terça-feira, 14 de março de 2017

A Sabedoria dos Antigos – Francis Bacon

Editora: Unesp
ISBN: 978-85-7139-396-7
Tradução: Gilson César Cardoso de Souza
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 100
Sinopse: O nome do filósofo inglês Francis Bacon é normalmente associado às origens do método científico, às teses empiristas e à crença na capacidade da ciência de controlar o mundo, crença espelhada pelo conhecido lema “saber é poder”. Neste livro, escrito em 1609, procura-se uma inusitada conexão entre o conhecimento e o aperfeiçoamento do homem. Trinta personagens do rico universo simbólico da mitologia grega, como Cupido e Ícaro, têm seu significado analisado por uma ótica que privilegia os ensinamentos morais e práticos que é possível retirar de cada um.

“Assim, se nas obras iniciais a função dos mitos era primordialmente pedagógica, e a possibilidade de um significado alegórico era problemática e subordinada, já no De Sapientia a função pedagógica representa apenas um argumento adicional a favor do significado alegórico. No Prefácio dessa obra, Bacon diz que as falhas que possam existir na interpretação desse significado só podem ser atribuídas à ignorância dos intérpretes.” (Raul Fiker)


“Os tempos mais recuados (exceto os fatos que lermos nas escrituras sagradas) estão envoltos em silêncio e esquecimento. Ao silêncio da Antiguidade seguiram-se as fábulas dos poetas; é às fábulas, os escritos que possuímos. Assim, entre os recessos da Antiguidade e a memória e evidência dos séculos que se seguiram, desceu como que um véu de lendas, o qual se interpôs entre o que pereceu e o que subsistiu. Temo que, na opinião de muitos, esteja me divertindo com um jogo, usando, para usurpar as fábulas, da mesma licença a que os poetas recorreram para inventá-las. E é bem verdade que, se pudesse aliviar a aridez de meus estudos com a prática de semelhantes amenidades, para gáudio próprio ou alheio, eu o faria. Não ignoro quão flexível é a matéria da fábula, quão maleável — e que, com um pouco de engenho e garrulice, se lhe pode atribuir plausivelmente o que nunca pretenderam dizer. Não me esqueço também de que muito se abusou dessas coisas; com efeito, para dar foros de venerável antiguidade a suas próprias invenções e doutrinas, homens houve que distorceram as fábulas dos poetas em seu favor. Essa vaidade não é nova nem rara, mas antiga e frequente.”


“Mas a consideração que mais peso tem para mim é que poucas dessas fábulas, tais quais as encaro, foram realmente inventadas pelos bardos que as recitaram e celebrizaram — Homero, Hesíodo e os outros. Houvessem elas sido fruto daqueles tempos e daqueles autores, por cujo intermédio chegaram até nós, eu não me daria o trabalho de esmiuçar grandeza ou majestade em semelhantes fontes. Todavia, a um escrutínio atento, percebemos que foram divulgadas não como invenções inéditas, mas como histórias cridas e consabidas. E, uma vez que são contadas de diferentes maneiras por escritores quase contemporâneos, percebe-se com facilidade que aquilo que todas as versões têm em comum veio de fonte antiga, enquanto as partes divergentes são acréscimos introduzidos por vários autores com a finalidade de embelezar. Essa circunstância, a meu ver, valoriza-as ainda mais, dado que então não podem ser consideradas nem invenções, nem fruto da época dos próprios poetas, mas relíquias sagradas e brisas de tempos melhores — recolhidas das tradições de países mais antigos e sopradas pelas flautas e trompas dos gregos.”


“As fábulas têm-se prestado a dois usos diferentes e, o que é estranho, a propósitos contrários: elas iludem e escamoteiam, mas ao mesmo tempo esclarecem e ilustram.”


Ciclopes, ou ministros do terror
Narram [os poetas] que os Ciclopes, no começo, foram precipitados por Júpiter no Tártaro e condenados a cadeias eternas em razão de sua arrogância e brutalidade. Mais tarde, entretanto, Júpiter se deixou convencer pela Terra de que era seu interesse libertá-los e empregá-los na confecção dos raios que vibrava. E ele o fez. Os Ciclopes, com laboriosa indústria e ameaçador estrépito, empenharam-se assiduamente na fabricação de raios e outros instrumentos de terror. No curso do tempo, sucedeu que Júpiter se enfurecesse com Esculápio, filho de Apolo, que levantara um homem dos mortos por virtude de sua medicina. Mas como aquele feito fora piedoso e se tornara célebre, sem dar causa a indignação, ele calou sua ira e às ocultas instigou os Ciclopes contra Esculápio. E os Ciclopes facilmente o eliminaram com seus raios. Em vingança disso, Apolo (Júpiter não o proibiu) exterminou-os a flechadas.
Essa fábula parece referir-se às ações dos reis. De início, eles punem e exoneram ministros cruéis, facinorosos e cúpidos. Mas depois, a instâncias da Terra (isto é, de um conselho ignóbil e sem honra), cedem a considerações utilitárias e reconvocam-nos quando precisam de severidade de execução ou implacabilidade de exação. E os ministros, perversos por natureza e exasperados com sua sorte anterior, sabendo muito bem para que foram reconduzidos, esmeram-se nessa espécie de ofício com maravilhosa diligência. Mas, por não tomarem as devidas cautelas e ávidos de locupletar-se, mais cedo ou mais tarde (tomando um aceno ou uma palavra ambígua do rei como garantia) perpetram um ato odioso e impopular. Então o rei, não querendo arcar com as consequências desse ato e ciente de que, a qualquer tempo, poderá contar com quantos de tais instrumentos queira, expele-os e entrega-os ao braço da lei, à vingança dos parentes e amigos das vítimas, e ao ódio popular. Assim, diante do aplauso do povo e das bênçãos efusivas do monarca, encontram, finalmente, posto que tarde, o destino que merecem.


Estige, ou tratados
É tradição comum, inserida em inúmeras fábulas, a história de um juramento pelos quais os deuses se prendem quando não desejam abrir espaço ao arrependimento. Invocavam não uma majestade celeste ou atributo divino, mas o Estige — rio das regiões infernais que, com suas sinuosidades, cercava o palácio de Dite. Somente essa fórmula sacramental, e nenhuma outra, era tida por segura e inviolável. O castigo da infração — o perjuro seria excluído, por algum tempo, dos banquetes dos deuses — era o que estes mais temiam.
Parece que a fábula foi inventada em alusão aos tratados e à fé dos príncipes. É por demais sabido que, independentemente da solenidade e santidade do juramento feito, eles não se prendem a ele. Costumam mesmo levar em conta muito mais a reputação, a glória e a pompa do que a confiança, a segurança e a eficácia. E até os vínculos de afinidade, que são os Sacramentos da Natureza, e os serviços mútuos prestados não raro se mostram inermes ante a ambição, o interesse e a licença do poder. É que os príncipes podem sempre excogitar pretextos plausíveis, eles, que não se submetem a nenhum arbítrio, para justificar e mascarar sua cupidez e dolo. Adotou-se então um único e universal penhor de fé — e não foi uma divindade celeste, mas a Necessidade, deus supremo dos poderosos, e a segurança do Estado, e a comunhão de interesses. A Necessidade é garbosamente representada pela figura do Estige, rio fatídico do qual não se retorna. É a divindade que o ateniense Ifícrates invocava em testemunho dos tratados. Ora, como falava às claras o que muitos pensam, mas guardam para si, vale a pena citar-lhe as palavras. Vendo que os lacedemônios ruminavam e propunham toda sorte de cautelas, sanções e garantias para consolidar o pacto, aparteou: “Uma só garantia há entre nós, um só compromisso: provai que pusestes tanto em nossas mãos que não podereis prejudicar-nos ainda que o quiserdes”. De fato, quando os meios de lesar são removidos ou quando uma ruptura de tratado poria em risco a existência e a integridade do Estado e dos recursos, o pacto pode ser considerado ratificado, sancionado e confirmado como que pelo juramento do Estige: há então perigo de ser-se expelido dos banquetes dos deuses. Com esse nome os antigos significavam os direitos, prerrogativas, riqueza e felicidade do Estado.


“Pela natureza das coisas, toda criatura viva foi dotada com certo medo ou precaução, cuja finalidade é preservar sua vida e essência, evitando e repelindo os males que se acercam. Mas essa mesma natureza não sabe guardar as medidas e, juntamente com os medos salutares, mistura sempre temores vãos e sem causa. Assim, se se pudesse ver no âmago das coisas, todas elas se mostrariam repletas de terrores pânicos – as humanas mais que as outras, infinitamente agitadas e perturbadas pela superstição, que nada mais é que um terror pânico, sobretudo em tempos de penúria, ansiedade e vicissitude.”


Acteão e Penteu
A curiosidade e o apetite malsão do homem pela descoberta de segredos foram recriminados pelos antigos em dois exemplos: o de Acteão e o de Penteu. O primeiro, surpreendendo sem querer e por acaso Diana nua, transformou-se em cervo e acabou despedaçado por seus próprios cães. Penteu, que subiu a uma árvore para deslindar os mistérios de Baco, foi ferido de loucura. Eis a forma dessa enfermidade: pensava que tudo era duplo; via dois sóis e duas cidades de Tebas, de sorte que, quando se dirigia para lá, avistava outra às suas costas e voltava. Ia e vinha continuamente, sem repouso.


“Sendo manifesto o desgosto dos poderosos, raramente um homem deixa de ser traído pelos seus.”


“As doçuras do casamento e os cuidados dos filhos geralmente afastam os homens dos grandes e excelsos feitos em prol do Estado: eles se contentam com a imortalidade da raça e dispensam a imortalidade das obras.”


Memnão
Memnão, segundo os poetas, era filho da Aurora. Insigne pela beleza das armas e grande pela nomeada, partiu para a guerra de Tróia. Velocíssimo e corajoso no mais alto grau, enfrentou Aquiles, o mais forte dos gregos, em combate singular e tombou às suas mãos. Apiedado da sorte de Memnão, Júpiter enviou pássaros para gemerem seu funeral com gritos lúgubres e lamentosos. Conta-se mesmo que sua estátua, tocada pelos raios do sol nascente, emitia sons plangentes.
A fábula parece aplicar-se às mortes desafortunadas de jovens promissores. Pois é como se fossem filhos da manhã que, aquinhoados de méritos vãos e exteriores, lançam-se a aventuras além de suas forças, provocam e chamam ao combate heróis esforçadíssimos, tombam na luta desigual e se extinguem. A essas mortes segue-se infinita comiseração, já que de todos os acidentes fatais nenhum há mais lamentável, nenhum tão digno de misericórdia quanto a colheita da flor da virtude antes do tempo. Tão curta é a vida desses jovens que não dá azo à saciedade ou à inveja, as quais mitigariam a dor de seu trespasse e temperariam a compaixão. Não apenas os prantos e as lamentações revoam à roda da pira funerária quais pássaros lutuosos, como essa dor persiste muito depois de seu passamento — sobretudo quando, sobrevindo incidentes novos, novos movimentos e novos começos, a saudade renasce e se agita, como que tocada pelos raios do sol levante.


Titono
Formosa fábula, a que se conta de Titono. Estando por ele apaixonada, a Aurora, desejosa de lhe gozar para sempre a companhia, implorou a Júpiter que seu amado jamais morresse. Mas, em seu açodamento de mulher, esqueceu-se de acrescentar à súplica que ele também não padecesse as agruras da idade. De modo que Titono se viu livre da condição mortal. Sobreveio-lhe, porém, uma velhice estranha e miserável, como a que toca àqueles a quem a morte foi negada e que carregam um fardo de anos cada vez mais pesado. Então Júpiter, condoído, transformou-o finalmente em cigarra.


Pretendente de Juno, ou desonra
Contam os poetas que Júpiter, à cata de amores, assumia inúmeras formas diferentes: boi, águia, cisne, chuva de ouro. No entanto, quando cortejou Juno, transformou-se na figura mais ignóbil possível, objeto de desdém e ridículo, a de um mísero cuco saído da tempestade, espantado, trêmulo e semimorto.
Eis aí uma fábula perspicaz, derivada das profundezas da ciência moral. O significado é que os homens não devem cuidar que a ostentação de virtudes e méritos lhes acarretará a estima e o favor de todos, pois isso depende da natureza e caráter daqueles a quem se dirigem. Sendo estas pessoas desapercebidas e sem ornato próprio, dotadas apenas de orgulho e disposição maliciosa (tipo simbolizado por Juno), devem reconhecer que o melhor será despojar-se de tudo quanto alardeie honra ou dignidade, já que seria loucura proceder de outro modo. Não lhes basta descer à vilania e à bajulação, é preciso passarem exteriormente por abjetos e degenerados.


Aqueló
Os antigos contam que, quando Hércules e Aqueló disputavam a mão de Djanira, resolveram decidir a questão por uma luta. Aqueló começou tentando toda uma variedade de formas, o que lhe era permitido, e por fim se apresentou a Hércules sob o aspecto de um touro selvagem e furioso, já aprestado para o combate. Hércules, por seu turno, manteve a figura humana e correu contra ele. Seguiu-se uma luta encarniçada, cujo desfecho foi Hércules arrancar um dos chifres do touro. Este, grandemente ferido e aterrado, ofereceu em troca do seu o chifre de Amaltéia, ou Abundância.
A fábula alude às expedições militares. A preparação para a guerra, da parte dos defensores (representados por Aqueló), é vária e multiforme. Já o aspecto assumido pelos invasores é um só, consistente apenas num exército ou às vezes numa frota. O país prestes a receber o inimigo em seu próprio território começa a trabalhar de várias maneiras: fortifica uma cidade, desmantela outra, acolhe a gente do campo e das aldeias dentro de seus muros, acastela burgos, constrói uma ponte aqui, derruba outra acolá, reúne e distribui tropas e provisões; preocupa-se com rios, portos, gargantas de montanha, florestas e muitas outras coisas. Pode-se dizer que assume uma nova forma a cada dia; e, estando já inteiramente preparado, exibe ao mundo a ameaçadora catadura de um touro belicoso. Enquanto isso, o inimigo anseia pelo combate e só dele se ocupa, temendo ficar sem suprimentos em terra inimiga. E se acaso vence a batalha — se, por assim dizer, quebra o chifre do adversário —, este, desencorajado e humilhado, precisa recuar para suas posições fortificadas a fim de recobrar forças, deixando à sanha do invasor suas cidades e campos. Ora, isso é como entregar-lhe o chifre de Amaltéia.


Dioniso
Narram [os poetas] que Sêmele, amante de Júpiter, fê-lo proferir o juramento inviolável de satisfazer-lhe um desejo, qualquer que fosse. Pediu então que ele a possuísse sob a mesma forma com que possuía Juno. A consequência foi que a jovem pereceu incinerada em seu abraço. A criança que trazia no ventre foi recolhida pelo pai e costurada em sua coxa, até cumprir-se o tempo da gestação. O peso obrigava Júpiter a manquejar; e a criança, por causar-lhe dor, recebeu o nome de Dioniso. Depois de nascer, foi enviada a Prosérpina, que dela cuidou por alguns anos; mas, quando cresceu, seu rosto se parecia tanto com o de uma mulher que era difícil saber de qual sexo era. Além disso, morreu e ficou sepultado por certo tempo, para logo voltar à vida. Em sua primeira juventude, Dioniso descobriu e disseminou a cultura da vinha, bem como a composição e o uso do vinho, até então desconhecido. Já famoso e ilustre, subjugou o mundo inteiro e avançou até os limites extremos da Índia. Era conduzido num carro puxado por tigres, tendo à volta uns demônios deformados e saltitantes chamados Cóbalos, Ácrato e outros. Também as Musas se uniram a ele. Tomou para esposa Ariadne, a quem Teseu traíra e abandonara. Tinha por árvore sagrada a hera. Creditam-lhe ainda a invenção e instituição de cerimônias e ritos sagrados, que eram, no entanto, fanáticos e corruptos, além de crudelíssimos. Detinha o poder de excitar o frenesi. Pelo menos dois varões ilustres, Penteu e Orfeu, sucumbiram às mãos de mulheres enlouquecidas em suas orgias, que os fizeram em pedaços — o primeiro por ter subido a uma árvore a fim de espiá-las, o segundo enquanto tangia a lira. Muitas das ações desse deus confundem-se com as de Júpiter.
Sob os traços de Baco descreve-se a natureza do Desejo, ou paixão e perturbação. Com efeito, a mãe de todos os desejos, ainda os mais perniciosos, outra não é que o apetite e o anseio por bens aparentes; sua concepção se dá sempre por uma promessa ilícita, feita antes de ser medida e ponderada. Mas quando a paixão se aquece, a mãe (isto é, a natureza do bem), incapaz de suportar-lhe o calor, é devorada pelas chamas. A própria paixão, de início, permanece na alma humana (que é seu pai, representado por Júpiter), sobretudo na parte baixa, qual se fora na coxa, sendo ali nutrida e ocultada. A tal ponto punge, incomoda e deprime a alma que suas resoluções e ações como que claudicam. E mesmo depois que cresce e se transforma em atos, por indulgência e costume, fica durante algum tempo aos cuidados de Prosérpina — ou seja, busca locais secretos e mantém-se oculta como sob a terra. Mas então, rompendo todos os entraves do pudor e do medo, faz-se ousada e assume ou a máscara de alguma virtude ou, insolentemente, a própria infâmia. Com verdade se diz que toda paixão inflamada é de sexo duvidoso, pois tem ao mesmo tempo a força do homem e a fraqueza da mulher. Diz-se também com igual verdade que Baco voltou à vida depois de morrer: as paixões parecem às vezes adormecidas e extintas, mas delas não se pode fiar ainda que hajam sido sepultadas porque, fornecidos o pretexto e a ocasião, ressurgem.
Formosa parábola, a da invenção do vinho. De fato, as paixões descobrem seus próprios estimulantes com muita sagacidade e engenho. E nada do que conhecemos é tão vigoroso e eficiente quanto o vinho para excitar perturbações de todo tipo, das quais é como que o combustível comum. Com idêntica finura se representou a Paixão como subjugadora de províncias e empreendedora de conquistas sem fim. Ela jamais se contenta com o que possui, mas vai adiante com insaciável apetite, à cata de novos triunfos. Tigres são mantidos em suas cocheiras e recebem o jugo de seu carro – pois logo que a Paixão deixa de avançar a pé para deixar-se conduzir por rodas, celebrando sua vitória sobre a razão, passa a mostrar-se cruel, selvagem e impiedosa para com tudo o que lhe barra o caminho. Jocosamente foram colocados aqueles demônios ridículos a dançar à volta do carro: com efeito, toda paixão produz nos olhos, na boca e no corpo movimentos indecorosos, incontidos e disformes. Quando um homem, sob a influência da paixão — cólera, petulância, amor etc. —, parece grande e imponente a seus próprios olhos, aos olhos dos outros parece desagradável e ridículo. Convém igualmente que as Musas integrem o cortejo, pois quase não há paixão que não encontre uma doutrina para incensá-la. Assim a majestade das Musas se rebaixa graças à leviandade do engenho humano, transformando aqueles que deveriam ser os guias da vida em meros seguidores de suas paixões.
Nobre é a parte da alegoria que representa Baco consagrando o seu amor a uma mulher abandonada por outro homem. Verdadeiramente, a paixão busca e apetece aquilo que a experiência rejeitou. E saibam todos quantos, no afã da busca e da indulgência, estão prontos a pagar qualquer preço pelo gozo de seus afetos, que independentemente do objeto pretendido — honra, fortuna, amor, glória ou sabedoria—, cortejarão coisas rejeitadas, coisas que muitos homens experimentaram e, após a experiência, deitaram fora com desgosto.
Tem também seu mistério a consagração da hera a Baco. Essa planta apresenta, com efeito, duas propriedades: floresce no inverno e sobe espalhando-se pelas coisas – árvores, paredes, edifícios. Quanto à primeira, toda paixão desabrocha e ganha forças ante a proibição e a resistência (como por uma espécie de antiperístase), tal qual se dá com a hera ante o frio do inverno. Quanto à segunda, a paixão dominante espraia-se por sobre todos os atos e resoluções humanas, insinuando-se neles e com eles se mesclando. E não causa espanto que os ritos supersticiosos sejam atribuídos a Baco, já que todo afeto insano cresce nas religiões depravadas, nem que o frenesi seja por ele despertado, porquanto toda paixão é em si mesma uma loucura breve — e, quando veemente e obstinada, termina em desfaçatez. O dilaceramento de Penteu e Orfeu apresenta um evidente significado alegórico: a bisbilhotice e a advertência salutar são, ambas, odiosas e intoleráveis a uma paixão obstinada.
Finalmente, a confusão das pessoas de Baco e Júpiter pode ser entendida como uma parábola. Os feitos de rara distinção e mérito procedem às vezes da virtude, da razão clara e da magnanimidade, outras (embora possam ser celebradas e aplaudidas), de alguma paixão latente ou desejo oculto. Por isso, as proezas de Baco não se distinguem facilmente das de Júpiter.


Esfinge
Segundo a história, a Esfinge era um monstro que combinava diversas formas em uma só. Tinha voz e rosto de donzela, asas de pássaro e unhas de grifo. Postava-se no cume de uma montanha perto de Tebas e assolava os caminhos, espreitando os viandantes a quem assaltava e dominava de súbito. E após dominá-los, propunha-lhes enigmas obscuros e embaraçosos, que teria aprendido das Musas. Se os míseros cativos não conseguissem solucioná-los e interpretá-los sem demora, e hesitassem confusos, ela os despedaçava cruelmente. Como o tempo não suavizava a calamidade, os tebanos prometeram a quem resolvesse os enigmas da Esfinge (pois esse era o único meio de derrotá-la) a soberania de Tebas. O valor do prêmio induziu Édipo, homem de saber e penetração, mas coxo, a aceitar o desafio. Apresentou-se, pois, cheio de confiança e coragem diante da Esfinge; e, indagando ela qual era o animal que nascia com quatro pés, andava depois com dois, em seguida com três e, finalmente, outra vez com quatro, respondeu que era o homem — o qual, ao nascimento e na primeira infância, engatinha, tentando erguer-se; logo depois, consegue caminhar com os dois pés; na velhice, arrima-se a um bordão e, na extrema decrepitude, já sem força nos nervos, volta a ser quadrúpede e guarda o leito. Era a resposta certa e lhe deu a vitória. Édipo matou a Esfinge, colocou-a no lombo de um burro e levou-a em triunfo. Segundo o pacto, foi então feito rei de Tebas.

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