ideal ou de fé religiosa, que nos supriu a lassidão de nexo político ou de mística ou consciência de raça. Mas a igreja que age na formação brasileira, articulando-a, não é a catedral com o seu bispo a que se vão queixar os desenganados da justiça secular; nem a igreja isolada e só, ou de mosteiro ou abadia, onde se vão açoitar criminosos e prover-se de pão e restos de comidas mendigos e desamparados. É a capela de engenho. Não chega a haver clericalismo no Brasil. Esboçou-se o dos padres da Companhia para esvair-se logo, vencido pelo oligarquismo e pelo nepotismo dos grandes senhores de terras e escravos.

Os jesuítas sentiram, desde o início, nos senhores de engenho, seus grandes e terríveis rivais. Os outros clérigos e até mesmo frades acomodaram-se, gordos e moles, às funções de capelães, de padres-mestres, de tios-padres, de padrinhos de meninos; à confortável situação de pessoas da família, de gente de casa, de aliados e aderentes do sistema patriarcal, no século XVIII muitos deles morando nas próprias casas-grandes. Contra os conselhos, aliás, do jesuíta Andreoni que enxergava nessa intimidade o perigo da subserviência dos padres aos senhores de engenho e do demasiado contato – não diz claramente, mas o insinua em meias palavras com negras e mulatas moças. Ao seu ver devia o capelão manter-se “familiar de Deus, e não de outro homem”; morar sozinho, fora da casa-grande; e ter por criada escrava velha. Norma que parece ter sido seguida raramente pelos vigários e capelães dos tempos coloniais.”

 

 

“Mas o ponto a destacar é a presença, não esporádica porém farta, de descendentes de moçárabes, de representantes da plebe enérgica e criadora, entre os povoadores e primeiros colonizadores do Brasil. Através desse elemento moçárabe é que tantos traços de cultura moura e mourisca se transmitiram ao Brasil. Traços de cultura moral e material. Debbané destaca um: a doçura no tratamento dos escravos que, na verdade, foram entre os brasileiros, tanto quanto entre os mouros, mais gente de casa do que besta de trabalho. Outro traço de influência moura que se pode identificar no Brasil: o ideal de mulher gorda e bonita de que tanto se impregnaram as gerações coloniais e do Império. Ainda outro: o gosto dos voluptuosos banhos de gamela ou de “canoa”; o gosto da água corrente cantando nos jardins das casas-grandes. Burton surpreendeu no Brasil no século XIX várias reminiscências de costumes mouros. O sistema das crianças cantarem todas ao mesmo tempo suas lições de tabuada e de soletração recordou-lhe as escolas maometanas. E tendo viajado no interior de Minas e de São Paulo, ainda encontrou o hábito das mulheres irem à missa de mantilha, o rosto quase tapado, como o das mulheres árabes. Nos séculos XVI, XVII e XVIII os rebuços e mantilhas predominam por todo o Brasil, dando às modas femininas um ar mais oriental que europeu. Os rebuços eram uma espécie de “dominós pretos”, “mantilhas fúnebres em que se andam amortalhadas muitas das beldades portuguesas”, como os descreveu Sebastião José Pedroso no seu Itinerário, referindo-se às mulheres do reino.

E não esqueçamos de que nossas avós coloniais preferiram sempre ao requinte europeu das poltronas e dos sofás estofados, o oriental, dos tapetes e das esteiras. Em casa e até nas igrejas era sobre os tapetes de seda ou as frescas esteiras de pipiri que se sentavam, de pernas cruzada à mourisca, os pezinhos tapados pela saia. “Quando vão visitar”, informa um relatório holandês do século XVII, referindo-se às mulheres luso-brasileiras, “primeiramente mandam participar; a dona da casa senta-se sobre um belo tapete turco de seda estendido sobre o soalho e espera suas amigas que também se sentam a seu lado sobre o tapete, à guisa dos alfaiates, tendo os pés cobertos, pois seria grande vergonha deixar alguém ver os pés”.

Diversos outros valores materiais, absorvidos da cultura moura ou árabe pelos portugueses, transmitiram-se ao Brasil: a arte do azulejo que tanto relevo tomou em nossas igrejas, conventos, residências, banheiros, bicas e chafarizes; a telha mourisca; a janela quadriculada ou em xadrez; a gelosia; o abalcoado; as paredes grossas. Também o conhecimento de vários quitutes e processos culinários; certo gosto pelas comidas oleosas, gordas, ricas em açúcar. O cuscuz, hoje tão brasileiro, é de origem norte-africana. (...)

 Da influência dos maometanos, em geral, sobre a Península Hispânica – sobre a medicina, a higiene, as matemáticas, a arquitetura, as artes decorativas – limitamo-nos a observar que, abafada por severas medidas de repressão ou reação católica, ainda assim sobreviveu à reconquista cristã. A arte de decoração mourisca dos palácios e das casas atravessou incólume os séculos de maior esplendor cristão para vir, no XVIII, enfrentar vantajosamente o rococó. Dominou em Portugal, vindo florescer na decoração de casas-grandes do Brasil do século XIX.

Os artífices coloniais, a quem deve o Brasil o traçado de suas primeiras habitações, igrejas, fontes e portões de interesse artístico, foram homens criados dentro da tradição mourisca. De suas mãos recolhemos a herança preciosa do azulejo, traço de cultura em que insistimos devido a sua íntima ligação com a higiene e a vida de família em Portugal e no Brasil. Mais que simples decoração mural em rivalidade com o pano-de-rás, o azulejo mourisco representou na vida doméstica do português e na do seu descendente brasileiro dos tempos coloniais a sobrevivência daquele gosto pelo asseio, pela limpeza, pela claridade, pela água, daquele quase instinto ou senso de higiene tropical, tão vivo no mouro. Senso ou instinto de que Portugal, reeuropeizando-se sob as sombras da reconquista cristã, infelizmente perdeu grande parte. O azulejo quase se transformou, para os cristãos, em tapete decorativo de que o hagiológio tirou o melhor partido na decoração piedosa das capelas, dos claustros e das residências. Guardou, porém, pela própria natureza do seu material, as qualidades higiênicas, caracteristicamente árabes e mouriscas, de frescura, lustro fácil e limpeza.”

 

 

“O contraste da higiene verdadeiramente felina dos maometanos com a imundície dos cristãos, seus vencedores, é traço que aqui se impõe destacar. Conde, em sua história do domínio árabe na Espanha, tantas vezes citada por Buckle, retrata os cristãos peninsulares, isto é, os intransigentes, dos séculos VIII e IX, como indivíduos que nunca tomavam banho, nem lavavam a roupa, nem a tiravam do corpo senão podre, largando os pedaços. O horror à água, o desleixo pela higiene do corpo e do vestuário permanecem entre os portugueses. Cremos poder afirmar que mais intenso nas zonas menos beneficiadas pela influência moura. (...) É verdade que Estanco Louro, em uma bem documentada monografia sobre o Alportel, freguesia rural do Sul, registra “flagrante desleixo pelo asseio” da parte do alportelense: “falta de higiene corpórea que na maior parte dos casos se limita a lavagem da cara aos domingos, de modo muito sumário”; “falta na vila de retretes públicas e de urinóis; no campo de retretes, junto dos montes”; “a permanência de pocilgas e de estrumeiras mesmo junto das casas de habitação e das cavalariças em comunicação com estas.” Mas salienta por outro lado certas noções de asseio entre os habitantes que vão até à obsessão. Noções porventura conservadas do mouro. “É o que se pode ver na lavagem frequente do solo da casa, na caiação constante de casas e muros; na infalível mudança da roupa da semana por outra muito limpa [...]”. Aliás com relação ao sul de Portugal deve-se tomar na devida conta a escassez de água que coloca o morador de seus povoados e campos em condições idênticas à do sertanejo do Brasil – outro que raramente toma banho, embora capriche na roupa escrupulosamente limpa e em outros hábitos de asseio pessoal e doméstico.”

 

 

“Impossível negar-se que ao imperialismo econômico da Espanha e de Portugal ligou-se, da maneira mais íntima, o religioso, da Igreja. A conquista de mercados, de terras e de escravos – a conquista de almas. Pode-se dizer que o entusiasmo religioso foi o primeiro a inflamar-se no Brasil diante de possibilidades só depois entrevistas pelo interesse econômico. Colônia fundada quase sem vontade, com um sobejo apenas de homens, estilhaços do bloco de gente nobre que só faltou ir inteira do reino para as Índias, o Brasil foi por algum tempo a Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nem prata. Somente pau-de-tinta e almas para Jesus Cristo.

Para a escravidão, saliente-se mais uma vez que não necessitava o português de nenhum estímulo. Nenhum europeu mais predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele. No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o português de ter manchado, com instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio e as circunstâncias exigiriam o escravo. A princípio o índio. Quando este, por incapaz e molengo, mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial – o negro. Sentiu o português com o seu grande senso colonizador, que para completar-lhe o esforço de fundar agricultura nos trópicos – só o negro. O operário africano. Mas o operário africano disciplinado na sua energia intermitente pelos rigores da escravidão.

Deixemo-nos de lirismo com relação ao índio. De opô-lo ao português como igual contra igual. Sua substituição pelo negro – mais uma vez acentuemos – não se deu pelos motivos de ordem moral que os indianófilos tanto se deliciam em alegar: sua altivez diante do colonizador luso em contraste com a passividade do negro. O índio, precisamente pela sua inferioridade de condições de cultura – a nômade, apenas tocada pelas primeiras e vagas tendências para a estabilização agrícola – é que falhou no trabalho sedentário. O africano executou-o com decidida vantagem sobre o índio principalmente por vir de condições de cultura superiores. Cultura já francamente agrícola. Não foi questão de altivez nem de passividade moral. (...)

Aliás, os negros, no Brasil, não foram assim tão passivos. Ao contrário: mais eficientes – por mais adiantados em cultura – na sua resistência à exploração dos senhores brancos que os índios. “Os negros lutaram”, escreve Astrojildo Pereira a propósito da tese de Oliveira Viana de não ter havido luta de classes no Brasil. Para A. Pereira houve entre nós “autêntica luta de classes que encheu séculos de nossa história e teve o seu episódio culminante de heroísmo e grandeza na organização da República dos Palmares, tendo à sua frente a figura épica de Zumbi, o nosso Spartacus negro”.”

 

 

“Todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.”

 

 

“Mas logo de início uma discriminação se impõe: entre a influência pura do negro (que nos é quase impossível isolar) e a do negro na condição de escravo. “Em primeiro lugar o mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro”, escreveu Joaquim Nabuco em 1881. Admiráveis palavras para terem sido escritas na mesma época em que Oliveira Martins sentenciava em páginas gravíssimas: “Há decerto, e abundam os documentos que nos mostram no negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do antropoide, e bem pouco digno do nome de homem”. (...)

Se há hábito que faça o monge é o do escravo; e o africano foi muitas vezes obrigado a despir sua camisola de malê para vir de tanga, nos negreiros imundos, da África para o Brasil. Para de tanga ou calça de estopa tornar-se carregador de tigre. A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.

Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado entre os povos negros da África, como entre os primitivos em geral é maior moderação do apetite sexual que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos negros africanos, que para excitar-se necessita de estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico. Orgias. Enquanto no civilizado o apetite sexual de ordinário se excita sem grandes provocações. Sem esforço. A ideia vulgar de que a raça negra é chegada, mais do que as outras, a excessos sexuais, atribui-a Ernest Crawley ao fato do temperamento expansivo dos negros e do caráter orgiástico de suas festas criarem a ilusão de desbragado erotismo. Fato que “indica justamente o contrário”, demonstrando a necessidade, entre eles, de “excitação artificial”. (...)

É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias. Joaquim Nabuco colheu em um manifesto escravocrata de fazendeiros as seguintes palavras, tão ricas de significação: “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador”.

Fora assim em Portugal, de onde a instituição se comunicou ao Brasil, já opulenta de vícios. “Os escravos mouros, e negros, além de outros trazidos de diversas regiões, aos quais se ministrava o batismo, não recebiam depois a mínima educação religiosa”, informa Alexandre Herculano. Entre esses escravos os senhores favoreciam a dissolução para “aumentarem o número de crias como quem promove o acréscimo de um rebanho.” Dentro de semelhante atmosfera moral, criada pelo interesse econômico dos senhores, como esperar que a escravidão – fosse o escravo mouro, negro, índio ou malaio – atuasse senão no sentido da dissolução, da libidinagem, da luxúria? O que se queria era que os ventres das mulheres gerassem. Que as negras produzissem moleques. (...)

Essa animalidade nos negros, essa falta de freio aos instintos, essa desbragada prostituição dentro de casa, animavam-na os senhores brancos. No interesse da procriação à grande, uns; para satisfazerem caprichos sensuais, outros. Não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a serviço do interesse econômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores. Não era a “raça inferior” a fonte de corrupção, mas o abuso de uma raça por outra. Abuso que implicava conformar-se a servil com os apetites da todo-poderosa. E esses apetites estimulados pelo ócio – pela “riqueza adquirida sem trabalho”, diz o referido Dr. Bernardino; pela “ociosidade” ou pela “preguiça”, diria Vilhena; por conseguinte, pela própria estrutura econômica do regime escravocrata. (...)

Nada nos autoriza a concluir ter sido o negro quem trouxe para o Brasil a pegajenta luxúria em que nos sentimos todos prender, mal atingida a adolescência. A precoce voluptuosidade, a fome de mulher que aos treze ou quatorze anos faz de todo brasileiro um don-juan não vem do contágio ou do sangue da “raça inferior” mas do sistema econômico e social da nossa formação; e um pouco, talvez, do clima; do ar mole, grosso, morno, que cedo nos parece predispor aos chamegos do amor e ao mesmo tempo nos afastar de todo esforço persistente. Impossível negar-se a ação do clima sobre a moral sexual das sociedades. Sem ser preponderante, dá entretanto para acentuar ou enfraquecer tendências; endurecer ou amolecer traços sociais. Tudo isso com repercussão sobre o seu comportamento social; sobre sua eficiência econômica; sobre sua moral sexual. Pode-se concluir, com Kelsey, que certos climas estimulam o homem a maiores esforços e consequentemente a maior produtividade; outros, o enlanguescem. Para admiti-lo não necessitamos de ir aos exageros de Huntington e dos outros fanáticos da “influência do clima”.

O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de sociedade que aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da história social e econômica. Da antropologia cultural. Daí ser impossível – insistamos neste ponto – separá-lo da condição degradante de escravos, dentro da qual abafaram-se nele muitas das suas melhores tendências criadoras e normais para acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas. Tornou-se, assim, o africano um decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por “inferioridade de raça”, gritam então os sociólogos arianistas. Mas contra seus gritos se levantam as evidências históricas – as circunstâncias de cultura e principalmente econômicas – dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil. O negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema articulado por outros.

Nas condições econômicas e sociais favoráveis ao masoquismo e ao sadismo criadas pela colonização portuguesa – colonização, a princípio, de homens quase sem mulher – e no sistema escravocrata de organização agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores todo-poderosos e em escravos passivos é que se devem procurar as causas principais do abuso de negros por brancos, através de formas sadistas de amor que tanto se acentuaram entre nós; e em geral atribuídas à luxúria africana.”

 

 

“A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. O sangue envenenado rebentava em feridas. Coçavam-se então as perebas ou “cabidelas”, tomavam-se garrafadas, chupava-se caju. A sifilização do Brasil – admitida sua origem extra-americana – data dos princípios do século XVI. Mas no ambiente voluptuoso das casas-grandes, cheias de crias, negrinhas, molecas, mucamas, é que as doenças venéreas se propagaram mais à vontade, através da prostituição doméstica – sempre menos higiênica que a dos bordéis.

Em princípios do século XVIII já o Brasil é assinalado em livros estrangeiros como terra da sífilis por excelência. Segundo John Barrow, viajante inglês que no século XVIII andou pelo Brasil, pela ilha de Java e pela Cochinchina, até nos mosteiros o mal-gálico causava devastações.”