sábado, 25 de novembro de 2017

História Natural da Religião (Parte I) – David Hume

Editora: Unesp
ISBN: 978-85-7139-604-3
Tradução, Apresentação e Notas: Jaimir Conte
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
Sinopse: História natural da religião é uma profunda reflexão sobre os princípios que dão origem à crença original e como o contexto histórico, cultural e social influencia e é influenciado pelas disposições morais e filosóficas do ser humano. O percurso de Hume leva ao entendimento de que “o bem e o mal se misturam e se confundem universalmente, assim como a felicidade e a miséria, a sabedoria e a loucura, a virtude e o vício”. Por esse ângulo, a religião estaria associada a princípios sublimes, ao mesmo tempo que dá ensejo a práticas as mais vis. Uma conclusão audaz para a sua época e dramaticamente corroborada pelo cenário contemporâneo.


“Parece certo que, de acordo com o progresso natural do pensamento humano, a multidão ignorante deve, num primeiro momento, nutrir uma noção vulgar e familiar dos poderes superiores antes de ampliar sua concepção para aquele ser perfeito, que conferiu ordem a todo o plano da natureza. Seria tão razoável imaginar que os homens habitaram palácios antes de choças e cabanas, ou que estudaram geometria antes de agricultura, como afirmar que conceberam a divindade sob a forma de puro espírito, onisciente, onipotente e onipresente, antes de concebê-la como um ser poderoso, ainda que limitado, dotado de paixões e apetites humanos, de membros e órgãos. O espírito se eleva gradualmente do inferior para o superior: por abstração, forma, a partir do imperfeito, uma ideia da perfeição, e lentamente, distinguindo as partes mais nobres de sua própria constituição das mais grosseiras, aprende a atribuir à sua divindade somente as primeiras, as mais elevadas e puras. Nada poderia interromper esse progresso natural do pensamento, exceto um argumento evidente e invencível, que pudesse conduzir imediatamente o espírito aos genuínos princípios do monoteísmo, fazendo-o transpor, num salto, o amplo espaço intermediário que separa a natureza humana da natureza divina. Mas ainda que eu reconhecesse que a ordem e o plano do universo, quando cuidadosamente examinados, fornecem tal argumento, nunca poderia pensar, entretanto, que essa consideração poderia ter uma influência sobre os homens quando estes formavam suas primeiras noções rudimentares de religião.”


“Adão, levantando-se subitamente no Paraíso e na plena perfeição de suas faculdades, ficaria naturalmente espantado, como o representa Milton, com os magníficos fenômenos da natureza, com o céu, com o ar, com a terra, com seus próprios órgãos e membros; e seria levado a perguntar de onde nasceu esse maravilhoso espetáculo. Mas um animal selvagem e necessitado (como é um homem na origem da sociedade), oprimido por tantas necessidades e paixões, não tem tempo livre para admirar o aspecto regular da natureza, ou de se perguntar a respeito da causa desses objetos, com os quais se familiarizou pouco a pouco desde sua infância. Ao contrário, quanto mais regular e uniforme a natureza se mostra, ou seja, quanto mais perfeita ela é, mais o homem se familiariza com ela e menos inclinado estará a sondá-la e examiná-la. Um parto monstruoso desperta sua curiosidade e é considerado um prodígio. Ele o desperta por causa da sua novidade e imediatamente o leva a sentir medo, a fazer sacrifícios e a rezar. Mas um animal, com todos os seus membros e órgãos perfeitos, é, para o homem, um espetáculo ordinário, não produz nenhuma opinião ou sentimento religioso. Pergunte-lhe por que aquele animal nasceu e ele lhe dirá que foi em razão da cópula de seus pais. E estes, por quê? Por causa da cópula dos seus. Alguns graus de parentesco satisfazem sua curiosidade e colocam os objetos a tal distância que ele os perde inteiramente de vista. Não pensem que levantará a questão “de onde surgiu o primeiro animal?”, muito menos qual é a origem de todo o sistema do universo ou da harmonia de sua estrutura. Ou, se você lhe fizer semelhante pergunta, não espere que ele ocupe sua mente preocupando-se com um assunto tão remoto, desprovido de interesse e que ultrapassa em muito os limites de sua capacidade.
Além disso, se ao pensar no plano da natureza os homens fossem inicialmente levados a acreditar num ser supremo, eles talvez nunca pudessem abandonar essa crença a fim de abraçar o politeísmo; mas o mesmo princípio da razão, que inicialmente produziu e difundiu entre os homens uma opinião tão esplêndida, deve ser capaz, mais facilmente ainda, de preservá-la. É bem mais difícil inventar e provar pela primeira vez uma doutrina do que defendê-la e mantê-la.”


“Existe uma grande diferença entre os fatos históricos e as opiniões especulativas; o conhecimento dos fatos históricos não se propaga da mesma maneira que as opiniões especulativas. Um fato histórico, à medida que é transmitido pela tradição oral a partir dos testemunhos oculares e dos contemporâneos, é alterado em cada narração sucessiva, e pode, no final, conservar apenas uma fraca semelhança – se conservar alguma – com a verdade original, sobre a qual estava fundamentado. A frágil memória dos homens, seu gosto pelo exagero, sua enorme desatenção – todos esses princípios, se não são corrigidos pelos livros e escritos, deturpam rapidamente os relatos dos acontecimentos históricos, nos quais os argumentos e raciocínios têm pouco ou nenhum lugar, nem sequer podem evocar a verdade que um dia escapou a essas narrativas. E, assim, imagina-se que as fábulas de Hércules, de Teseu e de Baco foram originalmente fundadas na história verdadeira, corrompida pela tradição.”


“Todas as coisas do universo são evidentemente uniformes. Todas as coisas estão ajustadas a outras coisas. Um desígnio predomina inteiramente em tudo. E essa uniformidade leva a mente a reconhecer um só autor, pois a concepção de diferentes autores, sem qualquer distinção de atributos ou operações, serve apenas para tornar a imaginação perplexa, sem dar nenhuma satisfação ao entendimento.”


“De fato, descobrimos que todos os idólatras, após ter dividido os domínios de suas divindades, recorreram àquele agente invisível, que os mantém sob sua autoridade imediata e cuja alçada é supervisionar aquele curso de ações, no qual a qualquer hora eles se empenham. Juno é invocado nos casamentos; Lucina nos partos. Netuno recebe as preces dos marinheiros; Marte, as dos guerreiros. Os agricultores cultivam seus campos sob a proteção de Ceres; e os negociantes reconhecem a autoridade de Mercúrio. Imagina-se que todo acontecimento natural é governado por algum ser inteligente; e nada próspero ou adverso pode acontecer no decorrer da vida que não possa ser assunto de preces particulares ou de ação de graças.
De fato, deve-se necessariamente reconhecer que, para poder levar suas intenções para além do curso presente das coisas ou para alguma inferência sobre o poder invisível e inteligente, os homens devem ser influenciados por uma certa paixão que suscita seus pensamentos e reflexão; por motivos que provocam sua investigação inicial. Mas a que paixão devemos aqui recorrer para explicar um efeito de consequências tão importantes? Não é certamente à curiosidade especulativa ou ao puro amor à verdade. Esse motivo é demasiado refinado para um entendimento tão grosseiro; e levaria os homens a investigações sobre o plano da natureza, um tema demasiado amplo e abrangente para suas estreitas capacidades. As únicas paixões que podemos imaginar capazes de agir sobre tais homens incultos são as paixões ordinárias da vida humana, a ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras, o medo da morte, a sede de vingança, a fome e outras necessidades. Agitados por esperanças e medos dessa natureza, e sobretudo pelos últimos, os homens examinam com uma trêmula curiosidade o curso das causas futuras, e analisam os diversos e contraditórios acontecimentos da vida humana. E nesse cenário desordenado, com os olhos ainda mais desordenados e maravilhados, eles veem os primeiros sinais obscuros da divindade.”


“Estamos colocados neste mundo como em um grande teatro, onde as verdadeiras origens e causas de cada acontecimento nos estão inteiramente ocultas. Não temos sabedoria suficiente para prever os males que continuamente nos ameaçam, nem poder para evitá-los. Vivemos suspensos num perpétuo equilíbrio entre a vida e a morte, a saúde e a doença, a saciedade e o desejo, coisas que são distribuídas entre a espécie humana por causas secretas e desconhecidas, e que atuam frequentemente de forma inesperada e, sempre, inexplicável. Essas causas desconhecidas tornam-se, pois, o objeto constante de nossa esperança e medo; e, enquanto nossas paixões são continuamente excitadas pela ansiosa expectativa dos acontecimentos, empregamos também a imaginação, a fim de formar uma ideia sobre esses poderes, dos quais dependemos totalmente. Se os homens pudessem dissecar a natureza de acordo com a filosofia mais provável ou, pelo menos, com a mais inteligível, descobririam que tais causas consistem apenas na peculiar constituição e estrutura das partes diminutas de seus próprios corpos e dos objetos exteriores, e que, por um mecanismo regular e constante, produz todos os acontecimentos que tanto os inquietam. Mas essa filosofia ultrapassa a compreensão da multidão ignorante, que pode apenas conceber essas causas desconhecidas de uma maneira geral e confusa, embora sua imaginação, que gira perpetuamente sobre o mesmo assunto, deva esforçar-se para formar uma ideia particular e distinta acerca dessas causas. Quanto mais os homens examinam essas causas desconhecidas e a incerteza de sua operação, menos satisfação alcançam em suas investigações; e por mais relutantes, teriam necessariamente abandonado um esforço tão árduo se não houvesse na natureza humana uma inclinação que os levasse a um sistema capaz de lhes proporcionar alguma satisfação.
Os homens têm uma tendência geral para conceber todos os seres segundo sua própria imagem, e para transferir a todos os objetos as qualidades com as quais estão mais familiarizados – e das quais têm consciência mais íntima. Descobrimos formas de faces humanas na lua, e de membros nas nuvens, e por uma inclinação natural, se não for corrigida pela experiência ou pela reflexão, atribuímos maldade ou bondade a tudo o que nos faz mal ou nos agrada. Daí o frequente emprego das prosopopeias na poesia, e a sua beleza: árvores, montanhas e rios são personificados e atribui-se sentimentos e paixões aos elementos inanimados da natureza. E embora essas figuras e expressões poéticas não nos inspirem fé, podem servir, pelo menos, para mostrar uma certa tendência da imaginação, sem a qual não poderiam ser nem belas nem naturais. Nem sempre os deuses dos rios ou as hamadríadas* são tomados por seres puramente poéticos e imaginários; eles podem, às vezes, fazer parte das crenças autênticas do vulgo ignorante, ao mesmo tempo que cada bosque ou campo é representado sob o domínio de um gênio particular ou de um poder invisível que o habita e o protege. Nem mesmo os filósofos podem eximir-se inteiramente dessa fraqueza natural, ao contrário, têm frequentemente atribuído à matéria inanimada o horror ao vazio, simpatias, antipatias e outros sentimentos de natureza humana. O absurdo não é menor quando levantamos os olhos para o céu e, transferindo – como é bastante comum – as paixões e as fraquezas humanas para a divindade, a representamos como invejosa e vingativa, caprichosa e parcial, em suma, idêntica em todos os aspectos a um homem perverso e insensato, exceto quanto ao seu poder e autoridade superiores. Não é surpreendente, então, que o homem, absolutamente ignorante das causas, e ao mesmo tempo tomado por tamanha ansiedade quanto ao seu futuro destino, reconheça imediatamente que depende de poderes invisíveis, dotados de sentimentos e de inteligência. As causas desconhecidas que ocupam sem cessar seu pensamento, ao se apresentarem sempre sob o mesmo aspecto, são todas consideradas do mesmo tipo ou espécie. E pouco falta para que atribuamos à divindade pensamentos, raciocínio, paixões e, às vezes, até membros e formas humanas, a fim de aproximá-la mais da nossa própria imagem.”
*: Ninfa dos bosques que nascia e morria com a árvore de cuja guarda estava incumbida e da qual se julgava prisioneira.


“Qualquer um dos sentimentos humanos pode nos levar à noção de um poder invisível e inteligente: a esperança, assim como o medo; a gratidão, assim como a aflição. Mas se examinarmos nosso próprio coração, ou se observarmos o que se passa ao nosso redor, descobriremos que os homens ajoelham-se bem mais frequentemente por causa da melancolia do que por causa de paixões agradáveis. Aceitamos facilmente a prosperidade como nosso dever, e quase não nos perguntamos sobre sua causa ou sobre seu autor. Ela produz a alegria, a atividade, o entusiasmo e um vívido gozo de todos os prazeres sociais e sensuais. Enquanto permanecemos nesse estado de espírito, temos pouco tempo ou inclinação para pensar em regiões desconhecidas e invisíveis. Porém, todo acidente funesto nos desperta e nos incita a investigações sobre os princípios de sua origem. Surgem apreensões em relação ao futuro, e o espírito, em virtude da desconfiança, do terror e da melancolia, recorre a todos os métodos suscetíveis de satisfazer os poderes secretos e inteligentes, dos quais, pensamos nós, nosso destino depende inteiramente.
Não existe prática mais comum em todas as teologias populares do que exibir as vantagens da aflição, levando os homens a um verdadeiro sentimento religioso, reduzindo sua confiança e sua sensualidade, que, nos tempos de prosperidade, fazem com que esqueçam a providência divina. E essa prática não se limita apenas às religiões modernas. Os antigos também a empregaram. “A fortuna”, diz um historiador grego*, “nunca foi generosa, sem inveja, nunca concedeu liberalmente nem sem mistura uma felicidade perfeita aos homens; mas a todas as suas dádivas sempre uniu algumas circunstâncias desastrosas, a fim de castigar os homens e levá-los a venerar os deuses; pois os homens, em meio a uma prosperidade contínua, tendem a negligenciá-los e esquecê-los”. Que idade ou período da vida é o mais inclinado à superstição? O mais fraco e o mais tímido. Que sexo? É preciso dar a mesma resposta. “As mulheres”, diz Estrabão**, “são as líderes e modelos de todos os tipos de superstições. Elas incitam os homens à devoção, às súplicas e à observância dos dias religiosos. É raro encontrar um homem que viva afastado das mulheres, e que, no entanto, seja dado a tais práticas”.”
*: Diodoro Siculus, livro III, cap.47, séc. I.
**: Lib. VII. 297 [Estrabão, Geografia, livro VII, cap.3].


“Se considerarmos devidamente o assunto, tornar-se-á evidente que os deuses de todos os politeístas não valem mais que os duendes e as fadas de nossos ancestrais, e merecem bem pouca devoção ou veneração.
Esses pretensos religiosos são, na realidade, uma espécie de ateus supersticiosos que não reconhecem ser algum que corresponda à nossa ideia da divindade. Nenhum primeiro princípio espiritual ou intelectual; nenhum governo ou administração supremos; nenhum plano ou intenção divinos na constituição do mundo.
Os chineses batem em seus ídolos quando suas preces não são ouvidas. As divindades dos lapônios são todas as pedras enormes, de formato extraordinário, que eles encontram. Os mitólogos egípcios, a fim de explicar o culto aos animais, diziam que os deuses, perseguidos pela violência dos homens mortais, seus inimigos, tinham sido outrora obrigados a disfarçar-se sob a forma de bestas. Os caunis, um povo da Ásia Menor, decidiram não admitir entre eles qualquer deus estrangeiro; eles reuniam-se e armavam-se completamente em certos períodos regulares e, dando golpes no ar com suas lanças, avançavam até suas fronteiras, a fim de, diziam eles, expulsar as divindades estrangeiras. “Nem mesmo os deuses imortais”, diziam algumas nações germânicas a César, “estão à altura dos suecos”.
Em Homero, Dione diz a Vênus ferida por Diomedes: “Muitos males, muitos males, minha filha, os deuses têm infligido aos homens; e, em troca, muitos males os homens têm infligido aos deuses”. Não precisamos mais que abrir um autor clássico para encontrar essas representações grosseiras das divindades. E Longino observa, com razão, que tais ideias da natureza divina, se tomadas literalmente, encerram um verdadeiro ateísmo. (...)
Os lacedemônios, diz Xenofonte, sempre faziam seus pedidos, durante a guerra, logo de manhã cedo, a fim de se anteciparem aos seus inimigos e, ao ser os primeiros a rezar, engajar antecipadamente os deuses a seu favor. Podemos concluir, a partir de Sêneca, que era comum nos templos que os devotos usassem sua influência com o bedel ou sacristão de maneira que arrumassem um lugar para sentar próximo à imagem da divindade, a fim de ser mais bem ouvidos por esta em suas preces e pedidos. Os tírios, quando sitiados por Alexandre, lançaram algemas sobre a estátua de Hércules com o intuito de impedir que este deus passasse para o lado inimigo. Augusto, após ter perdido sua frota duas vezes por causa das tempestades, proibiu que Netuno fosse carregado em procissão com os outros deuses; e imaginou que se tinha vingado suficientemente através de tal expediente. Após a morte de Germânico, as pessoas ficaram tão enfurecidas contra seus deuses que os apedrejaram nos templos e renunciaram abertamente a toda devoção a eles.
Nunca entra na imaginação de um politeísta ou idólatra atribuir a esses seres imperfeitos a origem e a constituição do universo. Hesíodo, cujos escritos, ao lado dos de Homero, contêm o sistema canônico dos céus; Hesíodo, eu dizia, supõe que os deuses e os homens foram engendrados uns e outros pelos poderes desconhecidos da natureza. E do início ao fim de toda a teogonia desse autor, Pandora é o único exemplo de uma criação ou de uma produção voluntária – e ela também foi criada pelos deuses por simples despeito a Prometeu, que tinha dado aos homens o fogo roubado das regiões celestiais. Na verdade, os antigos mitólogos parecem, do começo ao fim, ter antes abraçado a ideia da geração que a da criação ou formação e, a partir disso, explicado a origem deste universo.”


“Esses são, pois, os princípios gerais do politeísmo, fundamentados na natureza humana e que não dependem em nada – ou em quase nada – do capricho ou do acaso. Como as causas que provocam felicidade ou desgraça são, em geral, muito pouco conhecidas e bastante incertas, nossos ansiosos esforços tentam alcançar delas uma ideia determinada, e não encontram melhor meio do que representá-las como agentes dotados de inteligência e de vontade semelhantes às nossas, salvo pelo seu poder e sabedoria um pouco superiores. A influência limitada desses agentes, e sua fraqueza muito próxima da fraqueza humana, introduz várias repartições e divisões de sua autoridade, e, desse modo, dá nascimento à alegoria. Os mesmos princípios divinizam, como é natural, aqueles mortais que são superiores em força, coragem ou sabedoria, e originam a veneração dos heróis, com as fabulosas histórias e as tradições mitológicas, em todas as suas formas caóticas e extravagantes. E como uma inteligência espiritual e invisível é um objeto muito sutil para a compreensão comum, os homens naturalmente a vinculam a certas representações sensíveis, bem como a partes mais visíveis da natureza ou a estátuas, imagens e pinturas que uma época mais refinada forja de suas divindades.”


““Pouca filosofia”, diz lorde Bacon, “torna os homens ateus; muita, reconcilia-os com a religião”. Pois o homem, tendo aprendido através de preconceitos supersticiosos a dar importância a algo falso, quando isso lhe falta e ele descobre, ao refletir um pouco, que o curso da natureza é regular e uniforme, toda sua fé cambaleia e desmorona. Mas quando chega a aprender, por meio de uma reflexão mais profunda, que precisamente tal regularidade e uniformidade constitui a prova mais clara da existência de um desígnio e de uma inteligência suprema, volta àquela crença que tinha abandonado e pode, agora, estabelecê-la sobre fundamentos mais firmes e duráveis.”


“O assassinato ilegítimo de um homem por um tirano é mais pernicioso que a morte de mil pela peste, pela fome ou por qualquer outra calamidade.”


“A comparação entre o monoteísmo e a idolatria nos permite fazer outras observações que também confirmarão a observação comum de que a corrupção das melhores coisas engendra as piores.
A crença em um deus representado como infinitamente superior aos homens, ainda que seja completamente justa, é suscetível, quando acompanhada de terrores supersticiosos, de afundar o espírito humano na submissão e na humilhação mais vil, e de representar as virtudes monásticas da mortificação, da penitência, da humildade e do sofrimento passivo como as únicas qualidades que são agradáveis a deus. Mas quando concebemos os deuses como seres só um pouco superiores aos homens, e tendo visto que muitos deles se elevaram dessa classe inferior, sentimo-nos mais tranquilos em nosso trato com eles e até podemos, às vezes, sem impiedade, aspirar a competir com os deuses e imitá-los. Originam-se assim a atividade, a vitalidade, a coragem, a magnanimidade, o amor à liberdade e todas as virtudes que engrandecem um povo.
Os heróis no paganismo correspondem exatamente aos santos no catolicismo romano e aos santos dervixes na religião maometana. O lugar de Hércules, Teseu, Heitor e Rômulo está agora ocupado por São Domingos, São Francisco, Santo Antônio e São Benedito. Em vez da destruição dos monstros, da luta contra os tiranos e da defesa da pátria, flagelos e jejuns, covardia e humildade, submissão abjeta e obediência servil tornaram-se, entre os homens, os meios para obter as honras celestiais.”

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