quinta-feira, 16 de março de 2017

A Utopia ou O Tratado da Melhor Forma de Governo – São Thomas Morus

Editora: L&PM

ISBN: 978-85-2540-673-6

Tradução: Paulo Neves

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 160

Sinopse: Tomás Morus (1478-1535), humanista e jurista inglês, foi chanceler do reino da Inglaterra e um dos pensadores mais destacados de seu tempo. Católico fervoroso, foi decapitado por ordens do Rei Henrique VIII por não reconhecer o rei (que havia se divorciado) como chefe supremo da igreja. Foi canonizado pela Igreja católica em 1935. Morus teve a particularidade de ser cultuado também pela Revolução russa, que lhe erigiu uma estátua em homenagem às ideias socialistas de sua célebre obra A utopia.

Essa obra descreve um Estado imaginário sem propriedade privada nem dinheiro, preocupado com a felicidade coletiva e a organização da produção, mas de fundamento religioso. Seu modelo é A República e As leis de Platão. Além de lançar as bases do socialismo econômico, Morus, que cunhou a palavra utopia (literalmente o não-lugar de nenhum lugar), deu início a um gênero literário que faria fortuna nos séculos seguintes, desde A nova Atlântida de Francis Bacon e A cidade do sol de Companella até os escritos dos socialistas do século XIX, chamados utópicos.



“O cadáver sem sepultura tem o céu por mortalha.”

 

 

“Há por toda a parte caminho para chegar a deus.”

 

 

“O acaso me fez encontrar um dia, à mesa desse prelado, um leigo reputado como douto legista. Este homem, não sei a que propósito, se pôs a cumular de louvores a rigorosa justiça exercida contra os ladrões. Narrava gostosamente como eles eram enforcados, aqui e ali, às vintenas, na mesma forca.

Apesar disso, acrescentava, vejam que fatalidade! Mal escapam da forca dois ou três desses bandidos, e, no entanto, na Inglaterra, eles formigam por toda parte!

Com a liberdade de palavra que gozava na casa do cardeal, disse eu, então: Nada disso devia surpreender-vos. Neste caso a morte é uma pena injusta e inútil; é bastante cruel para punir o roubo, mas bastante fraca para impedi-lo. O simples roubo não merece a forca, e o mais horrível suplício não impedirá de roubar o que não dispõe de outro meio para não morrer de fome. Nisto, a justiça de Inglaterra e de muitos outros países se assemelha aos mestres que espancam os alunos em lugar de instruí-los. Fazeis sofrer aos ladrões pavorosos tormentos; não seria melhor garantir a existência a todos os membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade de roubar, primeiro, e de morrer, depois?”

 

 

“Olhemos o que se passa cada dia ao redor de nós. A principal causa da miséria pública reside no número excessivo de nobres, zangões ociosos, que se nutrem do suor e do trabalho de outrem e que, para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar suas terras, escorchando os rendeiros até à carne viva. Não conhecem outra economia.

Mas, tratando-se, ao contrário, de comprar um prazer, são pródigos, então, até à loucura e à mendicidade. E não menos funesto é o fato de arrastarem consigo uma turba de lacaios e mandriões sem estado e incapazes de ganhar a vida.”

 

 

“Com efeito, os ladrões não são os piores soldados, como os soldados não são os ladrões mais tímidos; há muita analogia entre esses dois ofícios. Infelizmente, esta praga social não é particular à Inglaterra; corrói quase todas as nações.”

 

 

“Meu caro Rafael, far-me-íeis o obséquio de explicar por que o roubo não merece a morte, e por que outra pena a substituireis de forma a garantir melhor a segurança pública. Como não pensais que se deva tolerar o roubo, e se a forca não é hoje uma barreira para o banditismo, que terror exercereis, sobre os celerados quando eles tiverem a certeza de não perder a vida? Que sanção bastante forte dareis à lei? Uma pena mais branda não seria um prêmio de incitamento ao crime?

Minha convicção íntima, eminência, é que é injusto matar-se um homem por ter tirado dinheiro de outrem, desde que a sociedade humana não pode ser organizada de modo a garantir para cada um uma igual porção de bens.

Podem objetar-me, sem dúvida, que a sociedade, tirando-lhe a vida, vinga a justiça e as leis, e não pune somente uma miserável subtração de dinheiro.

Responderei com este axioma: Summum jus, summa injuria, O supremo direito é uma injustiça suprema. A vontade do legislador não é tão infalível e absoluta que seja necessário desembainhar a espada à menor infração aos seus decretos. A lei não é tão rígida e estoica que coloque, no mesmo nível, todos os delitos e crimes, e não estabeleça nenhuma diferença entre matar um homem e roubá-lo. Se a equidade não é uma palavra vã, há entre essas duas ações um abismo.

E como! Deus proibiu o assassínio e nós, nós matamos tão facilmente por causa do furto de algumas moedas!

Alguém dirá, talvez: Deus, com esse mandamento, tirou o poder de matar ao homem privado, mas não ao magistrado que condena aplicando as leis da sociedade. Mas se é assim, quem impede os homens de fazer outras leis igualmente contrárias aos preceitos divinos, e de legalizar o estupro, o adultério e o perjúrio? (...)

Tais são os motivos que me persuadem que é injusto aplicar ao ladrão o mesmo castigo que ao assassino. Poucas palavras vos farão compreender como esta penalidade é absurda em si mesma e como é perigosa à segurança pública. O celerado vê que não há menos a temer furtando do que assassinando; então, ele mata aquele a quem apenas despojara; e mata-o para a sua própria segurança. Assim agindo, ele se descarta do seu principal denunciador, e tem maior probabilidade de esconder o crime. Eis o belo efeito desta justiça implacável: aterrorizando o ladrão com a expectativa da forca, fez dele um assassino!”

 

 

“Por pior que seja uma causa, haverá sempre um juiz para julgá-la boa.”

 

 

“Ouvi os axiomas de moral política proclamados unanimemente pelos membros do nobre conselho:

O rei que sustenta um exército nunca tem dinheiro bastante.

O rei não poderia fazer o mal mesmo que o quisesse.

O rei é o proprietário universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os seus súditos; nada possuem senão como usufrutuários pelas boas graças do rei.

A pobreza do povo é o baluarte da monarquia.

A riqueza e a liberdade conduzem à insubordinação e ao desprezo da autoridade; o homem livre e rico suporta com impaciência um governo injusto e despótico.

A indigência e a miséria degradam os caracteres, embrutecem as almas, habituam-nas ao sofrimento e à escravidão, comprimindo-as a ponto de lhes tirar a energia necessária para sacudir o jugo.

Se outra vez me erguesse, e falasse assim a esses poderosos senhores: Vossos conselhos são infames, vergonhosos para o rei, funestos para o povo.

A honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na riqueza de seus súditos mais ainda do que na sua própria. Os homens fizeram os reis para os homens e não para os reis; colocaram chefes à sua frente para que pudessem viver comodamente ao abrigo das violências e dos ultrajes; o dever mais sagrado do príncipe é velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua própria; como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo às pastagens mais férteis.

Sustentar que a miséria pública é a melhor salvaguarda da monarquia, é sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vêm mais querelas e rixas do que entre os mendigos?

Qual o homem que mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja existência atual é miserável? Qual o homem que revelará maior audácia em subverter o Estado? Não será aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?

Um rei que provocasse o ódio e o desprezo dos cidadãos e cujo governo não pudesse se manter senão pelas vexações, pela pilhagem, pelo confisco e pela miséria universal, deveria descer do trono e depor o poder supremo. Empregando estes meios tirânicos, talvez pudesse conservar o nome de rei, mas de rei não teria mais nem o ânimo nem a majestade. A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.

Fabricius1, esta grande alma, estava todo penetrado desse sublime sentimento quando respondeu: Prefiro governar ricos do que eu mesmo ser rico.

E, de fato, nadar em delícias, saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e gemidos de um povo, não é manter um reino e sim uma cadeia.”

1: Fabricius, general romano, cônsul em 282-275 a.C. Morreu tão pobre que o Estado foi forçado a fazer-lhe os funerais.

 

 

“Ora, os ministros e os políticos de hoje, estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça?”

 

 

“Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propósito; e, se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito, quando os próprios homens forem bons e perfeitos; e até lá, os séculos passarão.”

 

 

“Na Utopia, as leis são pouco numerosas; a administração distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.”

 

 

“O grande gênio de latão previra facilmente que o único meio de organizar a felicidade pública, fora a aplicação do princípio da igualdade. Ora, a igualdade é, creio, impossível num Estado em que a posse é particular e absoluta; porque cada um se apoia em diversos títulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria. (...)

Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.

Sei que existem remédios que podem aliviar o mal; mas estes remédios são impotentes para curá-lo. Por exemplo: Decretar um máximo de posse individual em terras e dinheiro. Premunir-se por meio de severas leis contra o despotismo e a anarquia.

Denunciar e castigar a ambição e a intriga. Não traficar as magistraturas.

Suprimir o fausto e a representação nos altos cargos, a fim de que o funcionário, para sustentar sua posição, não se entregue à fraude e à rapina; ou, a fim de que não seja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam caber aos mais capazes.

Estes meios, repito-o, são excelentes paliativos que podem adormecer a dor e aliviar as chagas do corpo social; mas não espereis com isto devolver-lhe a força e a saúde, enquanto cada um possuir solitariamente e absolutamente seus bens; podeis cauterizar uma úlcera, mas inflamareis todas as outras; curareis um doente, e matareis um homem são; porque o que acrescentais ao haver de um indivíduo tirais ao de seu vizinho.

Disse eu, então, a Rafael: Longe de compartilhar vossas convicções, penso, ao contrário, que o país em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miserável de todos os países. Com efeito, como produzir para as necessidades do consumo? Todo mundo fugiria do trabalho e descansaria dos cuidados com sua existência sobre o trabalho dos outros. E, mesmo que a miséria perseguisse os preguiçosos, desde que a lei não mantém inviolavelmente, para e contra todos, a propriedade de cada um, a rebelião rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaçadora, e a matança ensanguentaria vossa república.

Que barreira oporíeis à anarquia? Vossos magistrados têm apenas uma autoridade nominal; estão despidos, despojados de tudo que impõe o temor e o respeito. Não chego nem mesmo a conceber a possibilidade de governo nesse povo de niveladores que repele toda espécie de superioridade.

Não me espanto que penseis assim, replicou Rafael. Vossa imaginação não poderia fazer a menor ideia de uma tal república, ou dela tem apenas uma ideia falsa. Se tivésseis estado na Utopia, se tivésseis assistido ao espetáculo de suas instituições e de seus costumes, como eu, que lá passei cinco anos de minha vida, e que não me decidi a sair senão para revelar esse novo mundo ao antigo, confessaríeis que em nenhuma outra parte existe sociedade perfeitamente organizada.”

 

 

“Esta terra não foi sempre uma ilha. Chamava-se antigamente Abraxa e se ligava ao continente; Utopus apoderou-se dela, e deu-lhe seu nome Este conquistador teve bastante gênio para humanizar uma população grosseira e selvagem e para formar um povo que ultrapassa hoje todos os outros em civilização. Desde que a vitória o fez dono deste país, mandou cortar um istmo de quinze mil passos que o ligava ao continente; e a terra de Abraxa tornou-se, assim, a ilha da Utopia. Utopus empregou, no acabamento dessa obra gigantesca, os soldados do seu exército, assim como os indígenas, a fim de que estes não olhassem o trabalho imposto pelo vencedor como uma humilhação e um ultraje.”

 

 

“Dir-se-á talvez: Seis horas de trabalho por dia não são suficientes para as necessidades do consumo público, e a Utopia deve ser um país muito miserável.

Mas não é este realmente o caso. Ao contrário, as seis horas de trabalho produzem abundantemente para todas as necessidades e comodidades da vida, e ainda um supérfluo bem superior às exigências do consumo.

Compreendereis facilmente se refletirdes no grande número de pessoas ociosas existentes nas outras nações. Antes de tudo, são essas quase todas as mulheres, que em si já constituem a metade da população, e a maioria dos homens, ali onde as mulheres trabalham. Em seguida, esta imensa multidão de padres e religiosos vagabundos. Somai ainda todos esses ricos proprietários vulgarmente chamados nobres e senhores; acrescentai também as nuvens de lacaios e outro tanto de malandros de libré; e o dilúvio de mendigos robustos e válidos que escondem sua preguiça sob o disfarce de enfermidades. E achareis, em resumo, que o número dos que, por seu trabalho, provêm ao gênero humano de todas as necessidades é bem menor do que imaginais.

Considerai também como são poucos aqueles que a trabalhar estão empregados em coisas verdadeiramente necessárias. Porque, neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e a medida universal, grande é o número das artes frívolas e vãs que se exercem unicamente a serviço do luxo e do desregramento. Mas se a massa atual dos trabalhadores estivesse repartida pelas diversas profissões úteis, de maneira a produzir mesmo com abundância tudo o que exige o consumo, o preço da mão de obra baixaria a um ponto que o operário não poderia mais viver de seu salário.

Supondo, pois, que se faça trabalhar utilmente aqueles que não produzem senão objetos de luxo e os que nada produzem, embora comam o trabalho e o quinhão de dois bons operários; então, concebereis, sem dificuldade, que disporão de mais tempo do que necessitam para prover às necessidades e mesmo aos prazeres da vida, quero dizer, os que se fundam na natureza e na verdade.”

 

 

“Vede que na Utopia a ociosidade e a preguiça são impossíveis. Não se vêm nem tabernas, nem lugares de prostituição, nem oportunidade para deboches, nem antros ocultos, nem assembleias secretas. Cada um, continuamente exposto ao olhar de todos, se sente na feliz contingência de trabalhar e de repousar, conforme as leis e os costumes do país. A abundância de todas as coisas é o fruto desta vida pura e ativa. O bem-estar se reparte igualmente por todos os membros desta admirável sociedade; a mendicidade e a miséria são aí monstros desconhecidos.”

 

 

“O ouro e a prata não têm, nesse país, mais valor do que lhes deu a natureza.

Esses dois metais são ali considerados bem abaixo do ferro, o qual é tão necessário ao homem quanto a água e o fogo. Com efeito, o ouro e a prata não têm nenhuma virtude, nenhum uso, nenhuma propriedade cuja privação acarrete um inconveniente natural e verdadeiro. Foi a loucura humana que pôs tanto valor em sua raridade.

A natureza, esta excelente mãe, escondeu-os em grandes profundidades, como produtos inúteis e vãos, enquanto que expõe a descoberto a água, o ar, a terra, e tudo o que há de bom e realmente útil.”

 

 

“Eis aqui seu catecismo religioso: A alma é imortal: Deus que é bom, criou-a para ser feliz. Depois da morte, as recompensas coroam a virtude, suplícios atormentam o crime.

Embora esses dogmas pertençam à religião, os utopianos pensam que a razão pode induzir a crer neles e aceitá-los. Não hesitam em declarar que, na ausência desses princípios, fora preciso ser estúpido para não procurar o prazer por todos os meios possíveis, criminosos ou legítimos. A virtude consistiria, então, em escolher, entre duas volúpias, a mais deliciosa, a mais picante; e em fugir dos prazeres a que se seguissem dores mais vivas do que o gozo que tivessem proporcionado.

Mas praticar virtudes severas e difíceis, renunciar aos prazeres da vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar depois da morte em recompensa às mortificações da terra, é, aos olhos dos nossos insulares, o cúmulo da loucura.

A felicidade, dizem, não está em toda espécie de voluptuosidade; está unicamente nos prazeres bons e honestos. É para esses prazeres que tudo, até a própria virtude, arrasta irresistivelmente a nossa natureza; são eles que constituem a felicidade.

Os utopianos definem a virtude: viver segundo a natureza. Deus, criando o homem, não lhe deu outro destino.

O homem que segue o impulso da natureza, é aquele que obedece à voz da razão, em seus ódios e seus apetites. Ora, a razão inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais o amor e a adoração da majestade divina, à qual nós devemos o ser e o bem-estar. Em segundo lugar, ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente e sem lamentações, e a proporcionar aos nossos semelhantes, que são nossos irmãos, os mesmos benefícios.

De fato, o mais enfadonho e o mais fanático zelador da virtude, o inimigo mais odiento do prazer, ao vos propor imitar seus trabalhos, suas vigílias e mortificações, ordena-vos, também, mitigar, com todas as vossas forças, a miséria e as aflições dos outros. Esse moralista severo cumula de elogios, em nome da humanidade, o homem que consola e que salva o homem; e crê, assim, que a virtude mais nobre e mais humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os sofrimentos do próximo, arrancá-lo ao desespero e à tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou, em outros termos, fazê-lo ter parte também na volúpia.”

 

 

“Por que iríamos ter menos compaixão de nós do que dos outros? A natureza, que inspira em nós a caridade por nossos irmãos, não ordena que sejamos cruéis conosco mesmos.

Eis o que leva os utopianos a afirmarem que uma vida honestamente agradável quer dizer que a volúpia é o fim de todas as nossas ações; que tal é a vontade da natureza e que obedecer a esta vontade é ser virtuoso.

A natureza, dizem eles, convida todos os homens a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida. Este preceito é justo e razoável, pois não há indivíduo tão altamente colocado acima do gênero humano que somente a Providência deva cuidar dele. A natureza deu a mesma forma a todos; aqueceu-os todos com o mesmo calor, envolve todos com o mesmo amor; o que ela reprova, é aumentar o próprio bem-estar agravando a infelicidade de outrem.

A sabedoria reside em procurar a felicidade sem violar as leis. A religião é trabalhar pelo bem geral. Calcar aos pés a felicidade de outrem, em busca da sua, é uma ação injusta.

Há coisas fora da natureza, que os homens, por uma convenção absurda, intitulam prazeres (como se tivessem o poder de transformar a essência tão facilmente como modificam as palavras). Essas coisas, longe de contribuir para a felicidade, são outros tantos obstáculos em seu caminho; aos que seduzem, elas impedem gozarem satisfações puras e verdadeiras; viciam o espírito, preocupando-o com a ideia de um prazer imaginário. Há, com efeito, uma quantidade de coisas, às quais a natureza não juntou nenhuma doçura, as quais ela chegou até a misturar de amargura e que, no entanto, os homens olham como altas volúpias de algum modo necessárias à vida, apesar de, na sua maioria, serem essencialmente más e só estimular as paixões perversas.

Os utopianos classificam nessa espécie de prazeres bastardos, a vaidade daqueles de que já falei, que se creem melhores porque usam uma roupa mais bonita. A vaidade desses tolos é duplamente ridícula.

Em primeiro lugar, consideram suas roupas acima de suas pessoas; pois, quanto ao que é de uso, em que, vos pergunto, uma lã mais fina prevalece sobre uma lã mais grossa? Entretanto, os insensatos, como se se distinguissem da multidão pela excelência de sua natureza, e não pela loucura de seu comportamento, erguem orgulhosamente a cabeça, imaginando valer um grande preço. Exigem, em virtude da rica elegância de suas vestes, honras que não ousariam esperar com um traje simples e comum; mostram-se indignados quando se olha a sua roupa com um olhar de indiferença.

Em segundo lugar, esses mesmos homens não são menos estúpidos por se alimentarem de honras sem realidade e sem proveitos. É natural e verdadeiro o prazer que se sente em frente de um adulador que tira o chapéu e dobra humildemente o joelho? Uma genuflexão cura alguém da febre ou da gota?

Entre aqueles que ainda seduz uma falsa imagem do prazer, estão os nobres que se comprazem com orgulho e amor no pensamento de sua nobreza. E de que se gabam? Do acaso que os fez nascer em uma longa série de ricos antepassados, e, sobretudo, de ricos proprietários (porque a nobreza de hoje é a riqueza). Todavia, se esses insensatos nada tivessem herdado de seus pais, ou tivessem devorado todo seu patrimônio, ainda assim não se sentiriam, por isso, diminuídos na sua nobreza de um só cabelo.”

 

 

“Os infelizes afetados de males incuráveis recebem todos os consolos, todas as atenções, todos os alívios morais e físicos, capazes de lhes tornar a vida mais suportável. Mas quando a esses males incuráveis se juntam sofrimentos atrozes, que ninguém pode suprimir ou suavizar, os padres e magistrados se apresentam ao paciente e lhe levam a exortação suprema.

Mostram-lhe que ele está despojado dos bens e das funções da vida; que não faz senão sobreviver à própria morte, tornando-se assim um peso para si e os outros. Persuadem-no, então, a não alimentar mais o mal que o devora, e a morrer com resolução, uma vez que a existência não é para ele senão uma horrenda tortura.

Confiai – dizem-lhe – quebrai as cadeias que vos amarram, e desprendei-vos, por vossas próprias mãos, da masmorra da vida; ou pelo menos consenti que outros dela vos libertem. Vossa morte não é uma ímpia repulsa às benesses da existência, mas o termo de um cruel suplício.

Obedecer, neste caso, à voz dos padres, intérpretes da divina vontade, é fazer obra religiosa e santa.”

 

 

“Infeliz do país onde a avareza e as afeições privadas sentam-se no banco do magistrado! Adeus justiça, a mola mais firme dos Estados!”

 

 

“Os utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente animal e que o homem, no entanto, pratica mais frequentemente do que qualquer espécie de animal feroz. Contrariamente aos costumes de quase todas as nações, nada existe de tão vergonhoso na Utopia como procurar a glória nos campos de batalha.”

 

 

“Utopus, decretando a liberdade religiosa, não tinha unicamente em vista a manutenção da paz outrora perturbada por combates contínuos e ódios implacáveis; pensava ainda que o próprio interesse da religião exigia tal medida. (...)

Foi por isto que Utopus deixou a cada um inteira liberdade de consciência e de fé.”

 

 

“Tenho tentado, continuou Rafael, descrever-vos a forma desta república, que julgo ser, não somente a melhor, como a única que pode se arrogar, com boa justiça, do nome de república. Porque, em qualquer outra parte, aqueles que falam de interesse geral não cuidam senão de seu interesse pessoal; enquanto que lá, onde não se possui nada em particular, todo mundo se ocupa seriamente da causa pública, pois o bem particular realmente se confunde com o bem geral. Qual o homem que, em outro lugar, não sabe que se abandonar os seus próprios negócios, por mais florescente que esteja a república, não deixará, por isso, de morrer de fome? Daí a necessidade com que pensam em si antes de pensar em seu país, isto é, no seu próximo.

Na Utopia, ao contrário, onde tudo pertence a todos, não pode faltar nada a ninguém, desde que os celeiros públicos estão cheios. A fortuna do Estado nunca é injustamente distribuída naquele país; não se vêm nem pobres nem mendigos, e ainda que ninguém tenha nada de seu, no entretanto todo mundo é rico. Existe, na realidade, mais bela riqueza do que viver alegre e tranquilo, sem inquietações nem cuidados? Existe sorte mais feliz do que não tremer pela existência, não ser azoinado pelos pedidos e queixas da esposa, não temer a pobreza para seu filho, não apoquentar-se pelo dote da filha; mas estar sempre seguro e certo da existência e do bem-estar, seu e dos seus, mulher, filhos, netos, bisnetos, até à mais longínqua posteridade de que poderia orgulhar-se um fidalgo?”

 

 

“É justo que um nobre, um ourives, um usurário, um homem que não produz senão objetos de luxo, inúteis ao Estado, é justo que tais indivíduos levem uma vida caprichosa e esplêndida por entre a ociosidade e ocupações frívolas, enquanto que um trabalhador, um carreteiro, um artesão, um lavrador vivem uma negra miséria, mal podendo alimentar-se? E, no entanto, os últimos estão amarrados a um trabalho tão pesado e tão penoso que as bestas de carga mal suportariam; tão necessário que nenhuma sociedade poderia subsistir um ano sem ele. Na verdade, a condição de uma besta de carga parece mil vezes preferível; esta trabalha menos tempo, sua alimentação não chega a ser pior, e é mesmo mais conforme aos seus gostos. E depois, o animal não teme o futuro.

Mas qual é o destino do operário? Um trabalho infrutífero, estéril a esmagá-lo agora e a expectativa de uma velhice miserável no futuro; o seu salário diário não chega para todas as necessidades quotidianas; como, então, poderá ele aumentar sua fortuna e reservar dia a dia um pouco do supérfluo para as necessidades da velhice?

Não é iníqua e ingrata a sociedade que prodigaliza tantos bens aos que se intitulam nobres, aos joalheiros, aos ociosos ou a esses artesãos de luxo que só sabem lisonjear e servir a frívolas volúpias; quando, de outra parte, não tem nem coração nem cuidados para o lavrador, o carvoeiro, o carregador, o operário, sem os quais não existiria sociedade? Em seu cruel egoísmo, ela abusa do vigor da juventude dessa gente para tirar dela maior proveito; e logo que fraquejam esses pobres homens, sob o peso da idade e da doença, justamente quando tudo lhes falta, é que ela esquece das suas canseiras infindas, dos seus numerosos serviços, e os recompensa deixando-os morrer a fome.

E não é tudo. Os ricos diminuem cada dia alguma coisa no salário dos pobres, não só por meio de manobras fraudulentas, mas ainda decretando leis com tal fim.

Recompensar tão mal aqueles que mais merecem da república, parece-nos à primeira vista uma evidente injustiça; mas os ricos fazem desta monstruosidade um direito, sancionando-o em leis. É por isto que, quando considero e observo as repúblicas mais florescentes hoje, não vejo, Deus me perdoe, senão uma conspiração de ricos a gerir do melhor modo os seus negócios sob o rótulo e o título pomposos de república. Os conjurados procuram por todas as manhas e meios possíveis atingir um duplo fim: Primeiramente, assegurar a posse certa e indefinida de uma fortuna mais ou menos mal adquirida; em segundo lugar, abusar da miséria dos pobres, abusar de suas pessoas, e comprar pelo preço mais baixo suas habilidades e labores.

E essas maquinações decretadas pelos ricos em nome do Estado, e, por conseguinte, em nome dos pobres também, são transformadas em leis. (...)

Os próprios ricos, não o duvido, compreendem estas verdades. Sabem que é infinitamente preferível não lhes faltar jamais o necessário a ter em abundância quantidades de coisas supérfluas; que mais vale se verem livres de males inúmeros do que se cercarem de grandes riquezas. Creio mesmo que de há muito teria o gênero humano abraçado as leis da república utopiano, seja em interesse próprio, seja em obediência às leis do Cristo, pois a sabedoria do Salvador não poderia ignorar o que há de mais útil aos homens, e sua bondade divina certamente já soube recomendar-lhes o que sabia ser bom e perfeito.

Mas o orgulho, paixão feroz, rainha e mãe de todas as pragas sociais, opõe uma resistência invencível a essa conversão dos povos. O orgulho não mede a felicidade de acordo com o bem-estar pessoal, mas de acordo com a infelicidade alheia. O orgulho recusaria mesmo ser Deus, se não lhe restassem mais infelizes a insultar e a tratar como escravos, se o luxo de sua felicidade não fosse mais exaltado pelas angústias da miséria e se a ostentação de suas riquezas não torturasse mais a indigência e acendesse o seu desespero. O orgulho é uma serpente do inferno, que se introduziu no coração dos homens, que os cega com seu veneno e os afasta da senda de uma vida melhor. Este réptil agarra-se tão fortemente à carne que se torna difícil arrancá-lo.”

 

 

“Se de um lado não posso concordar com tudo o que disse este homem, aliás incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro ver estabelecidas em nossas cidades.

Aspiro, mais do que espero.”

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