sábado, 18 de março de 2017

Ortodoxia (Parte I) – G. K. Chesterton

Editora: Mundo cristão
ISBN: 978-85-7325-505-8
Tradução: Almiro Pisetta
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 264
Sinopse: Numa época em que a Europa dava os primeiros passos para tornar-se uma sociedade pós-cristã, um intelectual de grosso calibre, cansado do cinismo reinante e do fascínio despertado por novas ideias, resgata o núcleo da fé cristã como arcabouço suficiente para dar sentido à existência humana.
Ao contar sua jornada espiritual, G. K. Chesterton faz saber à intelligentsia europeia da primeira metade do século XX que o socialismo, o relativismo, o materialismo e o ceticismo estavam longe de responder às questões existenciais mais profundas. E quando questionado sobre as aparentes contradições da fé cristã, Chesterton era um mestre em valer-se do paradoxo para apresentar a simplicidade do senso comum.
Seu jeito despojado, seu estilo incisivo e a facilidade de rir de si mesmo tornaram célebres seus debates com intelectuais da época, como George Bernard Shaw, H.G. Wells, Bertrand Russell e Clarence Darrow.
Dono de uma pena arguta, sutil e envolvente, Gilbert Keith Chesterton deixou marcas inesquecíveis em mestres da literatura como Hemingway, Borges, García Márquez e T. S. Eliot. Como se não bastasse, seus textos influenciaram decisivamente líderes de movimentos de libertação como Michael Collins (Irlanda), Mahatma Gandhi (Índia) e Martin Luther King (Estados Unidos).
Cem anos depois, Ortodoxia é um clássico da literatura que merece (e deve) ser revisitado.

“Quem quer que se disponha a discutir o que quer que seja deveria sempre começar dizendo o que não está em discussão. Além de declarar o que se quer provar é preciso declarar o que não se quer provar.”


“Eu sou o homem que com a máxima ousadia descobriu o que já fora descoberto antes.”


“Tentei fundar uma heresia só minha; e quando lhe dei o último acabamento descobri que era a ortodoxia.”


“Pessoas completamente mundanas nunca entendem sequer o mundo; elas confiam plenamente numas poucas máximas cínicas não verdadeiras. Lembro-me de que, certa vez, fiz um passeio com um editor de sucesso, e ele fez uma observação que eu ouvira muitas vezes antes; é, na verdade, quase um lema do mundo moderno. Todavia, eu ouvi essa máxima cínica mais uma vez e não me contive: de repente vi que ela não dizia nada. Referindo-se a alguém, disse o editor: “Aquele homem vai progredir; ele acredita em si mesmo”.
Lembro-me de que, quando levantei a cabeça para escutar, meus olhos se fixaram num ônibus no qual estava escrito “Hanwell”1. Disse-lhe eu então: “Quer saber onde ficam os homens que acreditam em si mesmos? Eu sei. Sei de homens que acreditam em si mesmos com uma confiança mais colossal do que a de Napoleão ou César. Sei onde arde a estrela fixa da certeza e do sucesso. Posso conduzi-lo aos tronos dos super-homens. Os homens que realmente acreditam em si mesmos estão todos em asilos de lunáticos”.
Ele disse calmamente que, no fim das contas, havia um bom número de homens que acreditavam em si mesmos e que não eram lunáticos internados em asilos. “Sim, certamente”, retruquei, “e você mais do que ninguém deve conhecê-los. Aquele poeta bêbado de quem você não quis aceitar uma lamentável tragédia, ele acreditava em si mesmo. Aquele velho ministro com um poema épico de quem você se escondia num quarto dos fundos, ele acreditava em si mesmo. Se você consultasse sua experiência profissional em vez de sua horrível filosofia individualista, saberia que acreditar em si mesmo é uma das marcas mais comuns de um patife. Atores que não sabem representar acreditam em si mesmos; e os devedores que não vão pagar. Seria muito mais verdadeiro dizer que um homem certamente fracassará por acreditar em si mesmo. Total autoconfiança não é simplesmente um pecado; total autoconfiança é uma fraqueza. Acreditar absolutamente em si mesmo é uma crença tão histérica e supersticiosa como acreditar em Joanna Southcote2: quem o faz traz o nome ‘Hanwell’ escrito no rosto com a mesma clareza com que ele está escrito naquele ônibus”.
A tudo isso meu amigo editor deu esta profunda e eficaz resposta: “Bem, se um homem não acredita em si mesmo, em que vai acreditar?”. Depois de uma longa pausa eu respondi: “Vou para casa escrever um livro em resposta a essa pergunta”. Este é o livro que escrevi para responder-lhe.”
1: Nome de um asilo para loucos.
2: Joanna Southcote (1750-1814) se dizia virgem e grávida do novo Messias, e chegou a ter muitos seguidores.


“É por isso também que os novos romances desaparecem tão rapidamente, ao passo que os velhos contos de fada duram para sempre. Os velhos contos de fada fazem do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são surpreendentes. Elas o surpreendem porque ele é normal. Mas no romance psicológico moderno o herói é anormal; o centro não é central. Consequentemente, as mais loucas aventuras não conseguem afetá-lo de forma adequada, e o livro é monótono. Pode-se criar uma história a partir de um herói entre dragões, mas não a partir de um dragão entre dragões. O conto de fadas discute o que o homem sensato fará num mundo de loucura. O romance realista sóbrio de hoje discute o que um completo lunático fará num mundo sem graça.”


“A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem; mas os jogadores de xadrez sim. Os matemáticos enlouquecem, e os caixas; mas isso raramente acontece com artistas criadores. Como se verá, não estou aqui, em nenhum sentido, atacando a lógica: só afirmo que esse perigo está na lógica, não na imaginação.
A poesia mantém a sanidade porque flutua facilmente num mar infinito; a razão procura atravessar o mar infinito, e assim torná-lo finito.
Aceitar tudo é um exercício, entender tudo é uma tensão. O poeta apenas deseja a exaltação e a expansão, um mundo em que ele possa se expandir. O poeta apenas pede para pôr a cabeça nos céus. O lógico é que procura pôr os céus dentro de sua cabeça. E é a cabeça que se estilhaça.”


“O homem feliz é que faz coisas inúteis; o homem doente não dispõe de força suficiente para ficar sem fazer nada. São exatamente essas ações despreocupadas e sem causa que o louco jamais saberia entender; pois o louco (como o determinista) em geral vê causa demais em tudo. Se o louco pudesse, por exemplo, ficar despreocupado, ele ficaria são. Todos os que tiveram a infelicidade de conversar com gente à beira ou no meio da desordem mental sabem que a qualidade mais sinistra dessa gente é uma clareza enorme de detalhes; a conexão de uma coisa a outra num mapa mais elaborado que um labirinto.
Se você discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora. O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo exceto a razão.”


“Os cristãos admitem que o universo é complexo e até misturado, exatamente da mesma forma que um homem sadio sabe que é complexo. O homem sadio sabe que nele há um vestígio da fera, um vestígio do demônio, um vestígio do santo, um vestígio do cidadão. Mais que isso, o homem realmente sadio sabe que nele há um vestígio do louco. Mas o mundo do materialista é totalmente simples e sólido, exatamente como o louco tem plena certeza de que ele é sadio. O materialista tem certeza de que a história tem sido simples e unicamente uma cadeia de causação, exatamente como a pessoa interessante mencionada acima tem plena certeza de que é simples e unicamente uma galinha. Os materialistas e os loucos nunca têm dúvidas.
As doutrinas espirituais na verdade não limitam a mente como fazem as negações materialistas. Mesmo acreditando na imortalidade, eu não preciso pensar nela. Mas se a desacredito, nela não devo pensar. No primeiro caso, a estrada está aberta e posso ir adiante até onde quiser; no segundo caso, a estrada está fechada. Mas o argumento é ainda mais forte, e o paralelo com a loucura é ainda mais estranho. Pois o nosso argumento contra a teoria lógica e exaustiva do lunático foi que, certa ou errada, ela aos poucos destruía sua humanidade.
Agora a acusação contra as principais deduções do materialista é que, certas ou erradas, elas aos poucos destroem a sua humanidade. Não estou me referindo apenas à bondade; estou me referindo a esperança, coragem, poesia, iniciativa, tudo o que é humano. Por exemplo, quando o materialismo leva os homens a um fatalismo completo (como em geral acontece), é totalmente inútil fingir que ele, nalgum sentido, é uma força libertadora. É absurdo dizer que se está promovendo especialmente a liberdade quando só se usa o livre-pensar para destruir o livre-arbítrio. Os deterministas vieram para amarrar, não para soltar. Podem muito bem chamar sua lei de “corrente” de causação. É a pior corrente que já prendeu um ser humano.”


“Mas por enquanto é possível da mesma maneira unicamente prática dar uma resposta geral sobre o que na história da humanidade concreta mantém a sanidade humana. Enquanto se tem um mistério se tem saúde; quando se destrói o mistério se cria a morbidez. O homem comum sempre foi sadio porque o homem comum sempre foi um místico. Ele aceitou a penumbra. Ele sempre teve um pé na terra e outro num país encantado. Ele sempre se manteve livre para duvidar de seus deuses; mas, ao contrário do agnóstico de hoje, livre também para acreditar neles. Ele sempre cuidou mais da verdade do que da coerência. Se via duas verdades que pareciam contradizer-se, ele tomava as duas juntamente com a contradição. Sua visão espiritual é estereoscópica, como a visão física: ele vê duas imagens simultâneas diferentes e, contudo, enxerga muito melhor por isso mesmo.
Assim, ele sempre acreditou que existia isso que se chama de destino, mas também isso que se chama de livre-arbítrio. Assim, ele acreditava que as crianças eram de fato o reino do céu, mas, apesar disso, deviam obedecer ao reino da terra. Ele admirava a juventude por ela ser jovem e a velhice por não o ser. É exatamente esse equilíbrio de aparentes contradições que tem sido a causa de toda a vivacidade do homem sadio. Todo o segredo do misticismo é este: que o homem pode compreender tudo com a ajuda daquilo que não compreende. O lógico mórbido procura tornar tudo lúcido e consegue tornar tudo misterioso. O místico permite que uma coisa seja mística, e todo o resto se torna lúcido.”


“Somente os símbolos têm valor, embora obnubilado, quando se fala dessa questão profunda. E outro símbolo da natureza física expressa bastante bem o lugar real do misticismo perante a humanidade. A única coisa criada para a qual não podemos olhar é a única coisa em cuja luz olhamos para tudo. (Como o sol ao meio-dia, o misticismo explica todas as outras coisas por meio da luz ofuscante de sua vitoriosa invisibilidade.) O intelectualismo independente é (no sentido exato da frase popular) só brilho de lua; pois é luz sem calor, e é luz secundária, refletida por um mundo morto.”


“Com frequência se diz que os sábios não conseguem ver nenhuma resposta para o enigma da religião. Mas o problema dos nossos sábios não é que eles não consigam ver a resposta; é que eles não conseguem sequer ver o enigma.”


“Cada ato de vontade é um ato de autolimitação. Desejar uma ação é desejar uma limitação. Nesse sentido todas as ações são ações de sacrifício de si mesmo. Quando você escolhe uma coisa qualquer, você rejeita tudo o mais.”


“No momento em que se entra no mundo dos fatos, entra-se no mundo dos limites. Pode-se libertar as coisas de leis externas ou acidentais, mas não das leis da sua própria natureza. Você pode, se quiser, libertar um tigre da jaula; mas não pode libertá-lo de suas listras. Não liberte o camelo do fardo de sua corcova: você o estaria libertando de ser um camelo. Não saia por aí feito um demagogo, estimulando triângulos a libertar-se da prisão de seus três lados. Se um triângulo se libertar de seus três lados, sua vida chega a um desfecho lamentável.”


“A Revolução Francesa foi realmente um fato heroico e decisivo, porque os jacobinos quiseram algo definido e limitado. Desejaram as liberdades da democracia, mas também todos os vetos democráticos. Desejaram ter votos e NÃO títulos.
O republicanismo teve um lado ascético em Franklin ou Robespierre bem como um lado expansivo em Danton e Wilkes. Por isso eles criaram algo com substância e forma sólidas, a igualdade social completa e a riqueza campesina da França. Mas desde aquele tempo a mente revolucionária ou especulativa da Europa se enfraqueceu pelo seu distanciamento de qualquer proposta por causa dos limites inerentes ao que se propunha. O liberalismo degradou-se em liberalidade. Os homens tentaram transformar o verbo “revolucionar” de transitivo em intransitivo. Os jacobinos não apenas sabiam dizer contra que sistema se rebelariam, mas também (o que é mais importante) contra que sistema NÃO se rebelariam, o sistema em que confiariam.
Mas o novo rebelde é um cético, e não confia inteiramente em nada. Não tem nenhuma lealdade; portanto, ele nunca poderá ser de verdade um revolucionário. E o fato de que ele duvida de tudo realmente o atrapalha quando quer fazer alguma denúncia. Pois toda denúncia implica alguma espécie de doutrina moral; e o revolucionário moderno duvida não apenas da instituição que denuncia, mas também da doutrina pela qual faz a denúncia. Assim, ele escreve um livro queixando-se de que a opressão imperialista insulta a pureza das mulheres; e depois escreve outro (sobre o problema do sexo) no qual ele mesmo a insulta. Ele amaldiçoa o sultão pela perda da virgindade de garotas cristãs; e depois amaldiçoa a sra. Grundy pela preservação dela. Como político, ele grita que toda guerra é um desperdício de vida; e depois, como filósofo, grita que toda vida é um desperdício de tempo.
Um pessimista russo denunciará um político por matar um camponês; e depois, pelos mais elevados princípios filosóficos, provará que o camponês deveria ter-se suicidado. Alguém denuncia o casamento como uma mentira; e depois denuncia os libertinos aristocráticos por tratarem essa mesma instituição como uma mentira. Alguém chama a bandeira de bugiganga; e depois acusa os opressores da Polônia ou da Irlanda de terem suprimido aquela bugiganga. O adepto dessa escola primeiro participa de uma reunião política, na qual se queixa de que os selvagens são tratados como se fossem animais; depois apanha o chapéu e o guarda-chuva e vai para uma reunião científica, na qual prova que eles são praticamente animais.
Em resumo, o revolucionário moderno, sendo um cético sem limites, está sempre ocupado em minar suas próprias minas. No seu livro sobre política ele ataca os homens por espezinharem a moralidade; no seu livro sobre ética ele ataca a moralidade por espezinhar os homens. Portanto, o homem moderno em estado de revolta tornou-se praticamente inútil para qualquer propósito da revolta. Rebelando-se contra tudo, ele perdeu o direito de rebelar-se contra qualquer coisa específica.”


“Aquele que não quer rejeitar nada, quer a destruição da vontade; pois a vontade não é apenas a escolha de alguma coisa, mas também a rejeição de quase tudo.”


“Joana d’Arc não ficou parada na encruzilhada, nem rejeitando todos os caminhos como Tolstoi, nem aceitando-os a todos como Nietzsche. Ela escolheu um caminho e o percorreu feito um raio. No entanto, pensando bem no caso dela, Joana tinha tudo o que era verdadeiro em Tolstoi ou em Nietzsche, tudo o que era até suportável nos dois.
Pensei em tudo o que é nobre em Tolstoi, o prazer nas coisas simples, especialmente na simples compaixão, as realidades da terra, a reverência pelos pobres, a dignidade das costas curvadas. Joana d’Arc tinha tudo aquilo e com grande vantagem: ela suportou a pobreza além de admirá-la; ao passo que Tolstoi é apenas um típico aristocrata tentando descobrir o segredo da pobreza. Depois pensei em tudo aquilo que foi corajoso, orgulhoso e patético no pobre Nietzsche, e na sua revolta contra o vazio e a timidez de nosso tempo. Pensei no seu grito pelo equilíbrio estático do perigo, seu apetite pela disparada de grandes cavalos, seu grito conclamando às armas.
Bem, Joana d’Arc tinha tudo aquilo, e mais uma vez com uma diferença: ela não elogiou a luta, mas lutou. SABEMOS que ela não temia um exército, enquanto Nietzsche, por tudo o que sabemos, tinha medo de uma vaca. Tolstoi elogiou os camponeses; ela foi a camponesa. Nietzsche apenas elogiou o guerreiro; ela foi a guerreira. Ela superou os dois nos seus ideais antagônicos: foi mais gentil que o primeiro; mais violenta que o segundo. No entanto, ela foi uma pessoa extremamente prática que realizou alguma coisa, enquanto eles são tresloucados especuladores que nada fazem.”


“O princípio da democracia, no meu modo de entendê-la, pode ser declarado em duas proposições.
A primeira é esta: as coisas comuns a todos os homens são mais importantes que as coisas peculiares a qualquer homem. As coisas ordinárias são mais valiosas que as extraordinárias; ou melhor, são mais extraordinárias. O homem é algo mais terrível que os homens; algo mais estranho. O senso do milagre da humanidade em si deveria ser para nós sempre mais intenso do que quaisquer maravilhas de poder, intelecto, arte ou civilização. O simples homem sobre duas pernas, como tal, deveria ser sentido como algo mais emocionante do que qualquer música e mais alarmante do que qualquer caricatura. A morte é trágica, até mais trágica do que a morte por inanição. Ter um nariz é cômico, até mais cômico do que ter um nariz normando.
Este é o primeiro princípio da democracia: as coisas essenciais nos homens são as coisas que eles têm em comum, não as que eles têm em separado. O segundo princípio é simplesmente este: o instinto ou desejo político é uma dessas coisas que eles têm em comum. Apaixonar-se por alguém é mais poético do que se apaixonar pela poesia.”


“Há uma coisa que nunca consegui entender desde a minha juventude. Nunca consegui entender onde as pessoas foram buscar a ideia de que a democracia de algum modo se opunha à tradição. É óbvio que tradição é apenas democracia estendida ao longo do tempo. É confiar num consenso de vozes humanas comuns em vez de confiar nalgum registro isolado ou arbitrário. Quem, por exemplo, cita algum historiador alemão contra a tradição da Igreja Católica está rigorosamente apelando para a aristocracia; está apelando para a superioridade de um perito contra a tremenda autoridade de uma multidão.
É muito fácil ver por que uma lenda é tratada, e assim deve ser, mais respeitosamente do que um livro de história. A lenda geralmente é criada pela maioria do povo da aldeia, gente equilibrada. O livro geralmente é escrito pelo único homem da aldeia que é louco.”


“A tradição pode ser definida como uma extensão dos direitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia dos que simplesmente por acaso estão andando por aí. Todos os democratas objetam a desqualificação pelo acidente do nascimento; a tradição objeta a desqualificação pelo acidente da morte. A democracia nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso criado; a tradição nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso pai.”


“Assim, devo primeiramente dizer que, se eu tive um viés, sempre foi em favor da democracia e, portanto, da tradição. Antes de tratar de qualquer fundamento lógico ou teórico, fico satisfeito em aceitar essa equação pessoal; sempre fui mais inclinado a crer na multidão do povo trabalhador do que a crer naquela classe especial e complicada de literatos à qual pertenço. Para mim, as fantasias e preconceitos de quem vê a vida de dentro são até preferíveis às mais claras demonstrações de quem vê a vida de fora.”

“Eu nunca consegui envolver-me no burburinho geral daquela nova geração contra a monogamia, porque nenhuma restrição imposta ao sexo parecia-me tão estranha e inesperada quanto o sexo em si. Para mim (criado nos contos de fadas como ele) obter permissão, como Endímion, de fazer amor com a lua e depois queixar-se de que Júpiter mantinha as suas próprias luas num harém parecia anticlimático e vulgar. Restringir-se a uma única mulher é um preço pequeno diante do simples fato da visita a uma única mulher. Queixar-me de que eu só poderia casar-me uma vez era como queixar-me de ter nascido uma só vez. Era algo desproporcionado em relação à terrível emoção de que se estava falando. Aquilo mostrava, não uma sensibilidade exagerada, mas sim uma curiosa insensibilidade ao sexo. Louco é quem se queixa de não poder entrar no Éden por cinco portas ao mesmo tempo.
A poligamia é a falta da realização do sexo; é como quem apanha cinco peras de uma só vez num mero gesto de insanidade.
Os homens (eu sentia) poderiam jejuar quarenta dias para ouvir o canto de um melro. Os homens poderiam passar pelo fogo para encontrar uma prímula. No entanto, esses amantes da beleza não conseguiam sequer manter-se sóbrios pelo melro. Eles não passariam pelo casamento cristão comum como forma de recompensa pela prímula. Com certeza a gente poderia pagar pelo extraordinário prazer da moral ordinária. Oscar Wilde disse que o pôr-do-sol era um espetáculo não valorizado porque não poderíamos pagar por ele. Mas ele estava errado; nós podemos pagar pelo pôr-do-sol. Paga-se não sendo um Oscar Wilde.”


“Ora, para expressar o caso numa linguagem popular, poderia ser verdade que o sol se levanta regularmente por nunca se cansar de levantar-se. Sua rotina talvez se deva não à ausência de vida, mas a uma vida exuberante. O que quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, quando elas descobrem algum jogo ou brincadeira com que se divertem de modo especial. Uma criança balança as pernas ritmicamente por excesso de vida, não pela ausência dela. Pelo fato de as crianças terem uma vitalidade abundante, elas são espiritualmente impetuosas e livres; por isso querem coisas repetidas, inalteradas. Elas sempre dizem: “Vamos de novo”; e o adulto faz de novo até quase morrer de cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente para exultar na monotonia.
Mas talvez Deus seja forte o suficiente para exultar na monotonia. É possível que Deus todas as manhãs diga ao sol: “Vamos de novo”; e todas as noites à lua: “Vamos de novo”. Talvez não seja uma necessidade automática que torna todas as margaridas iguais; pode ser que Deus crie todas as margaridas separadamente, mas nunca se canse de criá-las. Pode ser que ele tenha um eterno apetite de criança; pois nós pecamos e ficamos velhos, e nosso Pai é mais jovem do que nós. A repetição na natureza pode não ser mera recorrência; pode ser um BIS teatral. O céu talvez peça BIS ao passarinho que botou um ovo. (...)
Essa foi minha primeira convicção; criada pelo choque de minhas emoções infantis com o credo moderno, sendo eu já veterano. Vagamente eu sempre sentira que os fatos eram milagres no sentido de que eram maravilhosos: agora começava a considerá-los milagres no sentido mais estrito de que eram VOLUNTÁRIOS. Quero dizer que eram, ou poderiam ser, exercícios repetidos de alguma vontade. Em resumo, eu sempre acreditara que o mundo envolvia uma mágica: agora achava que talvez ele envolvesse um mágico. E isso apontava para uma emoção profunda sempre presente e subconsciente; de que este nosso mundo tem algum propósito; e se há um propósito, há uma pessoa. Eu sempre sentira a vida primeiro como uma história; e se há uma história há um contador da história.”


“É totalmente inútil argumentar que o homem é pequeno se for comparado ao cosmos; pois o homem sempre foi pequeno comparado à árvore mais próxima.”


“De modo geral, cheguei à conclusão de que o otimista pensava que tudo era bom, exceto o pessimista; e o pessimista achava que tudo era ruim, exceto ele mesmo.”


“Devemos boa parte da moral sólida às publicações sensacionalistas baratas.”


“O mundo não é uma pensão em Brighton, que temos de abandonar por ser péssima. É a fortaleza de nossa família, com a bandeira tremulando no torreão, e quanto pior ela for tanto menos razão temos para a deixarmos. A questão não é que este mundo é triste demais para ser amado ou alegre demais para não o ser; a questão é que, quando se ama alguma coisa, a sua alegria é a razão para amá-la, e a sua tristeza é a razão para amá-la ainda mais.”

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